Embargos Culturais

Comentário sobre 'Lolita', de Vladimir Nabokov

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

31 de outubro de 2021, 8h00

"Lolita", de Vladimir Nabokov, é um livro polêmico. Muito polêmico. Leva ao limite a discussão referente à extensão da criação literária. Pode a literatura explorar um tema absolutamente discutível? Tabus podem substancializar enredos literários? Publicado primeiramente na França, em 1957, "Lolita" suscitou muita discussão. Logo em seguida foi publicado nos Estados Unidos. A polêmica permaneceu vigorosa. Presentemente, a discussão é ainda fortíssima. O assunto é pesado. Exige coragem. Evidencia um problema gravíssimo que todos precisamos enfrentar.

Spacca
Nabokov nasceu na Rússia, no fim do século 19. Sua família tinha recursos, e seu pai fora um importante membro do governo dos mencheviques, logo no início da revolução russa. Aos 22 anos emigrou para os Estados Unidos. Lecionou literatura, foi obcecado com entomologia, inclusive colecionando e catalogando borboletas, a par de lecionar essa disciplina.

Entre as várias possibilidades de leitura que "Lolita" suscita percebe-se, obviamente, o gravíssimo problema da pedofilia, que exige vigilância e severidade implacáveis. No rigor, ao tratar da atração de um homem adulto por uma menina pré-adolescente, o tema seria a mais precisamente a "hebefilia". Isto é, a pedofilia refere-se a crianças, a hebefilia a pré-adolescentes e a efebofilia a adolescentes. Há fortíssimas implicações criminais nessas condutas. Em "Lolita" está em jogo uma situação de hebefilia, e não de pedofilia, como lemos constantemente. O termo pedofilia, no entanto, assimila as demais, para efeitos psicanalíticos e penais. Insisto, o assunto exige vigilância e rigidez implacáveis, principalmente nesses tempos de redes sociais em relação às quais não há controle.

Há outros aspectos que rondam esse enigmático livro. Tem-se, na expressão do autor, uma criança obstinada, uma mãe egoísta e um maníaco ofegante. Esses três personagens (e eu incluiria um quarto, também maníaco ofegante) nos advertem contra tendências perigosas, apontando males poderosíssimos contra os quais devemos lutar. "Lolita" expõe-nos um tema jurídico, de fundo psicanalítico.

O leitor vai preparado para enfrentar um assunto assustador e repulsivo. Esse condicionamento pode ser a razão de demonização da obra e, ao mesmo tempo, o que mais chama a atenção de quem pretende, com a literatura, sondar a experiência humana. As versões levadas para o cinema, em 1962 e em 1997, realçaram esse lado maldito do livro. Ainda que muito próximas (a versão de 1997 reproduz muitos diálogos da versão de 1962), percebe-se duas abordagens muitos distintas de uma mesma narrativa.

A versão de 1997 foi dirigida por Adrian Lyne, com Jeremy Irons, Melanie Griffith, Dominique Swain e Frank Langella nos papeis principais. A versão de 1962 (cujo roteiro é do próprio Nabokov) foi dirigida por Stanley Kubrick, com James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon e Peter Sellers nos papeis principais. A versão de 1962 sublinha uma atração às vezes paternal, ainda que efetivamente patológica. A versão de 1997 é mais agressiva, enfatiza a lascívia do personagem principal. Ao que consta, a versão de 1997 causa muito mais polêmica (especialmente na Austrália e nos Estados Unidos) do que a versão de 1962. A versão de 1997 é mais fiel para com a narrativa do livro.

Hubert Hubert (H.H.), personagem central do livro, nasceu na França. Passou a infância no sul desse país, sua família cuidava de um hotel. Ainda adolescente, conheceu (e apaixonou-se) por uma menina também adolescente. Seu nome era Annabel. Faleceu de tifo. A amargura da perda da amada é o pano de fundo que Nabokov fixou para a estrutura da narrativa, talvez com o objetivo de gerar um álibi para a conduta do personagem. Uma ferida que não cicatrizou.

Especialista em literatura francesa, H.H. vai lecionar nos Estados Unidos. Na busca de um lugar para morar, pretende alugar um quarto em uma casa. A proprietária, Charlotte, viúva, lhe mostra o local, com bom preço, mas que não agrada ao professor. Subitamente, ao olhar para o jardim, percebe uma adolescente tomando sol. Era filha da proprietária da casa. Tomado por uma atração irresistível, resolve ficar com o quarto. Insinua-se com a menina (Lolita, o nome é Dolores). Com o objetivo de ficar próximo da garota, chega se casar com a mãe. Esta descobre que o hóspede-marido flerta com a filha. Desespera-se. Saiu correndo. Foi atropelada, morrendo logo em seguida. Intimamente, H. H. não se abala com a morte de Charlotte. Havia inclusive pensado em matá-la. Para ele, o casamento era um suplício. Começa então a trama macabra.

A escritora Sarah Weinman sustentou que Nabokov retirou o tema de "Lolita" em caso real. Trata-se do rapto de uma menina chamada Sally Horner, ocorrido em 1948. Sally fora raptada por um pedófilo, Frank la Salle. Conseguiu, no entanto, escapar e voltar para casa.

Pode-se também cogitar de uma leitura desse livro no contexto de uma reflexão moral. O corruptor (H. H.) morre na prisão. A mãe (Charlotte) foi atropelada. A menina (Lolita) morreu ao dar à luz, o que já significa uma metáfora poderosíssima no tema da gravidez infantil.

Todos os personagens, sem exclusão, pagaram por seus delitos. Lamento, enfaticamente, a trajetória de Lolita, marcada pela tragédia. De todos, era a única que não contava com vontade própria e com possibilidades reais de se defender. Na minha percepção, representa uma criança indefesa, violentada, abusada, agredida, de quem o destino retirou qualquer possibilidade de felicidade.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!