Opinião

O impacto da Lei do Superendividamento no mercado imobiliário

Autores

  • Olivar Vitale

    é advogado sócio fundador do VBD Advogados fundador e diretor institucional do Ibradim membro do Comitê de Gestão da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo (SMUL) membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo conselheiro jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário) membro do conselho deliberativo do IBDiC (Instituto Brasileiro de Direito da Construção) professor e coordenador da especialização/MBA da Poli-USP da ESPM-SP da UniSecovi e de outras entidades de ensino.

  • Marília Nascimento

    é advogada associada ao VBD Advogados com atuação na área de direito imobiliário e membro da comissão de negócios imobiliários do Ibradim. Pós-graduada em Direito Imobiliário Empresarial pela UniSecovi em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e em propriedade intelectual pela ESA (Escola Superior de Advocacia) de São Paulo.

4 de setembro de 2021, 15h14

Após quase uma década desde a proposição do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283/2013, a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181) entrou em vigor em 1º de julho.

Fruto de um trabalho de autoria de grandes juristas, como Claudia Lima Marques, Marília de Ávila e Silva Sampaio, entre outros, e que teve como padrinhos os ministros Herman Benjamin e Paulo de Tarso Sanseverino, ambos do Superior Tribunal de Justiça, a lei altera o Código de Defesa do Consumidor (CDC), representando um marco legal no que diz respeito à prevenção e ao tratamento do superendividamento do consumidor.

A lei é idealizada no modelo francês e tem como fundamento o crédito responsável baseado na boa-fé contratual, na preservação do mínimo existencial ao consumidor e no planejamento do pagamento de suas dívidas.

O princípio do crédito responsável decorre da interpretação constitucional em defesa dos consumidores, regulamentada pela Lei do Superendividamento conforme as alterações introduzidas no CDC e no Estatuto do Idoso, e consiste na garantia de um acesso razoável ao crédito, pelo consumidor, que lhe assegure a manutenção do mínimo existencial, na execução de políticas e instrumentos de educação e de regulamentação do consumo, pelo poder público, e no cumprimento de regras de condutas objetivas pelos fornecedores de produtos e serviços, que visem a evitar o superendividamento [3].

Nos termos do artigo 54-A da lei, superendividamento é a impossibilidade manifesta de o consumidor de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, englobando aqui quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.

Importante destacar que assim como em épocas anteriores de crise econômica, que resultaram na redução do poder aquisitivo da população, algumas consequências são observadas no cenário econômico brasileiro e sem dúvida a razão da aprovação desse projeto de lei neste momento está intimamente ligada à pandemia da Covid-19. O empobrecimento do cidadão é notório, o crescimento das dívidas é consequência disso e o tratamento especial a esse crônico problema se revelou importante ao legislador. É nesse contexto que surgem os reflexos da crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19 no mercado imobiliário, e este é o propósito do presente artigo.

Todavia, antes de abordar a conjuntura atual, faz-se necessário contextualizar o leitor do histórico das crises econômicas de outras décadas e os impactos causados no setor imobiliário brasileiro, em especial no que concerne à análise do entendimento jurisprudencial acerca da resolução das promessas de compra e venda de imóveis por inadimplência do adquirente.

No início dos anos 1980, o país viveu os anos dourados do mercado de imóveis, com inúmeros lançamentos de empreendimentos, crédito imobiliário abundante e pungente poder aquisitivo da população. A aquisição de imóveis "na planta" foi atrativo investimento. Pouco tempo depois, ao final da mesma década, vivenciamos a maior das inflações, o que ocasionou uma crise econômica que perdurou por anos.

Nesse contexto, a jurisprudência passou a permitir o desfazimento do compromisso pelos adquirentes de unidades imobiliárias em casos extremos, aqueles em que a incapacidade financeira tivesse sido inequivocamente demonstrada [4], flexibilizando a irrevogabilidade dos compromissos de compra e venda e enfatizando a questão social em detrimento das regras de direito. Tratava-se geralmente do comprador da casa própria que, após a celebração do contrato, perdeu emprego ou enfrentou algum dissabor que o impedisse de honrar o quanto assumido.

Um novo boom imobiliário ocorreu no início do século 21, especialmente de 2006 a 2014, quando a economia brasileira começou a dar sinais de prosperidade. Com a economia fortalecida e estável, houve uma melhora na empregabilidade, na renda e na confiança do consumidor em relação ao futuro, e com isso condições propícias para o investimento em um imóvel.

Nesse cenário a venda de imóveis atingiu seu ápice. A praxe do mercado passou a prever o pagamento de mais ou menos 20% do valor do imóvel durante a construção do empreendimento e os restantes 80% após a entrega das chaves. Incorporadoras e loteadoras muitas vezes comercializaram unidades imobiliárias sem realizar análise prévia da capacidade financeira do adquirente que possibilitasse a concessão de crédito para financiamento.

Porém, a partir de 2013, a economia começou a dar sinais de desaquecimento, iniciando um novo cenário, com uma curva descendente, e no ano de 2015 houve grande retração do mercado imobiliário.

A nova crise econômica foi o ápice dos pedidos de resilição unilateral de compromissos de compra e venda. Boa parte do Poder Judiciário passou a permitir a resolução do contrato irrevogável por adquirentes, mesmo sem comprovação da incapacidade financeira, deixando de observar os mecanismos legalmente previstos para eventual e específica solução do problema, possibilitando o exercício de um pseudodireito de arrependimento.

Certo é que o vultoso volume de demandas judiciais propostas por adquirentes gerou um "contencioso de massa" e a questão não foi enfrentada com afinco. Incorporadoras e loteadoras passaram a contar com um passivo judicial numeroso, de alto custo, utilizando-se de profissionais do Direito pouco capacitados para o tema e portanto de teses de defesa pouco elaboradas, sem o necessário aprofundamento dos casos concretos, consolidando o entendimento acima demonstrado.

Importante destacar que é praxe do mercado os contratos de venda de unidades objeto de incorporação imobiliária preverem em sua redação cláusula sobre os valores a serem retidos na hipótese de inadimplência do adquirente, a título de cláusula penal e, desde que por intenção do empreendedor, a formalização de distrato.

A despeito disso, mesmo sendo irrevogável e irretratável o contrato e estando o incorporador e o loteador adimplente com suas obrigações, o Poder Judiciário por momentos declarou resilido o instrumento, aplicando multa percentual correspondente ao que foi desembolsado para aquisição do imóvel, com desconto de pequeno percentual como penalidade pelo cancelamento do negócio.

Diante desse reiterado aumento nas demandas, em 2015 o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 543 dispondo sobre a devolução de valores no caso de extinção de contrato de promessa de compra e venda de imóvel, nos seguintes termos: "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador — integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento".

Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) editou súmulas [5] que poderiam ser interpretadas em sentido contrário à irrevogabilidade [6] [7] [8] dos compromissos de compra e venda de imóveis em incorporação imobiliária, reconhecendo o desfazimento do negócio, mesmo que o compromissário comprador esteja adimplente, consolidando ainda entendimento sobre devolução de valores recebidos pelo empreendedor e sem possibilidade de parcelamento.

Somente com a promulgação da Lei nº 13.786/2018, a chamada Lei dos Distratos, a questão relativa à cláusula penal e aos efeitos da resolução do compromisso de compra e venda por inadimplemento do adquirente foi devidamente regulamentada, reforçando a irrevogabilidade dos contratos.

Referida lei estabelece que na hipótese de desfazimento do contrato por inadimplemento de unidade imobiliária do adquirente haverá retenção de até 25% da quantia paga e 50% quando a incorporação for submetida ao regime do patrimônio de afetação e para contratos de loteamento firmados, a dedução obedecerá ao limite de 10% do valor do contrato.

O Poder Judiciário já sinaliza o entendimento favorável à aplicação da lei para os contratos firmados sob sua vigência [9].

Apesar disso, quando tudo parecia estar caminhando para um aquecimento do mercado imobiliário, um novo cenário de insegurança jurídica se instalou. A crise econômica ocasionada pela pandemia da Covid-19 gerou uma onda de desempregos, diminuição da renda do consumidor e consequentemente sua capacidade de honrar com seus compromissos financeiros. Nesse cenário a Lei do Superendividamento foi promulgada.

Como mencionado anteriormente, a Lei nº 14.181/2021, que altera o CDC para regulamentar a oferta de crédito, tem por objetivo evitar o superendividamento dos consumidores.

A lei prevê a constituição de novos direitos, princípios e instrumentos de execução da política de consumo, além de aumento do rol de nulidades em contratos firmados com fornecedores.

Os dispositivos iniciais da lei dispõem sobre mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento.

A lei introduz nos artigos 54-A a 54-G um capítulo com regras de conduta que tratam da prevenção e do tratamento ao superendividamento.

Sob esse aspecto, a lei determina o dever do fornecedor de transparência perante o consumidor na venda a prazo e nas operações de crédito, isto é, a obrigatoriedade de informar, prévia e adequadamente, sobre todas as condições do crédito de maneira clara e ostensiva. O consumidor deve ter ciência do custo efetivo total com a descrição dos elementos que o compõem, da taxa efetiva mensal de juros, da taxa dos juros de mora e do total de encargos, de qualquer natureza, em caso de atraso no pagamento, bem como do montante das prestações, do prazo de validade da oferta, e de seu direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito.

Ademais, deve o fornecedor avaliar a condição financeira do consumidor de forma responsável, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, sendo-lhe vedada expressamente a prática de atos que tenham por finalidade pressionar ou assediar o consumidor para contratação de crédito. Ou seja, diferentemente do que ocorreu no último período de forte crescimento econômico, agora é dever do vendedor a análise prévia da condição financeira do comprador.

Importante destacar que o descumprimento de qualquer obrigação pelo fornecedor poderá acarretar a redução de juros, encargos ou qualquer acréscimo ao valor principal e à dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

Além disso, a lei amplia o rol de nulidade de cláusulas contratuais em contratos firmados com fornecedores ao impor que serão nulas cláusulas que estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores.

Por fim, pelos artigos 104-A a 104-C da lei, institui-se a conciliação no superendividamento, um procedimento de repactuação das dívidas que possibilita ao consumidor cumprir um plano global de pagamento por ele sugerido no prazo máximo de cinco anos, a ser homologado pelo juízo, com determinação expressa de abstenção de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

No que diz respeito especificamente ao segmento imobiliário, destaca-se que tal procedimento de repactuação não se aplica, vez que a lei em seu artigo 104-A, parágrafo 1º, exclui expressamente do processo de repactuação, ainda que decorrentes de relações de consumo, as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real e de financiamentos imobiliários.

A lei é importante e, em síntese, sistematiza o princípio da boa-fé objetiva ao prever deveres de conduta das partes, ou seja, determina a responsabilidade jurídica dos credores de não fornecer créditos sem o exame prévio da condição financeira do consumidor, a fim de não estimular o endividamento imprudente do devedor e, ao consumidor, o dever de não assumir dívidas que ultrapassem sua capacidade de pagamento.

Nesse contexto, a revisão das minutas de contratos de venda e compra de imóveis objeto de incorporação e de loteamento com a observância dos critérios estabelecidos pela novel legislação e dos procedimentos para a contratação com consumidores é de suma importância para sua adequação aos novos contornos éticos das relações de consumo.

 

[1] OLIVEIRA, Carlos E. Elias. e GAGLIANO, Pablo Stolze. Comentários à "Lei do Superendividamento" (Lei nº 14.181, de 01 de julho de 2021) e o Princípio do Crédito Responsável: uma primeira análise. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/7/29FED44D9509EF_ComentariosaLeidoSuperendivida.pdf

[2] LOUREIRO, F. Alguns aspectos dos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras e o Código de Defesa do Consumidor. O Direito e a Incorporação Imobiliária. São Paulo: Sine Nomine, 2016, p. 11-12.

[3] Súmula 1 — TJ/SP: "O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem".
Súmula 2 — TJ/SP: "A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição".
Súmula 3 — TJ/SP: "Reconhecido que o compromissário comprador tem direito à devolução das parcelas pagas por conta do preço, as partes deverão ser repostas ao estado anterior, independentemente de reconvenção".

[4] Lei n. 4.591/1964: Artigo 32 – "§ 2º. Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra".

[5] CHALHUB, M. N. Da Incorporação Imobiliária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 182.

[6] AVVAD, P. E. Direito Imobiliário: teoria e negócios imobiliários: Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 315.

[7] TJSP; Apelação Cível 1018381-15.2019.8.26.0506; Relator (a): Walter Exner; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; j. 09/08/2021.

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