Opinião

Lei 'anticrime': recebimento fundamentado da denúncia

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1 de setembro de 2021, 12h07

A edição da Lei 13.964/19, naquilo que tange ao Código de Processo Penal, é a busca de um alinhamento entre a Constituição e o CPP, objetivando o adensamento deste naquilo que, desde 1988, vetoriza a Magna Carta republicana.

O abalo estrutural é forte, posto que refunda o processo penal nos moldes até aqui praticados.

No que diz respeito ao princípio da motivação — artigo 93 da CF/88 —, o impacto também é significativo e vem expresso no artigo 315, seus parágrafos e incisos do codex. A resultante da desobediência deste é o artigo 564 e o novo início V, com a cominação de nulidade absoluta da decisão.

Ali se vê, com meridiana clareza, que a decisão interlocutória de recebimento da denúncia prevista no artigo 3° B, XIV, da lei em comento há de respeitar os ditames do artigo 315, §2º, devendo explicitar "o porquê" e "com base em que" se apoiou o juiz para recebê-la ou rejeitá-la após a resposta da defesa.

Tal importantíssima decisão, porque altera drasticamente o status do indivíduo perante o social [1], transforma investigado em réu, enfim, inaugura a ação penal, não pode se furtar a demonstrar por que os dados colhidos pelo modelo de investigação preliminar justificam a imposição amarga de responder a um processo penal, bem como declarar as razões pelas quais os argumentos apresentados pela defesa não teriam sido suficientes ao seu convencimento.

Exatamente nesse sentido, leciona Antônio Magalhães:

"É evidente, por outro lado, que a esse modelo de decisão (recebimento da denúncia) deve corresponder uma adequada justificação, em que o juiz demonstre haver examinado tais questões, dizendo por que concluiu pela admissibilidade da acusação. (…) se há defesa, não pode o juiz simplesmente desconsiderar as alegações apresentadas, deixando de motivar a sua decisão" [2].

Não é possível tergiversar-se com tal "garantia das garantias" que é a fundamentação e que, no caso, conforme Carlos Eduardo Scheid:

"(…) É aquela motivação que serve precisamente aos fatos e argumentos inclusos no processo-crime instaurado por força de um determinado episódio. Para nenhum outro mais! Não se admitem 'fórmulas prontas', 'discursos amoldáveis a várias decisões' e quaisquer outros subterfúgios do gênero" [3].

É o fim, enfim, para as decisões, e todas elas, conforme o artigo 315, §2º, do CPP, do lamentável uso do control C + control V.

O tema não é novo, como nova também não é a resistência dos juízes ao atendimento à norma constitucional da motivação constante na Magna Carta [4].

Não obstante, conforme já dizíamos, "desse sistema normativo (CPP), exige-se relação de compatibilidade com a Lei maior, exige-se, mais e ainda, que busque diretrizes e encontre causação na Carta Magna para garantia de sua própria legitimidade" [5]. Também a atual doutrina não discrepa desse entendimento [6].

Habemus lex! A lei está aí. O princípio da legitimidade, ao que saibamos, não foi derrogado. Mesmo que o juiz das garantias se encontre em suspenso por força da decisão do ministro Toffoli do STF [7], as demais disposições legais, tais como a exigência da motivação do recebimento da denúncia do artigo 315, §2º, se encontram em vigor, posto que não afetadas pela liminar. Também em vigor a sanção de nulidade "em decorrência de decisão carente de fundamentação", prevista no artigo 564, V, do CPP.

Que se a cumpra, pois, conforme Antônio Vieira, isso é sagrado:

"Dispensam-se as leis por utilidades — que ordinariamente são dos particulares, e não suas — e abre-se a porta à ruína universal, que só se pode evitar com a observância inviolável das leis. Percam-se os frutos da árvore da vida, que são a mais preciosa coisa que Deus criou; percam-se as mesmas vidas, e não se recupere a imortalidade; morra e sepulte-se o mundo todo, mas a lei não se quebre nem se dispense" [8].

 


[1] Para Carnelutti: "o processo em si mesmo é uma tortura (…) o homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras (…). Logo que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, é feito em pedaços." (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 3ª ed. Leme: EDIJUR, 2015, pp. 48/49).

[2] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª Edição, 2013, pp. 172/173.

[3] SCHEID, Carlos Eduardo. A Motivação das decisões penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 161.

[4] Como bem ilustram Rogério Cunha e Ronaldo Pinto: "Talvez em razão da teimosia em se obedecer ao citado mandamento constitucional, o legislador, não raras vezes, tem que explicar que não somente a ‘cocada vem do coco, mas que o coco vem do coqueiro’" (CUNHA, R. Sanches; PINTO, R. Batista. Códido de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados por artigos. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1535)

[5] FURTADO, Renato de Oliveira. Denúncia: Necessidade de Fundamentação de Seu Recebimento. São Paulo: Revista Dos Tribunais, vol. 682, p. 406.

[6] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, pp. 1006 e 1015. DEZEN, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 6º ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, pp. 1023/1024. NICOLITT, André. Manual de Processe Penal.  10ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 624. PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 1.047. DE LIMA, Renato Brasileiro. Código de Processo Penal Comentado. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.172. CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados por artigo. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, ano 2020, pp. 1217/1218. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 74 e 705.

[8] VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão da terceira quarta-feira da Quaresma. §V. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0149-02263.html.

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