Opinião

O direito de arrependimento na compra de passagens aéreas pela internet

Autor

  • Débora Fernandes Maranhão

    é pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e advogada do Núcleo de Prática Jurídica da UnB.

23 de outubro de 2021, 6h03

Muito embora o artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) garanta ao consumidor prazo de sete dias para refletir e extinguir o contrato celebrado fora do estabelecimento comercial, a prática, na venda de passagens aéreas pela internet, demonstra um prazo de apenas 24 horas para o arrependimento do consumidor.

Por um lado, a compra de passagens aéreas não requer a verificação física do bem de consumo e não enseja uma compra desinformada, nesse sentido. Contudo, por outro, o direito de arrependimento, na forma no Código de Defesa do Consumidor (CDC), é uma proteção do consumidor diante de práticas comerciais agressivas, inerentes ao mercado virtual.

Vê-se, assim, que há um descompasso entre a Resolução nº 400/2016 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) — que sustenta o prazo praticado pelas companhias aéreas — e o artigo 49 do CDC. Face ao conflito de normas, este artigo almeja lograr à norma aplicável no caso em comento e, ao fim, ao prazo real que detém o consumidor de passagens aéreas pela internet.

Isso posto, o CDC, em seu artigo 49 [1], garante ao indivíduo um período de sete dias para reflexão acerca de compras feitas fora do estabelecimento comercial, é o direito de arrependimento. A lei condiciona o exercício deste direito apenas ao fato de que a contratação deve ocorrer fora do estabelecimento comercial. Trata-se de um direito potestativo que pode ser exercido a critério do consumidor, sem necessidade de justificativa. Para além, o dispositivo especifica o direito aos casos em que a contratação foi feita por telefone ou a domicílio. Dessa forma, o consumidor está resguardado em compras virtuais, apesar de não estar expresso no texto legal.

Conquanto o CDC não preveja exceções ao arrependimento, a doutrina aponta algumas: produtos perecíveis, personalizados sob encomenda — mediante prestação de informações detalhadas ao consumidor — arquivos digitais de som, imagens e textos e livros eletrônicos [2]. Os exemplos são justificáveis, vez que correspondem ao aproveitamento do serviço ou à impossibilidade retomar a comercialização do bem em virtude de sua natureza. Demais restrições ao direito de arrependimento configuram abusividade do fornecedor e não são toleradas.

No que se refere à compra de passagens aéreas pela internet, observa-se um comportamento diferente por parte dos fornecedores. Ocorre que ao comprar a passagem em meio eletrônico seja diretamente na companhia, seja em sites parceiros, o consumidor se depara com regras de cancelamento que destoam do que está disposto no CDC. O artigo 49 prevê os sete dias para que o consumidor possa refletir, mas a prática comercial, na venda das passagens, é que o consumidor tem apenas 24 horas para cancelar a compra e receber os valores pagos sem cobranças adicionais.

A fim de ilustrar a diferença supracitada, foram eleitos três sites de bilhetes aéreos. A escolha desses sites busca representar as principais empresas de aviação atuantes no Brasil — sob o critério do tamanho de suas frotas [3]. São elas: Gol, Latam e Azul.

No site da Gol, há a informação sobre a possibilidade de cancelamento da passagem, da seguinte forma:

"Para compras feitas com antecedência igual ou superior a sete dias em relação à data de embarque, o passageiro poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 horas, a contar do recebimento do seu comprovante. Demais casos, o passageiro poderá solicitar o cancelamento, crédito ou reembolso podendo ser aplicadas penalidades conforme regra tarifária" [4].

A Latam repassa ao consumidor informação semelhante:

"Você pode solicitar o reembolso integral da sua passagem, desde que faça a solicitação até 24h após o recebimento do comprovante, e que a compra tenha ocorrido pelo menos sete dias antes da data do voo, conforme artigo 11 da Resolução nº 400/2016 da Anac" [5].

No site da empresa Azul, há, inclusive, menção ao direito de arrependimento, mas de maneira distinta da normatizada no CDC:

"Direito de arrependimento: será permitido desistir do bilhete adquirido, sem ônus, no prazo de até 24 horas após a emissão do bilhete e o respectivo recebimento do comprovante, desde que haja antecedência igual ou superior a sete dias em relação à data de embarque do voo de ida" [6].

Assim, fica demonstrado que, em que pese o CDC prever sete dias para o arrependimento do consumidor, as empresas aéreas seguem uma política de cancelamento uníssona, na qual o consumidor tem direito apenas a 24 horas para refletir — isso se a compra for efetuada antes de sete dias do embarque.

É a Resolução nº 400/2016, da Anac, que respalda esse comportamento no caso das passagens aéreas, conforme artigo 11:

"Artigo 11  O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 horas, a contar do recebimento do seu comprovante. Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a sete dias em relação à data de embarque".

Na verdade, o referido artigo 11 configura uma norma antijurídica [7], porquanto advém de uma resolução que vai de encontro a uma lei federal, o CDC. O presente conflito de normas clama o diálogo das fontes para que seja aplicado o dispositivo que coaduna com as normas constitucionais [8] — interpretação conforme à Constituição.  Nesse sentido, relembra-se que o direito ao consumidor está assegurado na CRFB/88, no artigo 5º, XXXII, e é um dos princípios da ordem econômica brasileira, de acordo com o artigo 170, V. Além disso, o artigo 48 ainda antevê a elaboração do código de defesa do consumidor.

O CDC é uma norma de ordem pública e de interesse social, bem como é uma norma principiológica, que decorre expressamente da Constituição Federal. Flávio Tartuce sustenta que o CDC tem status supralegal [9], ficando hierarquicamente acima das demais normas infraconstitucionais. No caso, é superior à Resolução da Anac.

Além disso, segundo Cláudia Lima Marques [10], uma das soluções encontradas, por meio do diálogo das fontes, é a subsunção à norma mais favorável à parte mais fraca da relação. Nessa senda, ressalta-se a hipossuficiência do consumidor diante da força econômica dominante do fornecedor [11]. Então, o CDC é a norma que protege aquele que está mais vulnerável nesta relação de consumo, o consumidor. Ainda nesse diálogo, outro ponto que indica a incidência do prazo de sete dias é a especialidade da norma consumerista [12]. Uma vez que se está diante de uma relação de consumo, o CDC é a norma especial aplicável.

Ademais, o princípio da vedação do retrocesso social impede que seja aplicada norma que gera o retrocesso de direitos gozados pelo consumidor. A resolução da Anac, então, deve ser aplicada em harmonia com os direitos já consagrados pelo CDC [13]. Caso contrário, estaria o ordenamento a contribuir ao enriquecimento sem causa do fornecedor que, sem prestar o serviço, devido ao cancelamento, recebe por ele.

Corroborando a aplicação do artigo 49, em 2012, antes que a Anac regulasse a questão, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor — vinculado ao Ministério da Justiça — havia se manifestado, em nota técnica, pela aplicação do CDC em transportes aéreos. Nessa oportunidade, era abordado um conflito aparente de normas entre o CDC, o CC/02, as Convenções de Varsóvia e Montreal e o Código Brasileiro de Aeronáutica. Embora não fosse assunto central da nota, foi referida a aplicação de norma que desse tratamento diferente do CDC ao cancelamento de bilhetes aéreos. Por fim, a conclusão foi:

"O status constitucional conferido à matéria 'defesa do consumidor' implica a prevalência das normas protetivas do consumidor sobre as demais, estejam elas contidas no CDC, no CC, no CBA, nas convenções e tratados internacionais ou mesmo nas resoluções da Anac" [14].

No entanto, o direito de arrependimento de sete dias na compra de passagens aéreas não é uma questão pacífica. A fim de ilustrar o posicionamento oposto, tem-se a APC 2012.01.1.036089-6, julgada pela primeira turma cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DFT). No acórdão, dispôs-se que a gênese teleológica do direito de arrependimento se funda na proteção do consumidor frente a práticas agressivas de comércio. Além disso, a ausência de contato direto com o produto ou serviço justifica beneficiar o consumidor para que ele possa realizar uma compra consciente, de acordo com suas expectativas e necessidades. Não obstante, no caso da compra de passagens aéreas, a maioria da turma entendeu que se trata de uma forma de venda comum nesse mercado e que não há diferença substancial entre a compra desse bem no balcão da companhia ou em meio virtual. Desse modo, decidiu pela inaplicabilidade do artigo 49 do CDC na compra de passagens aéreas.

O próprio acórdão supracitado menciona que o direito de arrependimento não se justifica somente na falta de acesso físico ao produto, mas também na defesa do consumidor contra práticas que compelem a venda. Impera a proteção do consumidor de boa-fé, ainda que a passagem aérea não seja um bem que demande análise física para ser adquirido. O consumidor é constantemente afetado por publicidades excessivas e por um mercado virtual em ascensão, carregado de práticas que sugestionam e induzem o consumo de bens e serviços.

O direito de arrependimento intenta evitar compras por impulso, sob forte influência da publicidade e sem o exame do produto ou serviço [15]. Condições que não deixam de ocorrer no comércio eletrônico de passagens aéreas. Como exemplo, há as práticas corriqueiras de persuasão pela oferta esporádica de passagens a preços mais acessíveis e pela diferenciação de benefícios em tarifas promocionais.

Todavia, filiando-se à posição em que o consumidor dispõe do prazo de sete dias para reflexão, ele não pode exercê-lo com abuso ou desrespeitando a boa-fé e a função social do negócio, artigo 187 do CC/02 [16]. Assim, a aplicação do artigo 49 do CDC não protege o exercício do arrependimento para atender interesses que excedam a boa-fé, é o caso de realizar diversas compras já antevendo a extinção do contrato, com o fim de causar prejuízos ao fornecedor.

Para além, sabe-se que o CDC consiste em um microssistema jurídico autônomo que é soberano frente a normas infraconstitucionais conflitantes [17]. O artigo 49 do CDC emerge no ordenamento com o fim social de resguardar o consumidor inserido no contexto eletrônico e exposto aos métodos de compra e venda contemporâneos. Nesse cenário, o direito de arrependimento existe para remediar o consumidor na celebração de contratos maculados pelos vícios da vontade, em particular, a coação e o erro [18].

Não é uma questão pacífica. Porém, no conflito de normas entre o artigo 49 do CDC e o artigo 11 da Resolução nº 400/2016 da Anac, o diálogo das fontes emana a aplicação da norma que responde melhor às disposições constitucionais, além de favorecer àquela mais adequada à proteção da parte vulnerável da relação de consumo. Nesse sentido, a CRFB/88 determina a proteção do consumidor e confere fundamento expresso ao CDC. Além disso, o CDC é a norma mais específica, já que atende à relação de consumo existente na compra e venda de passagens aéreas pela internet.


[1] "Artigo 49 – O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio".

[2] BARROS, J. P. L. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos de consumo como forma de extinção das obrigações. In: Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de direito do consumo, 2018. p. 177.

[3] Qual a frota das empresas aéreas brasileiras no dia 1o de janeiro de 2020? Disponível em: <https://www.aeroin.net/qual-a-frota-das-empresas-aereas-brasileiras-no-dia-1o-de-janeiro-de-2020/>. Acesso em: 19 nov. 2020.

[4] GOL Linhas Aéreas. Disponível em: <https://www.voegol.com.br/informacoes/alterar-voo>. Acesso em: 20 out. 2021. Grifos Aditados.

[6] Azul. Disponível em: <https://www.voeazul.com.br/para-sua-viagem/informacoes-para-viajar/remarcacao–cancelamento>. Acesso em: 20 out. 2021. Grifos Aditados.

[7] KELSEN, H. Teoria pura do direito. [tradução: João Baptista Machado]. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[8] ConJur – Resolução 400/2016 da Anac não pode afetar os direitos dos usuários. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-mai-24/garantias-consumo-resolucao-4002016-Anac-nao-afetar-direitos-usuarios>. Acesso em: 19 nov. 2020.

[9] TARTUCE, F. Manual de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 27

[10] MARQUES, C. L. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil: diálogo das fontes no combate das cláusulas abusivas. Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, 2003. p. 75.

[11] BARROS, J. P. L. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos de consumo como forma de extinção das obrigações. In: Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de direito do consumo, 2018. p. 122.

[12] TARTUCE, F. Manual de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 28

[13] CAPEZ, F. Assistência material: poderia a Anac se sobrepor à Constituição e ao CDC? – Defesa do consumidor – iG. Disponível em: <https://economia.ig.com.br/colunas/defesa-do-consumidor/2020-06-22/assistencia-material-poderia-a-Anac-se-sobrepor-a-constituicao-e-ao-cdc.html>. Acesso em: 19 nov. 2020.

[14] MALDONADO, M. Nota n. 5/2012 – CGEMM/DPDC/Senacon. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/anexos/5-2012.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2020. p. 10.

[15] BARROS, J. P. L. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos de consumo como forma de extinção das obrigações. In: Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de direito do consumo, 2018. p. 155.

[16] TARTUCE, F. Manual de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 327

[17] TARTUCE, F. Manual de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 325

[18] BARROS, J. P. L. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos de consumo como forma de extinção das obrigações. In: Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de direito do consumo, 2018. p. 120

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