Segunda Leitura

A discriminação na história, na vida brasileira e no Direito

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de setembro de 2021, 8h05

A discriminação não é um fenômeno recente, muito embora nunca, como agora, tenha sido tão comentada, discutida e recriminada. Na Bíblia Sagrada, a máxima “amarás teu próximo como a ti mesmo” aponta para o tratamento igualitário a todos. Tiago observa: “Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com parcialidade”.[i]

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A discriminação costuma vir acompanhada do preconceito, que nada mais é do que uma conclusão desfavorável tomada antecipadamente, regra geral sem motivação em dados objetivos.

Durante a evolução histórica da humanidade, com seus inegáveis avanços em áreas diversas, como a medicina e a tecnologia, nunca se alcançou a perfeição de separar-se a discriminação do pensamento do ser humano.

Os povos vencidos nas batalhas que se sucederam por séculos eram aprisionados e tornados escravos. Monumentos hoje considerados patrimônio da humanidade foram construídos à custa do suor e lágrimas de povos conquistados. Para ficar em um só exemplo, cita-se o Coliseu, em Roma, ano 80 d.C.

Os romanos desprezavam a cultura dos povos conquistados, por exemplo, os da Germânia, chamando-os de bárbaros. Na Índia milenar, o hinduísmo divide as pessoas em quatro castas, Brahmins, Kshatriyas, Vaishyas e Shudras, as quais impedem a mobilidade e acesso social até os dias hoje. Os ciganos são discriminados desde a Idade Média por força de seus costumes e modo de viver, atribuindo-se-lhes, por sucessivas gerações, envolvimento com fatos ilícitos.

Na Idade Média, “o povo, de maneira geral, supunha ser um “castigo de Deus” o nascimento de uma criança com deficiência, acreditando, também, que um corpo malformado era a morada de uma mente igualmente malformada, supersticiosamente vista como feiticeiros ou bruxos. Assim, aos indivíduos que apresentavam alguma deficiência somente restava o abandono, a discriminação, a mantença à distância e a prática da mendicância”.[ii]

Na Idade Moderna, quando os Impérios se consolidaram e a nobreza atingiu requintes de grande sofisticação, criaram-se categorias de nobres, conforme a importância social e o poderio econômico. Na Revolução Francesa de 1789, que pregava acima de tudo a igualdade, os títulos foram abolidos e o tratamento passou a ser cidadão. Mas só temporariamente.

Exemplo máximo de discriminação deu-se na Alemanha nazista em relação aos judeus, fatos estes que dispensam referências.

No Brasil, como em tantos outros países, tivemos e temos, por vezes sem perceber, diferentes formas de discriminação. A mais evidente, por certo, foi a existente contra a pessoas da raça negra. Aprisionados em diversas regiões da África e aqui escravizados, foram por séculos obrigados a trabalhar sem nada receber e, depois de libertados em 13 de maio de 1988, continuaram sofrendo restrições no tratamento, muitas delas perdurando até o presente.

A discriminação, seja qual for e de que maneira se realize, não é um procedimento exposto abertamente. Ela, muitas vezes, está presente em nossas vidas, de forma imperceptível. Em outras, o que aparenta ser preconceito e discriminação nada mais é do que um costume aceito em determinada época. Vejamos.

Em 1931, Lamartine Babo compôs o samba O teu cabelo não nega, no qual, reconhecendo ser a amada mulata, não a discrimina, pois confessa: “Mas como a cor não pega mulata; mulata eu quero o teu amor”.[iii] Noel Rosa, em “Mulata Fuzarqueira”, narra tentativa de tirá-la de caminhos perigosos, externando o seu amor e preocupação.

Descabidas, outrossim, as críticas a Monteiro Lobato, por narrativa feitas no contexto da época. O grande escritor de histórias infantis que embalaram diversas gerações, criou a personagem Tia Nastácia, negra, cozinheira de mão cheia, que transmitia às atentas crianças o folclore e a cultura popular brasileira, com personagens como o saci e o curupira. Ela era tratada como integrante da família e querida por todos.

Em 1963 João Roberto Kelly compôs a marchinha de carnaval Olha a cabeleira do Zezé, na qual indagava se ele era ou não gay. Eram tempos de cabelo curto, nos quais os Beatles ousavam alterar a tradição, penteando-os com franja. O autor certamente retratou uma rejeição ao novo modelo, com insinuação clara ao homossexualismo. [iv]

Menos conhecidas, mas aí sim discriminatórias, foram as rejeições aos imigrantes. As populações urbanas do Rio Grande do Sul chamavam os alemães e italianos que surgiram em suas vidas de “colonos”, dito com ênfase e entonação de xingamento. Mais grave o que se passava em Curitiba até os anos 1980, quando os poloneses eram chamados de “polacos” e deles se dizia que eram “o preto virado do avesso”, frase esta que encerra duplo preconceito e discriminação.

Os italianos em São Paulo, até os anos 1930, eram discriminados no Poder Judiciário, tendo os juízes de Direito enormes dificuldades de acesso ao Tribunal de Justiça, onde o cargo de desembargador, provido apenas por merecimento, excluía-os sistematicamente. O fato é relatado pelo então juiz Paulo Américo Passalacqua, em obra de grande relevância na história da magistratura.[v]

Atualmente, no entanto, no âmbito jurídico nenhum dos 91 Tribunais brasileiros cita precedentes das cortes da Bolívia ou Guatemala. Professores não costumam colocar na bibliografia a doutrina de Angola. Estaremos discriminando?

No âmbito interno, a migração sempre gerou preconceitos e discriminação. As levas de nordestinos fugitivos da seca e de más condições de vida para o Rio de Janeiro e São Paulo, por décadas, onde eram genericamente chamados de “paraíba” ou “baiano”, sempre gerou restrições da população local, o que, por vezes, se refletia em discriminações. Pernambucanos, por serem do estado detentor de maiores tradições culturais e sucesso econômico no Nordeste, sofriam acusações de serem orgulhosos pelos habitantes dos outros estados da região.

Vejamos agora a situação atual e como o Direito interfere no tema.

Nas duas últimas décadas, movimentos sociais se insurgiram, de diversificadas formas, contra todos os tipos de discriminação. Por exemplo, o acesso das mulheres nos concursos públicos da magistratura estadual e do Ministério Público, outrora impedidos ou concedidos a conta-gotas, tornou-as partícipes diretas destas instituições, inclusive ascendendo às mais altas posições.[vi] Seguem, todavia, com reivindicações de maior espaço nas posições de comando na vida pública. Dá-se o mesmo na iniciativa privada, onde reivindicam posições de mando ou nos conselhos, agora com o apoio das políticas ESG.

As ironias, agressões verbais, agressões físicas, enfim, todas as formas de preconceito ou discriminação de raça, cor ou orientação sexual, são vedadas pelo art. 5º da Constituição de 1988. A Lei 7.716/1989 dá-lhe o necessário complemento, definindo crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

As discriminações assim, paulatinamente, passaram a ser objeto de protestos, manifestações, providências administrativas e ações judiciais, consolidando uma mudança de costumes que revela maior civilidade e aceitação do próximo com as suas características.

O Direito tem um papel importante no desenvolvimento desta mudança de costumes. A pressão popular dos novos tempos influencia de forma diversificada. As de menor impacto resumem-se a uma mera censura social. Por exemplo, afirmar, como antigamente se fazia, “que todo japonês é barbeiro”, ou seja, mau motorista. Outras, mais graves, tornam-se sanções administrativas, trabalhistas, civis ou penais os que as transgridam.

A jurisprudência registra centenas de precedentes. Vejamos alguns exemplos. O Tribunal de Justiça de Goiás condenou uma mulher por ofensas de cunho racista no condomínio a terceiros não moradores, impondo-lhe o pagamento de R$ 15 mil a um e R$ 5 mil aos demais,[vii] Na área trabalhista julgados condenam a prática ou a simples tolerância de tais práticas. Neste sentido, por exemplo, acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro).[viii] Na esfera penal o número de condenações é menor, porém, ainda assim, são muitas. O Tribunal de Justiça do Paraná condenou uma mulher que discutindo com uma afrodescendente que lhe era devedora, disse-lhe “ ‘Eu só converso com gente decente, e não com gente da sua cor’”.[ix]

Assim vamos evoluindo, respeitando as diferenças como deve ser. Preconceitos não acabarão, fazem parte da natureza humana. Mas discriminações e manifestações preconceituosas não podem ser toleradas. Não se pode deixar de mencionar que as novas gerações comportam-se de forma diferente à de seus pais e tornou-se comum casais de origem étnica diversa, o que gerava forte repressão ou discriminação até os anos 1970. Portanto, pessoas que mesclam a diversidade de raças aumentam a cada dia.

As coisas complicam-se quando assumem exageros, radicalismo, influenciados por fatos oriundos dos Estados Unidos. As relações entre as populações brancas e negras daquele país foram de separação total. Aqui foi diferente, até porque os portugueses tinham uma atração pelas mulheres de cor negra, fato descrito por Aluísio de Azevedo na obra O mulato, em 1881, na qual o fazendeiro José trai sua mulher Domingas com a escrava Quitéria, com quem teve o filho Raimundo. Este exemplo literário retrata o sem número de uniões existentes, gerando filhos de tom de pele diversificado e pessoas que, por vezes, têm pele branca, mas, no DNA, sangue da raça negra.

Encerrando, plenamente ciente de que o tema discriminação suscita posições extremistas e pouco racionais, registro que, na qualidade de presidente do TRF da 4ª Região, em 12 de dezembro de 2004, dei a primeira decisão judicial do Brasil mantendo a cota para negros permitida, pioneiramente, pela Universidade Federal do Paraná.[x]

[i] Bíblia Sagrada On line. Tiago 2.1.Disponível em: https://www.bibliaon.com/nao_a_discriminacao/. Acesso em 2 set. 2021.

[ii] DICHER, Marilu e TREVISAM, Elisaide. A JORNADA HISTÓRICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: INCLUSÃO COMO EXERCÍCIO DO DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b.

[iii] Disponível em: https://www.vagalume.com.br/lamartine-babo/o-teu-cabelo-nao-nega.html.

[iv] Disponível em: https://www.letras.mus.br/marchinhas-de-carnaval/497937/.

[v] PASSALACQUA, Paulo Américo. O Poder Judiciário na Constituição Federal e nas Constituições dos Estados. São Paulo: Saraiva, 1936.

[vi] No ano de 2006 Ellen Northfleet ascendeu à presidência do Supremo Tribunal Federal, sendo a primeira mulher a conquistar tal posição.

[vii] TJ-GO, Apelação Cível nº 5216195-16.2017.8.09.0051, rel. Reinaldo Ferreira, 5ª. Turma, j. 15 mar. 2021.

[viii] TRT 1ª Região, PROCESSO: 0000566-92.2014.5.01.0522 – RTOrd, 3ª. Turma, rel. Ângelo Zamorano, j. 1º jun. 2015.

[ix] TJ-PR, Ap. Criminal nº .520.880-5, 4ª. Câmara Criminal, rel. Sônia R. Castro, j. 30 jun. 2016.

[x] Revista Eletrônica Consultor Jurídico, Discussão de cotas esbarra em mistura de raças, diz desembargador, 11/2/2005. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2005-fev-11/discussao_esbarra_problemas_nao_existem_eua.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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