Opinião

O esvaziamento do princípio da proporcionalidade no STF

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7 de setembro de 2021, 7h12

O princípio da proporcionalidade é considerado pela doutrina do Direito Constitucional como um instrumento relevante para o controle de constitucionalidade e a proteção de direitos fundamentais. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, os tribunais brasileiros, especialmente o Supremo Tribunal Federal, vem encontrando, direta ou indiretamente, nesse princípio um fundamento constante para suas razões de decidir [1]. Na mesma direção, o ministro Gilmar Mendes alega que os precedentes do Supremo Tribunal Federal parecem indicar que não são raras as vezes em que a verificação da compatibilidade de uma lei se dá por meio da aplicação dos critérios da proporcionalidade [2].

No entanto, embora esse princípio aparente ser utilizado de forma recorrente pelo STF como uma ferramenta decisiva em seus julgamentos, o problema aqui levantado é o de que, muitas vezes, os ministros do tribunal parecem não empregar de forma criteriosa os subprincípios preconizados pela doutrina majoritária: os exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito [3].

Ao tratar do tema, Daniel Sarmento afirma que existe um razoável consenso no Brasil acerca da estruturação da proporcionalidade baseada nesses subprincípios, e que sua aplicação sequencial é de observância compulsória [4]. Em síntese, o subprincípio da adequação prevê que uma medida é adequada caso seja minimamente eficaz para fomentar a concretização de sua finalidade. Já o subprincípio da necessidade requer analisar se não há outro ato igualmente eficaz em realizar objetivo perseguido, enquanto restringe de forma menos onerosa o direito fundamental em questão. Por sua vez, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito demanda que a restrição ao bem jurídico imposta pela medida seja, de certa forma, compensada pela promoção de um interesse antagônico.

Para analisar o padrão decisório adotado pelo tribunal, o presente artigo limitou-se a verificar, por meio do portal eletrônico da corte, as classes processuais referentes ao exercício do controle concentrado de constitucionalidade (ADCs, ADIs, ADOs e ADPFs) entre 5 de outubro de 1988 e 31 de dezembro de 2020. Observou-se que, entre os 5.359 casos julgados nesse período, apenas 156 mencionavam o termo "princípio da proporcionalidade" em suas ementas ou indexações, sendo 136 ADIs, 12 ADPFs e oito ADCs. Logo, o escopo dessa investigação jurisprudencial residiu em apreciar os acórdãos de tais decisões e identificar em que medida eles apresentavam (ou não) a devida aplicação dos três subprincípios.

Entre os resultados encontrados, identificou-se que em apenas 62 acórdãos os três exames da proporcionalidade foram utilizados por algum ministro do tribunal na fundamentação de seu voto. Isso significa que, em 60% das decisões analisadas, os ministros do STF não aplicaram rigorosamente a proporcionalidade conforme os critérios da doutrina, seja por examinar somente um ou dois subprincípios, seja por ignorá-los inteiramente.

Vale reparar também que em aproximadamente 80% das decisões o STF tratou a proporcionalidade no controle concentrado a partir de dois extremos: ou aplicou integralmente o princípio, através uma análise criteriosa que perpassa pelos seus três exames, ou o utilizou de forma abstrata e retórica, sem se debruçar precisamente sobre qualquer um de seus subprincípios. No caso da ADI 1.802, por exemplo, a aplicação do princípio limita-se a dizer que a medida em questão "atende aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade". Já na frequentemente citada ADI 855, sobre a pesagem de botijões de gás, os subprincípios não são apresentados conforme os ditames da doutrina, e a poporcionalidade é por vezes colocada como sinônimo de razoabilidade [5].

Além disso, cumpre observar que o apreço do tribunal pelos exames da proporcionalidade no controle concentrado tem sido cada vez menor nos últimos anos. Enquanto em 2016 os três subprincípios foram empregados em aproximadamente 70% das decisões analisadas, o ano de 2020 registrou tal aplicação em apenas 15% dos casos, isto é, a menor porcentagem desde 2013.

Embora o princípio da proporcionalidade não seja, por si só, uma ferramenta absolutamente eficaz na eliminação da discricionariedade dos operadores do Direito, a utilização rigorosa de seus três exames deveria ser capaz de restringir consideravelmente o arbítrio, por meio do fornecimento de critérios para uma fundamentação razoável. O jurista suíço Max Huber já advertia que o grande perigo por trás da proporcionalidade seria que, quando usada de forma imprudente e sem o verdadeiro critério de sua compreensão e alcance, sua substância acaba sendo reduzida [6]. Nessa mesma esteira, o francês Xavier Philippe afirma que esse princípio carrega inerentemente consigo a ameaça do advento de um "governo de juízes", uma vez que possui um conteúdo tão fluido [7].

Sob esse raciocínio, o descaso judicial com os três exames consagrados pela doutrina apenas contribui para que a substância da proporcionalidade torne-se justamente mais reduzida e flúida, ficando à disposição do magistrado para o uso de acordo com sua própria conveniência e interesse. Tendo em vista que a proporcionalidade serve como um meio para que o Judiciário possa verificar a legitimidade de decisões legislativas, a constante inobservância de seus exames ainda pode tornar mais fácil que o STF modifique o status quo, decidindo contra o sistema majoritário e representativo do Poder Legislativo.

Ao se considerar os processos ainda em tramitação no tribunal, verifica-se que 1.762 destes são referentes ao exercício do controle concentrado de constitucionalidade (1.429 ADIs, 287 ADPFs, 22 ADCs e 24 ADOs), o que representa quase 30 vezes mais a quantidade de decisões que seguiram rigorosamente os três subprincípios no período analisado [8]. Assim sendo, enquanto a proporcionalidade for salvaguardada pela doutrina majoritária e, sobretudo pelo STF, como um "fundamento constante para suas razões de decidir", espera-se que essa corte a utilize de forma minimamente rigorosa e passe a aumentar a aplicação de seus exames em futuros julgados.

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação SA, 2017. p. 244

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Repertório IOB de jurisprudência v. 23, 1994. p. 472.

[3] Não há consenso doutrinário quanto à identificação da proporcionalidade e de seus exames como, respectivamente, "princípio" e "subprincípios" ou como "regra" e "subregras". Para maior aprofundamento, ver: ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, vol. 215, 1999.

[4] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 419.

[5] Para maior detalhamento sobre a confusão entre o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade pelo STF, ver: DA SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

[6] BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional 30. ed. São Paulo: Forense, 1980. p. 430, in. Hans Huber, p. 20.

[7] BONAVIDES, Paulo, 1980, op. cit. p. 430, in. Xavier, p. 46.

[8] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF Digital: Estatísticas do STF. Brasília. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/single/?appid=e554950b-d244-487b-991d-abcc693bfa7c&sheet=9123f27b-bbe6-4896-82ea-8407a5ff7d3d&theme=simplicity&select=clearall. Aesso em 05 set. 2021.

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