Diário de Classe

As criptomoedas e o Estado em xeque: uma nova crise se apresenta?

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30 de outubro de 2021, 8h00

É conhecida por todos aqueles globalmente preocupados com a concretização dos direitos sociais a pessimista leitura de Pierre Rosanvallon [1] sobre o tema. Como ponto fulcral de sua proposta, o professor francês traz — no seu "A crise do Estado-providência" — um interessante paralelo entre uma crescente demanda por direitos e uma cada vez mais insuficiente bolsa de financiamento de políticas públicas. Esse seria o principal entrave para a realização de projetos de bem-estar já na segunda metade do século XX, fixando uma espécie de incógnita em relação àqueles modelos de diluição de riscos sociais alavancados — não à toa — nos chamados Anos de Ouro do Capitalismo.

No Brasil, o desdobramento dessa mesma discussão pode ser bem visto nos aprofundamentos teóricos de Jose Luis Bolzan de Morais [2] — com as crises do Estado bem demarcadas por um déficit fiscal-financeiro, de um lado, e o sujeito forjado pelas bases do liberalismo, de outro, incapaz de dialogar com o fundamento desse importante projeto político-jurídico —, ou ainda frente às chamadas escolhas trágicas trazidas à tona por Fernando Scaff [3] como inexorável resultado desse descompasso que, no mais, só faz acender o alerta dos Estados — sobretudo, os desiguais, como o Brasil — e evidenciar a relevância de teorias da decisão — como a CHD de Lenio Luiz Streck[4] — como condição de possibilidade para distinguir, por exemplo, ativismo judicial de judicialização da política.

Contudo, impossível não reparar — nesse sentido e até aqui — no fio condutor da discussão atrelado ao financiamento dos programas de bem-estar, embaralhando políticas de Estado — bem insculpidas na Constituição — e políticas de governo — limitadas a programas de grupos transitória e eventualmente dominantes, mas impreterivelmente vinculadas às primeiras. É possível, nesse sentido, ainda somar a esse catálogo a proposta que vê a seminal crise fiscal-financeira agudizada pela frenética passagem de capitalismos — do industrial ao financeirizado [5] — àquela leitura que vê nas transformações do mundo do trabalho a condição de possibilidade para pensar essa mesma crise não mais a partir de um traço cíclico, mas permanente [6].

Para além disso, a contemporaneidade, contudo, tem sido pródiga em oferecer ainda inéditos desdobramentos que, se a proximidade com a emergência dos fatos impede o necessário aprofundamento do argumento, permite, ao menos, a sua problematização. Trata-se da descentralização do capital através de criptoativos. No limite dessa abordagem, o ponto é: como abastecer a bolsa que financia políticas de diluição de riscos sociais — como saúde e educação, por exemplo — a partir de modelos cuja principal característica é justamente ocorrer à margem de instituições que são, de algum modo, ligadas ao Estado?

Mesmo que seja impossível dimensionar na atualidade o impacto do surgimento e popularização das moedas digitais descentralizadas, é possível perceber um campo de estudo vasto e necessário. As transformações que os criptoativos provocam na relação entre Estado e Economia são tão profundas que promovem uma espécie de "revolução financeira", na qual o Estado se confronta com uma carência no seu âmbito de controle, em face de uma circulação de moeda que passa a ser descentralizada.

O próprio enquadramento dos criptoativos na categoria "moeda" é objeto de debate: considerando que a palavra moeda é utilizada em circunstâncias diversas, mas sempre ligadas ao meio de pagamento empregado em determinada transação, ao conjunto de notas bancárias e metal cunhado de determinado país, ou ainda a um complexo de bens, depósitos bancários, títulos de crédito entre outros, o conceito de moeda costuma levar em conta as funções que esta assume [7].

Mesmo nessa concepção funcional, a moeda foi se modificando para se adequar à realidade social de modo que o fenômeno comumente designado "moeda digital", "moeda virtual" ou mais frequentemente "criptomoeda" apresenta peculiaridades quanto à sua gênese e quanto a seu desempenho cujo estudo, antecedendo uma avaliação mais profunda da evolução da moeda [8].

Antes de desdobrar essas consequências desse que já é um cenário consolidado, é necessário observar que as criptomoedas (cryptocoins) foram criadas por meio de um programa especial de computador, que também a criptografa, adotado pelos que a lançam ao público pela internet; eles a apresentam como uma moeda virtual ou digital não emitida, nem garantida, por um Estado ou autoridade central legalmente investido(a) de poderes para tanto, mas que é, ou provavelmente será, aceita como moeda na internet por consenso dos usuários e emitentes. São moedas lançadas publicamente na internet em diversos sites com o objetivo de financiar projetos de variados tipos ou apenas para os usuários a terem como moeda, pois são adquiridas pelos investidores ou interessados em participar do projeto ou serem titulares das criptomoedas emitidas [9].

A discussão levantada nessa coluna — e que se coloca mais como provocação — se enquadra exatamente no contexto de um Estado afetado por diversas crises, que evidenciam os limites de um projeto político de um determinado tempo, mas que é colocado em xeque diante da complexidade contemporânea. O problema das criptomoedas é não somente representativo, mas também especialmente desafiador: quais serão os impactos para a concepção de Estado democrático para um contexto em que o aparato estatal não apresenta mais a mesma força? Esse é o ponto.

A popularização desses ativos integra uma revolução financeira disruptiva que promete afetar a todos, de países ricos a pobres, e que tem como base um conjunto de inovações que repensaram a forma de se relacionar com o dinheiro e com o tráfego de informações [10]. Trata-se de um impacto tão poderoso quanto o do próprio advento da internet em si, uma vez que incide sobre a ideia de liberdade individual em face do Estado. Explica-se: a popularização das criptomoedas tem como consequência uma diminuição drástica no poder de controle do Estado sobre a economia, uma vez que as moedas digitais que funcionam em estrutura descentralizada escapam ao total alcance do Estado.

Mesmo que não se encaixe nas definições tradicionais de moeda, os criptoativos são uma modalidade de ativo financeiro, que podem ser utilizados como instrumentos de troca ou meio de pagamento, com maior ou menor liquidez. Cada tipo de ativo irá apresentar características diferenciadas inclusive no que diz respeito à amplitude da sua regulação. Esse ponto evidencia uma questão anterior: num capitalismo financeirizado, a capacidade de controle do Estado naturalmente se retrai, o que leva à seguinte pergunta: em quais aspectos se manifesta o controle do Estado sobre a economia? A resposta passa por duas perspectivas: o controle enquanto manejo de variáveis econômicas e o controle enquanto submissão a limites jurídicos de regulamentação.

Como visto, trata-se de uma discussão que, para os limites do momento, está lançada. Um grande desafio que se apresenta é o de repensar a concepção de Estado para além de um centro unificado de poder sem perder de vista o seu papel de preservar as liberdades individuais. Identificar esses desafios é um primeiro passo. Num segundo momento, urge acompanhar a profunda transformação pela qual passa a sociedade global, em que mecanismos clássicos que preservavam o monopólio estatal sobre a moeda são colocados à prova diante do processos inovadores que se utilizam da internet.


 

 

 

 

 

 

 

Pode-se observar, desta forma, que a sociedade global passa por uma profunda alteração diante da insuficiência de mecanismos clássicos que dotavam o Estado nacional de um certo monopólio sobre a moeda. À proporção que esses mecanismos estão sendo questionados, ganha força o processo inovador que envolve o uso e a popularização das criptomoedas. A partir disso, se colocam os desafios e a averiguação de possibilidades de regulamentação dessa nova dinâmica [11].

 

No limite, retorna-se ao grande problema de fundo: como pensar o Estado Democrático de Direito diante dos desafios da contemporaneidade? É nesse contexto que o debate a respeito das crises que afetam esse modelo estatal contribui para prospectar um diagnóstico e pensar em soluções, de forma a não ignorar as transformações — que são inevitáveis —, sem perder de vista parâmetros de regulação que sirvam a finalidades democráticas.


[1] ROSANVALLON, Pierre. A crise do estado-providência. Tradução de Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia: UFG, 1997.

[2] BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado contemporâneo. In: VENTURA, L. América Latina: Cidadania, desenvolvimento e Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

BOLZAN de MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos Direitos Humanos. Coleção Estado e Constituição 1. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.


 

[3] SCAFF, Fernando Facury. Você nem sabe, mas vive entre a reserva do possível e as escolhas trágicas. In: Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-23/contas-vista-vivemos-entre-reserva-possivel-escolhas-tragicas.

[4] Por toda a obra, remetemos o leitor a STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed., atual. e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[5] COMPARATO, Fábio Konder. Significados e perspectivas da crise atual. In: DOWBOR, Ladislau; MOSANER, Marcelo (Orgs.). A crise brasileira: coletânea de contribuições de professores da PUC/SP. São Paulo: Editora Contracorrente, 2016.


[6] COPELLI, Giancarlo Montagner. Construções entre filosofia da linguagem e Teoria do Estado: o Estado Social como Estado de Direito e seus desafios no Brasil (Tese de Doutoramento) Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2018.

[7] Ghirardi, Maria do Carmo Garcez . Criptomoedas: aspectos jurídicos. Maria do Carmo Garcez Ghirardi. São Paulo: Grupo Almedina, 2020. p. 24.

[8] Ghirardi, Maria do Carmo Garcez . Criptomoedas: aspectos jurídicos. Maria do Carmo Garcez Ghirardi. São Paulo: Grupo Almedina, 2020. p. 24.

[9] MACHIONI, Jarbas Andrade. ICO e as criptomoedas: regime jurídico e suas incertezas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais (RDB), São Paulo, v. 80, 2018.

[10] PELLINI, Rudá. O futuro do dinheiro. São Paulo: Gente editora, 2019.

[11] SICHEL, Ricardo Luiz ; CALIXTO, Sidney rodrigues . Criptomoedas. Impactos na economia global. Perspectivas. DIREITO DA CIDADE, v. 10, p. 1622-1641, 2018.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em estágio pós-doutoral (Capes PNPD) na mesma instituição e integrante do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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