Opinião

A insegurança jurídica na transferência de contratos de concessão

Autores

  • Caio Cesar Figueiroa

    é mestrando em Direito Público pela Direto GV-SP e sócio de Infraestrutura no Cordeiro Lima e Advogados.

  • Mariana de Melo Sanches

    é aluna do MBA em PPP e Concessões da FespSP pós-graduada em Direito Administrativo pela FGV graduada em Direito pela PUC-SP com cursos de extensão em Direito Administrativo Atual das Licitações e Contratos da Administração (USP/Fundação Arcadas e Iasp) e Gestão da Mobilidade Urbana (Insper).

  • Antonio Nelson Gomes da Silva

    é advogado de litígios estratégicos envolvendo licitações contratos administrativos e concessões de serviço público.

3 de setembro de 2021, 17h08

Para os filósofos de plantão, especialmente os epicuristas, a incerteza é tida como parte da natureza das coisas; o acaso não passa despercebido aos economistas, na visão de que cisnes negros são improváveis até suas primeiras manifestações; e temos o Brasil, em que a incerteza parece reinar cega, ou melhor, lugar em que "o futuro é duvidoso e o passado é incerto" [1]. A dominância dessa incerteza ganha corpo nos contratos de concessão de serviços públicos.

Relações contratuais já consolidadas, investimentos realizados, serviços que estão sendo prestados, tudo isso, de uma hora para outra, pode passar a ser questionado. Em voto proferido na ADI 2946, o ministro Dias Toffoli, do STF, reputou inconstitucional a transferência de concessões, regulamentada no artigo 27 da Lei 8.987/95 e, no mesmo ato, determinou que em até dois anos contados da sessão de julgamento todas as transferências realizadas fossem relicitadas.

Embora seja apenas um voto, não se pode deixar de considerar que a postura, infelizmente, endossa a frase-adágio acima citada. A ação, ajuizada pelo procurador-geral da República em 2003, dormitava em berço esplêndido desde então, sem que nada de relevante tivesse ocorrido ao longo desses anos.

Subitamente, após caudalosos 17 anos, em julgamento no Plenário Virtual, sobreveio o mencionado voto, afirmando que a possibilidade de transferência de concessão estaria em desacordo com o artigo 175 da Constituição, uma vez que "quem participou da licitação foi o concessionário, e não um terceiro estranho que não participou do certame" e que "permite-se, portanto, por vias transversas, que terceiro venha a adquirir a condição de concessionário de serviço público sem ter participado previamente do respectivo procedimento licitatório".

Não é necessário adentrar aos meandros da técnica jurídica para se verificar que não há sequer possibilidade lógica de haver a aventada inconstitucionalidade, pois as normas têm campo de abrangência e momento de incidências temporalmente distintos e, a rigor, sequer guardam relação uma com a outra.

Primeiro se licita, e a licitação não busca o melhor contratado, e, sim, a melhor proposta. Somente depois, se o caso, se preenchidos os requisitos legais e se obtida a anuência prévia da Administração é que pode ocorrer a transferência.

Verifica-se ainda que o legislador ordinário cuidou de preservar o resultado do procedimento licitatório, exigindo que o cessionário supra todas as condições de habilitação e que se comprometa a cumprir os termos do contrato, também derivado do certame. A melhor proposta, fruto da licitação, resta assegurada.

Não se vislumbra, assim, como a regra do artigo 27 poderia, em tese, representar uma burla ao dever de licitar, na medida em que a concessão a ser transferida já é fruto de prévia licitação, e que o pretendente deve ostentar os mesmos requisitos do cedente e cumprir exatamente o mesmo contrato.

A par da questão lógica, o voto tem por premissa um equívoco conceitual, que é reputar os contratos de concessão como um contrato personalíssimo, ou seja, como um contrato em que a pessoa do contratado é essencial.

O fato de ser derivado de um procedimento licitatório não imbui no contrato de concessão o traço da pessoalidade. A ideia, aliás, é exatamente oposta. Sendo a impessoalidade um princípio regente da Administração e das contratações públicas, ao Estado não deve importar a percepção subjetiva da pessoa contratada, mas, sim, e somente, o objetivo preenchimento dos requisitos legais.

Observa-se, assim, que o voto encerra um curioso paradoxo: ao vedar a transferência da concessão sob o argumento de que violaria a necessidade de prévia licitação, acaba por dar proeminência à pessoa contratada, e não à manutenção da melhor proposta.

O voto também não perpassa as razões teleológicas e finalísticas que subjazem à regra que viabiliza a transferência de concessão: a incompletude típica dos contratos de concessão, os longos prazos de vigência, a intensa permeabilidade com o cenário político e econômico, tudo isso pode contribuir para que o concessionário originário não tenha condições para cumprir o contrato ou interesse no negócio.

E nem se diga que essa última pretensão lhe seja defesa, pois no Brasil ainda vigora a livre iniciativa (artigo 170 da Constituição), da qual a liberdade empresarial (inclusive a de se manter na condição de prestador de serviço público) somente pode ser restringida se decorrente de previsão literal [2].

E nada, absolutamente nada, garante que a realização de uma nova licitação vá assegurar resultados tão ou mais vantajosos do que a manutenção do contrato a ser executado por outro sujeito. Não raro relicitar acaba sendo mais oneroso.

Nesse sentido, é sintomático que o voto não teça uma consideração sequer sobre os contratos em curso, sobre os investimentos que já foram realizados, sobre os prejuízos ao interesse público decorrentes da extinção abrupta de inúmeras concessões, enfim, sobre a segurança jurídica e institucional que são o fim último da ordem constitucional que o STF deveria resguardar.

Como dito acima, infelizmente a incerteza reina no Brasil e de nada adianta ou adiantará a edição de leis que tratem de segurança jurídica — como é o caso da Lei nº 13.655/2018, que alterou a LINDB, por meio da inclusão de previsões acerca da necessidade de se considerar os efeitos práticos das decisões (artigos 20 e 21), bem como de se prever regime de transição quando da mudança de interpretações (artigo 23), entre outras disposições — se, na prática, isso não for levado em consideração nem mesmo pelo Supremo.

Dizer que quando da tomada de decisão, inclusive judicial, deveriam ser considerados seus efeitos práticos, sequer reclamaria previsão em lei, na medida em que decorre do próprio dever de motivação das decisões. E, no caso, mesmo aqueles que se alinham à tese defendida por Toffoli, deveriam considerar o impacto que se terá às concessionárias e ao poder público, caso firmado o novo entendimento no STF, sob o ponto de vista de custo e prestação dos serviços.

É ingênuo, para dizer o mínimo, pensar que em dois anos será possível licitar diversos projetos do setor da infraestrutura e, ao mesmo tempo, inconsequente, nem mesmo pensar no custo da medida. 

Ainda, é sintomático, como afirmado, e ao mesmo tempo revelador de concepções ainda prevalentes em parcela do Judiciário quando o tema em debate são as concessões de serviço público. Há uma certa romantização do tema.

Embora não se questione que o concessionário atue na busca do lucro, os atos que demonstrem que a concessão está inserida, de fato, numa atividade empresarial, com avaliação de custos, rentabilidade, riscos e que decisões são tomadas com base nesses mesmos fatores tendem a ser mal interpretados pelo Poder Judiciário.

O caso em tela é típico exemplo disso. A possibilidade de transferência de concessão não significa que o concessionário irá simplesmente comercializar a delegação numa busca desenfreada pela obtenção de lucro em detrimento do serviço. Tampouco o particular que assume o faz para driblar as regras de um procedimento licitatório, mas, sim, porque vislumbra ali uma real oportunidade ou necessidade empresarial.

O processo decisório na temática das concessões ainda se apresenta por vezes divorciado da realidade fática, pautado em uma concepção quase moral de concessão de serviço público. Se o disposto no artigo 22, §1º, da LINDB trouxe luz ao que a doutrina elenca como movimento empático ao gestor público [3], não se mostra menos razoável que a mesma empatia se aplique ao parceiro privado.

Embora a sinalização do STF seja grave, tanto por conta das impropriedades técnicas e, sobretudo, por conta do risco à segurança jurídica, a perspectiva é a de que os demais ministros divirjam do voto já apresentado. Espera-se, assim, que o STF não revolva o passado, mantendo a higidez das relações firmadas ao longo de mais de duas décadas, e que o ambiente institucional, no futuro, seja menos duvidoso.

 


[1] A célebre frase tem algo bastante interessante: a incerteza de sua autoria. Já foi atribuída a políticos como ao ex-ministro Pedro Malan, ao ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, e até mesmo ao ex-ministro Guido Mantega.

[2] Cf. MOREIRA, Egon Bockmannº Concessão de serviço público: breves notas sobre a atividade empresarial concessionária. Revista de Direito da procuradoria Geral, Rio de Janeiro. Edição especial, 2012, pp. 100-112; FREITAS, Rafael Véras de. O regime jurídico do ato de transferência das concessões: um encontro entre a regulação contratual e a extracontratual. Revista de Direito Público da EconomiaRDPE, Belo Horizonte, ano 13, nº 50, p. 171, abr./junº 2015.

[3] Cf. SILVA, Marco Aurélio de Barcelos. A ‘Lei da Empatia’: impactos do PL 7.448/2017 sobre o controle externo da Administração Pública Brasileira. Colunistas, nº 394, 2018. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/marco-aurelio-de-barcelos-silva/a-lei-da-empatia-impactos-do-pl-7448-2017-sobre-o-controle-externo-da-administra>.

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