Opinião

Gás natural: regulação e concorrência em um mercado em maturação

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22 de outubro de 2021, 7h11

A discussão sobre a abertura do mercado de gás natural e os benefícios concorrenciais decorrentes vem ganhando cada vez mais holofotes no cenário atual. Tal discussão não é nova, porém, com as mudanças legislativas ocorridas há pouco faz-se necessário um novo questionamento: podemos vislumbrar uma abertura do mercado de gás natural na prática?

Em 2009, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 11.909/2009, mais conhecida como Lei do Gás. Seu principal objetivo foi instituir o regime de concessão para a construção e operação de novos gasodutos, justamente visando à abertura do mercado. Todavia, o propósito dessa norma não foi alcançado, tendo em vista que as licitações concernentes não ocorreram e não foram construídos novos dutos em sua vigência, conforme previa a lei.

Após, surgiram inovações no âmbito do Executivo e do Legislativo que merecem destaque. Tais inovações ocorreram através de um programa de governo denominado Novo Mercado de Gás Natural, cujo principal objetivo era tornar o mercado de gás mais dinâmico e competitivo. Por meio do programa foram tomadas diversas medidas visando a estimular a concorrência entre os agentes do mercado e melhorar a eficiência do setor.

Entre tais medidas, destaca-se a Resolução nº 16/2019 do Conselho Nacional de Política Energética, que estabelece diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural. Essa resolução estabelece, já em seu artigo 1º, preceitos para o fomento à livre concorrência, evitando-se a formação de monopólios regionais. Para atingir a almejada abertura do mercado de gás natural a resolução estabelece medidas estruturais e comportamentais que devem ser observadas por agentes que detenham poder de mercado no setor, como a alienação total das ações que detenha nas empresas de transporte e distribuição.

Outro destaque relacionado à abertura do mercado de gás natural foi a aprovação e sanção da Lei nº 14.134/2021 (Nova Lei do Gás), que propõe a formação de um mercado aberto e competitivo, buscando promover a concorrência entre fornecedores atraindo novos agentes para o mercado e a consequente redução do preço do gás natural para o consumidor. A principal inovação da norma é a substituição do regime de outorga da concessão pelo regime de autorização das atividades de transporte e estocagem. Essa alteração se revela muito importante, uma vez que no regime passado, sob a égide da Lei nº 11.909/2009, por meio do regime de concessão anteriormente estabelecido, não foram construídos novos gasodutos em mais de dez anos de vigência da norma. Desse modo, a legislação atual reduz significativamente a burocratização para expansão da malha de transporte de gás natural no país, medida extremamente benéfica à economia, atração de investidores, maior competitividade e, consequentemente, redução dos custos de produção e o preço final ao consumidor.

Ainda nesse contexto, restou firmado termo de compromisso de cessação (TCC) entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) em julho de 2019 [1]. O TCC foi celebrado no bojo da investigação do Cade sobre supostas condutas anticompetitivas da Petrobras em decorrência de tratamento discriminatório no fornecimento de gás natural canalizado para as distribuidoras do estado de São Paulo. O acordo estabeleceu uma série de medidas, entre elas a alienação da participação societária da Petrobras nas distribuidoras de gás, de forma direta ou indireta (Gaspetro).

Esse tipo de conduta envolvendo empresas que atuam em diferentes níveis do mercado de gás natural já havia sido analisada pelo Cade no âmbito do Consórcio Gemini [2]. Nesse caso, Petrobras, White Martins Gases Industriais e GNL Gemini e Comercialização e Logística de Gás Ltda. (Gás Local) criaram o Consórcio Gemini para atuar no segmento downstream da cadeia de gás natural, ou seja, na distribuição aos consumidores que não tivessem acesso ao gás canalizado. A investigação foi iniciada por meio de representação feita pela Comgás, que alegava que as práticas do consórcio geravam subsídios cruzados e discriminação de preços no fornecimento de gás natural pela Petrobras, que integrava.

Em que pesem os pontos polêmicos que nortearam as discussões do caso Gemini, aqui se pretende fazer maiores considerações apenas sobre a cadeia de produção do gás natural. Para o Cade o mercado de gás natural é relacionado a diversas atividades industriais [3], seja com aplicações na geração de energia elétrica, seja no transporte, por meio do gás natural veicular, como fonte de energia e abastecimento em ambientes residenciais e comerciais. Pelo lado da oferta, a cadeia produtiva do gás natural é dividida em três níveis: 1) upstream, que inclui a exploração de áreas naturais e a produção propriamente dita, além do escoamento para as refinarias; 2) midstream, que abrange o processamento e transporte em dutos de alta pressão (gasodutos); e 3) downstream, que engloba a distribuição local por meio de dutos de menor pressão ou a granel.

Da leitura dos diferentes níveis de integração na cadeia do mercado de gás natural, considerando ainda as diversas discussões regulatórias que norteiam o tema, é possível observar que fomentar a concorrência no setor é um verdadeiro desafio, seja pela elevada complexidade do mercado, seja pelo — ainda existente — monopólio de atuação da Petrobras em diversos elos da cadeia.

Nesse contexto, mais de dois anos após a celebração do TCC da Petrobras, foi notificada ao Cade operação de aquisição [4], pela Compass Gás e Energia S.A. (Compass), de 51% da Petrobrás Gás S.A. – Gaspetro (Gaspetro), atualmente de titularidade da Petrobras (em conjunto "requerentes").  

A operação está relacionada à principal diretriz da abertura do mercado de gás natural, notadamente na desverticalização da atuação da Petrobras. Sua concretização poderá contribuir com a abertura da cadeia do gás natural no Brasil, fortalecendo o próprio TCC firmado entre Cade e Petrobrás em 2019, dando cumprimento do principal objetivo para a abertura do mercado de gás natural, resultando na desverticalização da atuação da Petrobras em diferentes elos da cadeia do gás natural. Assim, terá impacto significativo na abertura do mercado.

Não se pode perder de vista os elevados custos que norteiam a atuação no setor e a ausência de análise do impacto regulatório no mercado de gás natural, o que acaba por criar um grande desafio em relação à concorrência no referido mercado. Ou seja, é dizer que a abertura do mercado de gás natural é um processo gradual que ainda enfrenta e enfrentará alguns entraves.

Apesar dos obstáculos que ainda serão enfrentados para a abertura do mercado de gás natural na prática, as ponderações trazidas neste artigo demonstram que há incentivos à entrada de novos players no mercado, bem como a redução der barreiras à entrada, tendo em vista que após a sanção da nova Lei do Gás as barreiras regulatórias foram consideravelmente simplificadas. A recente operação da Compass notificada ao Cade, por sua vez, pode vir a contribuir com o cumprimento das determinações do TCC celebrado entre a autoridade antitruste e a Petrobras, bem como para o alcance das metas de abertura do setor, geração de eficiências, maior concorrência e realização de investimentos por agentes privados.


[1] Requerimento de TCC 08700.003136/2019-12 firmado no âmbito do Processo Administrativo 08700.002600/2014-30.

[2] Processo Administrativo nº 8012.011881/2007-41

[4] Ato de Concentração nº 08700.004540/2021-10.

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  • é trainee no escritório Vilanova Advocacia, fundadora do CONEDIR e graduanda em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

  • é trainee no escritório Vilanova Advocacia, graduanda em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e graduada em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB).

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