Contas à vista

Orçamento de sesmarias no bicentenário da independência brasileira

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7 de setembro de 2021, 8h00

Falta um ano para a celebração dos 200 anos da independência do Brasil. Ao invés de projetar avanços futuros, a iminente efeméride, contudo, merece ser contrastada com o período colonial. Isso porque, a despeito da formal independência em relação à exploração portuguesa, nossa sociedade mantém-se presa a padrões extrativistas que, de certa forma, perenizam o modelo de sesmarias até os presentes dias [1].

Spacca
Até 1822, as sesmarias visavam a alargar as fronteiras da colônia, destinando a alguns apaniguados arbitrária e subjetivamente terras tidas como incultas ou abandonadas. Mediante a exploração de indígenas e negros, esse modo de produção político-econômica estruturou-se sob bases escravocratas que se perenizaram em nossa realidade tão desigual.

Quase dois séculos depois, agora vemos limites normativo-institucionais serem colocados em xeque, como se os recursos públicos do país fossem "terra de ninguém", cuja pilhagem pelos "amigos do rei" restaria presumidamente impune, porquanto naturalizada.

Em matéria orçamentária, temos assistido à trágica encenação de a Constituição de 1988 ser redesenhada semestralmente, sobretudo a partir da Emenda 86/2015, para acomodar toda sorte de manobras fisiológicas que visam à maximização dos ganhos de curto prazo eleitoral e do capitalismo de compadrio.

Eis o contexto em que emergem vários conflitos distributivos no projeto de lei de orçamento para o exercício financeiro de 2022 enviado pelo governo federal na terça-feira da semana passada (31/8). Ali existem inúmeras "terras" sob disputa fronteiriça, entre as quais destacamos, em especial, os impasses sobre:

1) A insuficiente dotação para realização do censo decenal, a despeito da determinação do Supremo Tribunal Federal do seu custeio suficiente, o que justificou a emissão de Comunicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), donde extraímos a seguinte síntese:

"Em 14 de maio de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 10 votos a 1 que 'o Poder Executivo, em articulação direta com o Congresso Nacional, assegure os créditos orçamentários suficientes para a realização do censo demográfico do IBGE'.
(…) Ao determinar a adoção de medidas administrativas e legislativas para a realização do censo demográfico do IBGE no exercício financeiro seguinte ao da concessão da tutela de urgência (2022), o STF estabeleceu que a União deve adotar todas as medidas legais necessárias para viabilizar a pesquisa censitária, inclusive no que se refere à previsão de créditos orçamentários para a realização das despesas públicas.
O PLOA-2022 enviado ao Congresso Nacional pelo Executivo é necessário no rito, mas não suficiente no valor aprovado (diferença a menor de quase R$ 300 milhões), para atender os parâmetros técnicos determinados pelo STF para a realização do censo demográfico. Ao IBGE caberá atuar junto ao Congresso Nacional, num trabalho de mobilização e convencimento sobre os interesses públicos relacionados ao censo demográfico, para que a União assegure o que foi determinado pelo STF, qual seja, as condições necessárias e suficientes para a realização do censo demográfico em 2022 (cristalizadas no valor de R$ 2.292.907.087,00)".

2) A inexistência de qualquer menção no PLOA-2022 ao plano de redução das renúncias fiscais previsto no artigo 4º da Emenda 109, de 15 de março deste ano, cujo prazo de envio pelo Executivo finda daqui a uma semana:

"Artigo 4º — O presidente da República deve encaminhar ao Congresso Nacional, em até seis meses após a promulgação desta Emenda Constitucional, plano de redução gradual de incentivos e benefícios federais de natureza tributária, acompanhado das correspondentes proposições legislativas e das estimativas dos respectivos impactos orçamentários e financeiros.
§1º As proposições legislativas a que se refere o caput devem propiciar, em conjunto, redução do montante total dos incentivos e benefícios referidos no caput deste artigo:
I  para o exercício em que forem encaminhadas, de pelo menos 10%, em termos anualizados, em relação aos incentivos e benefícios vigentes por ocasião da promulgação desta emenda constitucional;
II
 de modo que esse montante, no prazo de até oito anos, não ultrapasse 2% do produto interno bruto.
(…) §4º Lei complementar tratará de:
I  critérios objetivos, metas de desempenho e procedimentos para a concessão e a alteração de incentivo ou benefício de natureza tributária, financeira ou creditícia para pessoas jurídicas do qual decorra diminuição de receita ou aumento de despesa;
II
 regras para a avaliação periódica obrigatória dos impactos econômico-sociais dos incentivos ou benefícios de que trata o inciso I deste parágrafo, com divulgação irrestrita dos respectivos resultados;
III
 redução gradual de incentivos fiscais federais de natureza tributária, sem prejuízo do plano emergencial de que trata o caput deste artigo".

3) A redução equivalente a cerca de 85% na dotação para compra de vacinas em relação ao montante disponível em 2021 (ação 20YE Aquisição e Distribuição de Imunobiológicos e Insumos para Prevenção e Controle de Doenças), mesmo diante da demanda por continuidade em 2022 de enfrentamento à pandemia da Covid-19 e pelas demais vacinas oferecidas pelo nosso Sistema Único de Saúde:

"O governo Jair Bolsonaro (sem partido) reservou para compras de vacina contra a Covid-19 em 2022 um valor 85% menor do que o previsto para 2021. De acordo com o orçamento do ano que vem apresentado ao Congresso na terça (31), serão R$ 3,9 bilhões para aquisição de imunizantes, contra R$ 27,8 bilhões autorizados para a mesma finalidade neste ano. (…) No projeto orçamentário para 2022, a aplicação mínima em Saúde pelo governo foi ampliada em R$ 10,7 bilhões. Desse total, o ministério decidiu que R$ 7,1 bilhões serão destinados a ações de combate à pandemia — é neste valor que estão os R$ 3,9 bilhões para as vacinas.
A título de comparação, o gasto do Ministério da Saúde com enfrentamento da pandemia foi de R$ 70,8 bilhões em 2020 e está previsto em R$ 53,7 bilhões neste ano. A pasta disse que "o enfrentamento da Covid-19 e seus efeitos sobre a saúde pública foi elemento central da proposta orçamentária para 2022'.
De acordo com o secretário do orçamento Federal, Ariosto Culau, há uma dose de incerteza sobre a vacinação no ano que vem, por exemplo, em relação ao número de imunizantes e à aplicação de reforço.
(…) Há duas semanas, Culau havia afirmado que o plano de imunização contra a Covid-19 em 2022, inclusive a proposta de oferecer a terceira dose à população, poderia ficar comprometido se o Congresso não aprovasse a proposta do governo para reduzir os gastos com precatórios (dívidas reconhecidas pela Justiça).
(…) Nos últimos meses, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, já vinha colocando como alta a probabilidade de precisar de mais doses para uma nova rodada de vacinação em 2022. O formato da estratégia
— se apenas como reforço ou em uma nova campanha — ainda é avaliado".

4) A defasada estimativa de inflação que corrige considerável parcela dos benefícios previdenciários e assistenciais, assim como a ausência de correção para o programa Bolsa Família, como se pode ler no seguinte excerto do informativo conjunto sobre o PLOA-2022 emitido pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, e pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados:

"As expectativas de mercado projetam inflação superior à prevista pelo governo, destacadamente para 2021, o que pode afetar especialmente as estimativas de despesas previdenciárias e assistenciais. Além disso, a projeção de mercado para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) é menos otimista do que a adotada no PLOA, especialmente para 2022.
(…) Para o pagamento do Auxílio Brasil, programa instituído pela Medida Provisória 1.061/2021, em substituição ao Bolsa Família, o PLOA 2022 prevê R$ 34,7 bilhões, com o que se espera atender 14,7 milhões de famílias. (…) O Bolsa Família beneficiou, no mês de agosto de 2021, 14,6 milhões de famílias e sua dotação na LOA 2021 é de R$ 34,8 bilhões".

5) enquanto faltam recursos para vacinas, para a atualização do programa Bolsa Família e para o censo decenal, são ampliadas as despesas com pessoal ativo, inativo e pensionistas no âmbito do Ministério da Defesa, como se pode ler na reportagem da revista Piauí, donde extraímos o seguinte excerto:

"O aumento de 16% nos gastos com remuneração de militares e familiares na proposta de orçamento para 2022 eleva os custos com pessoal dos atuais R$ 79 bilhões para R$ 91,6 bilhões. Para uma comparação, o total de gastos com pessoal no orçamento, incluindo os poderes Legislativo e Judiciário, sobe 1,8%, segundo a previsão de despesas enviada ao Congresso.
No Ministério da Defesa, a fatia destinada aos militares aposentados e da reserva é a que mais sobe: 31%. As despesas com remuneração de militares na ativa sobem 25%, enquanto as pensões pagas a familiares, 8%. Procurado, o Ministério da Defesa não se manifestou sobre o aumento com gastos de pessoal. Nem sobre outro detalhe contemplado no projeto de lei do orçamento: a proposta de criação em 2022 de 1.129 cargos comissionados ou gratificações para militares 'fora da força', em postos civis, ao custo de R$ 54,9 milhões.
Os 12,5 bilhões acrescidos aos gastos de pessoal nas Forças Armadas são mais de seis vezes o valor destinado à realização do censo pelo IBGE em 2022, depois de dois anos de atraso no levantamento de dados da população. Na própria defesa, o aumento de gasto com pessoal supera em 50% todo o investimento previsto na pasta, de R$ 8,3 bilhões. Os investimentos militares também sobem num ano em que o investimento total da União cai".

As dimensões acima são exemplos que, por óbvio, não esgotam as tensões orçamentárias contidas no PLOA-2022. Mas vale a pena analisarmos detidamente algumas das suas incoerências. De um lado, a dotação aquém do necessário em cerca de R$ 300 milhões para realizar o censo ser remetida ao trato direto do IBGE com o Congresso Nacional, direta ou indiretamente, significa que o Executivo federal se negou ao cumprimento da decisão do STF. Por outro lado, a insuficiência de custeio das vacinas certamente configurará uma emergência fabricada que não poderá justificar a abertura de novos créditos extraordinários em 2022, porque se trata de despesa absolutamente previsível e, portanto, planejável.

Em igual medida, soa quimera a promessa de aprimorar o Bolsa Família, mas nada ali ser previsto, enquanto concomitantemente se faz estimativa defasada de inflação, que certamente acarretará expansão das despesas obrigatórias relativas a benefícios previdenciários e assistenciais afetados por tal índice, a partir da correção monetária do salário mínimo. Entre tantos impasses, amplia-se desproporcional e desarrazoadamente o custeio das despesas com o pessoal militar.

Enfim, os maiores exemplos do quanto vivemos sob a égide de um orçamento que nega cumprimento aos limites constitucionais e legais, para atender às sesmarias eleitorais de quem almeja se reeleger no ano do bicentenário da independência brasileira, residem na persistência das opacas e subjetivas emendas de relator RP 9 (também chamadas de "orçamento secreto") e na pretensão de se alterar o regime jurídico dos precatórios mediante a PEC 23/2021.

Ora, nada mais tipicamente extrativista que ampliar espaços fiscais de cooptação parlamentar ("terras incultas"?), enquanto se posterga até mesmo a quitação dos passivos judiciais do Fundef (cerca de R$ 16 bilhões), ainda que o artigo 60 do ADCT que lhe lastreia seja uma formal exceção ao teto dado pela Emenda 95/2016 (conforme a parte final do inciso I do §6º do artigo 107 do ADCT).

O PLOA-2022 atesta que não há muito a comemorarmos neste 7 de setembro e a pergunta que fica é se algum dia viremos a ser, de fato, independentes do regime multissecular de exploração e de perenização da desigualdade escravocrata em que se funda a história do nosso país.

 


[1] Segundo Bacellar, "(…) a terra, apesar de seu baixo valor, era negociada e disputada na Justiça, mesmo quando se tratava de áreas diminutas. Havia, portanto, um mercado, em um contexto que, costumeiramente, levava à carência de espaço agrícola e impulsionava a expansão em busca de novas terras. Adquiridas por sesmaria ou posse, as propriedades rurais dos mais diversos tamanhos podiam ser transferidas por herança e dote, mas igualmente podiam ser objeto de negociação, mesmo sem se dispor de um título legal de propriedade.
A concessão de sesmarias durante o período de sua vigência, até 1822, foi analisada detalhadamente por Nelson Nozoe. O levantamento dos títulos constatou que teria havido solicitação de um total de 1762 cartas de sesmarias. Distribuídas ao longo do tempo, percebe-se que houve maiores volumes de pedidos nos intervalos de 1600-1649, 1720-1749 e 1780-1789 (NOZOE, 2009, p. 3). O primeiro período pode ser identificado com o momento de forte ampliação da captura de indígenas, e de busca de novas áreas para explorar com essa mão-de-obra. (…) O segundo momento de grande expansão da concessão de cartas de sesmarias, 1720-1749, coincide com o auge da mineração. Ao ouro da capitania de Minas Gerais somam-se outras jazidas, mais a oeste. (…) O terceiro período de significativo número de sesmarias concedidas está na década de 1780-1789, momento em que a lavoura da cana-de-açúcar principiava a ganhar fôlego (…), criando uma forte demanda por novas áreas de cultivo e por escravos."
Bacellar, Carlos de Almeida Prado. Desbravando os sertões paulistas, séculos XVI a XIX. História (São Paulo) [online]. 2020, v. 39 [Acessado 4 Setembro 2021] , e2020023. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1980-4369e2020023>. Epub 07 Ago 2020. ISSN 1980-4369. https://doi.org/10.1590/1980-4369e2020023.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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