Opinião

A regulação normativa e o critério da segurança jurídica

Autor

  • Flavine Meghy Metne Mendes

    é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

26 de outubro de 2021, 16h06

Como se sabe, a segurança jurídica é a essência da garantia da ordem. No processo de elaboração, aplicação e monitoramento das normas jurídicas, é premente ter o cuidado de precisão e coerência com os padrões que regem a melhor técnica normativa, dentro de um espaço legítimo de interação entre regulador, regulado e sociedade. Demanda, portanto, do regulador uma postura atenta, com olhar prospectivo na edição das normas jurídicas. 

Nesse ponto repousa a advertência que impede à Administração Pública a possibilidade de alterar, sem justificativa consistente, seu modus operandi, cabendo recordar que, via de regra, a máquina pública age segundo precedentes e objetivamente de acordo com o interesse público. Muitas vezes, é preferível manter as situações jurídicas estabilizadas, embora constituídas de forma atécnica, a favor de determinados agentes públicos ou privados, no intuito de evitar leviandade decisória, mitigação da confiança jurídica depositada na entidade reguladora e, em última análise, maiores impactos econômicos. 

A segurança jurídica requer mais do que clareza, para que se possa atender aos desafios atuais. Já existe consenso quanto à importância do estabelecimento de uma realidade regulatória, por meio da aferição de continuidade, correções ou até mesmo suspensão de determinada medida regulatória implementada, à luz do suporte constitucional.

Nesse passo, cumpre ter em mente a estrutura constitucional que comanda as ações do Estado, em que a centralidade dos direitos fundamentais constitui vetor das ações econômicas e sociais, inspirando o conteúdo das regras legais. Tal requisito exige, portanto, esforços ativos no sentido de remover obstáculos à participação dos cidadãos na vida política, econômica, jurídica e social. Em síntese, compete às autoridades públicas promover condições para que os princípios da liberdade e igualdade dos cidadãos sejam efetivamente usufruídos.

Trata-se, portanto, de elaborar normas que espelhem o compartilhamento de benefícios e responsabilidades consentâneos à realização dos valores fundantes da ordem constitucional, entre os quais sobressai a implementação de iniciativas que impulsionam o desenvolvimento socioeconômico e propiciem melhores condições de vida à sociedade.

Aspecto igualmente relevante, no contexto do Estado contemporâneo, é a proliferação de centros normativos, provocados pelo acentuado nível de descentralização dos governos. Pela natureza das responsabilidades e equilíbrio dos interesses em jogo, um dos eixos determinantes da segurança jurídica é a confiabilidade na manutenção de um balanço equilibrado, com respeito ao papel dos diversos atores sociais e a propriedade de outras formas de regulação (autorregulação e corregulação), em relação complementar com a regulação estatal.

É crucial, portanto, lançar novo olhar à manutenção da ordem, função classicamente entranhada no rol das competências exclusivas do Estado. A complexidade dos desafios a enfrentar e os efeitos da difusão e propagação dos riscos ampliaram consideravelmente seu alcance, reclamando, em reforço à coesão social e segurança jurídica, mobilização de vários níveis de intervenção e o concurso de vários atores públicos e privados.

A segurança jurídica demanda responsabilidade organizacional dos contextos nos quais serão tomadas as decisões públicas. Para Baldwin, as normas mais consistentes trazem como referência o contexto de sua implementação, como resultado de uma sensibilidade compartilhada. Na maioria das vezes, são comandos regulamentares que preveem a observância de determinados princípios e regras básicas, dirigidas à certeza e confiabilidade no trato de matérias regulatórias cada vez mais desafiadoras.

A consistência em domínios complexos pode ser bem percebida por meio de uma combinação de regras e princípios. Em sentido semelhante, na ambiência internacional, defende-se que, para lidar com a velocidade com que se processam as mudanças sociais, econômicas e sociais, a norma regulatória deve possuir termos redefiníveis, evitando-se que a penumbra da incerteza absorva o núcleo da norma regulatória.

As mudanças são bem frequentes no plano da regulamentação das novas tecnologias, exigindo-se do regulador dose extra de prudência, sendo válido realçar a dificuldade de harmonização de inovação tecnológica com o arcabouço normativo preexistente, construído sobre fatos e premissas pretéritas.

Segundo o dilema de Collingridge, o desafio de controlar os impactos de nova tecnologia envolve dois problemas paradoxais: 1) informacional, os efeitos de uma tecnologia somente podem ser medidos quando a mesma já estiver suficientemente desenvolvida e em uso; 2) de poder, pois o controle é difícil de estabelecer, quando a inovação estiver consolidada.

Baptista acrescenta que na circunstância em que a decisão de regular é relativamente contemporânea ao surgimento da nova tecnologia, até mesmo por falta de elementos de informação e dados de desempenho, recomenda-se, em nome da segurança jurídica, que o regulador se apoie em bases mais principiológicas, parâmetros gerais, sob pena de fracasso na sua missão. Ao contrário, se a opção por regular ocorrer em momento posterior, quando a inovação disruptiva estiver consolidada, é provável que o regulador eleja regulação mais extensiva e detalhista, diante da aprendizagem adquirida quando da consolidação daquela tecnologia. Como destacado no dilema de Collingridge, durante esse processo, pode-se encontrar resistências à intervenção regulatória. No intuito do alcance de regulação eficiente, o regulador se vê desafiado a ponderar dois vetores: velocidade e nível de abrangência.

Para que o futuro seja propício a um ambiente de negócios mais adequado, é imperioso um olhar prospectivo ao princípio da segurança jurídica e aos seus pilares: 1) organicidade e clareza; 2) celeridade; 3) relação articulada entre o Estado e a sociedade; 4) desburocratização. A formalização das escolhas públicas nesses moldes é imprescindível à manutenção do equilíbrio social.

 

Referências bibliográficas
BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding regulation: theory, strategy and practic. Oxford: Oxford University Press, 2012.

Baptista, P., & Keller, C. I. (2016). Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios trazidos pelas inovações disruptivas. Revista De Direito Administrativo, 273, 123–163. https://doi.org/10.12660/rda.v273.2016.66659.

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