Opinião

Tombamento: qual o papel do Executivo e do Legislativo?

Autor

  • Allan Carlos Moreira Magalhães

    é doutor e pós-doutor em Direito (Unifor) professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural Democracia e Federalismo (Dialética-SP).

19 de outubro de 2021, 14h37

A separação de poderes, que vem sendo abordada desde a Antiguidade, como o fez Aristóteles em "A Política", teve, na modernidade, uma versão sistematizada por Montesquieu no não menos clássico "O Espírito das Leis". Na versão do barão, trata-se de técnica imprescindível para a limitação do exercício do poder. É elemento indispensável em toda Constituição, tanto que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é enfática ao afirmar que a sociedade em que "não esteja assegurada a garantia dos direitos e a separação dos poderes não tem Constituição".

Todas as Constituições brasileiras asseguram a separação dos poderes, ainda que apenas no plano formal, como ocorreu com aquelas que foram outorgadas. A fórmula constitucional adotada em 1988 é a de que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si. Dessa estruturação deflui a presença de funções típicas e atípicas em que, tendo em mira as leis, ao Executivo cabe executá-las, ao Legislativo elaborá-las e ao Judiciário a função de, com base nelas, julgar imparcialmente os conflitos (jurisdicionalmente).

Contudo, na seara da proteção do patrimônio cultural não é incomum o Legislativo se utilizar da edição de leis de efeitos concretos com o escopo de promover o tombamento de bens culturais, medida cuja doutrina reputa ser um ato administrativo próprio do Executivo e, por esse motivo, tem impulsionado este poder a questionar perante o Judiciário a constitucionalidade de referidas leis.

Neste campo de atividade, o Supremo Tribunal Federal concluiu, recentemente, o julgamento da ADI 5670 que apreciou a constitucionalidade da Lei nº 312/2016 do estado do Amazonas que promoveu o tombamento legislativo de 29 edificações de projetos arquitetônicos elaborados por Severiano Mário Porto [1], conhecido como o "arquiteto da floresta" e a quem é atribuída a concepção de modelo de técnicas inovadoras de arquitetura que, ademais, une técnicas desenvolvidas por ribeirinhos e caboclos.

A Suprema Corte concluiu pela constitucionalidade da referida lei, firmando o entendimento de que ela produz efeitos concretos, "como o ato acautelatório de tombamento provisório a provocar o Poder Executivo local, o qual deverá perseguir, posteriormente, o procedimento constante do Decreto-Lei 25/1937, sem descurar da garantia da ampla defesa e do contraditório".

No entanto, o aspecto realmente inovador dessa decisão é a admissão de que o Executivo está compelido a dar seguimento ao procedimento tendente a culminar no tombamento definitivo, mas não está vinculado à declaração do reconhecimento do valor cultural do bem tombado provisoriamente pelo Legislativo com a edição da lei de efeitos concretos.

Assim, o Supremo Tribunal Federal reconheceu pelo voto do ministro Ricardo Lewandowski, relator da mencionada ADI 5670, uma das teses sustentadas em artigo científico publicado na Revista Direito Ambiental e Sociedade (RDAS) [2], de autoria de Humberto Cunha Filho e Allan Magalhães (o signatário deste artigo), de que como a lei de efeitos concretos assemelhasse materialmente ao ato administrativo, ela pode ser revista pelo Executivo, no que toca a aferição do valor cultural do bem tombado, reconhecendo a relevância da distinção entre lei formal e lei material.

Neste sentido, a jurisprudência do STF dá um importante passo na harmonização da atuação dos Poderes Executivo e Legislativo na defesa do patrimônio cultural pelo tombamento, preservando para cada um deles o exercício das suas funções típicas. Com isso, espera-se que legados arquitetônicos valorosos, como o de Severiano Mário Porto sejam protegidos.

 

[1] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5148300

[2] http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/view/5856

Autores

  • é doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro "Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo".

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