Direito Civil Atual

Seminário lembra relevância de civilistas clássicos para a proteção dos vulneráveis

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18 de outubro de 2021, 11h26

O Direito Civil contemporâneo resulta dos esforços doutrinários e das transformações no campo jurisprudencial que foram, paulatinamente, ocorrendo no evolver dos séculos passados. A atual tessitura normativa do Código Civil, vigente no Brasil desde 2002, adveio das elucubrações dos clássicos de outrora que não devem ser olvidados pelos acadêmicos e profissionais da seara jurídica. Nessa senda, a Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo, dando continuidade ao projeto de homenagear os juristas tradicionais, nos dias 21 e 22 deste mês, realizará o seminário intitulado "Civilistas Clássicos e a Proteção dos Vulneráveis". Serão, assim, rememorados, conforme previsto nas próximas linhas, alguns dos que mais se destacaram nos séculos 19 e 20, com o desiderato de identificar os seus principais contributos para as normas jurídicas atuais e a tutela dos mais fragilizados diante das vicissitudes socioeconômicas e culturais.

ConJur
Na parte inicial do evento, objetiva-se evidenciar a atuação do baiano Augusto Teixeira de Freitas na condição de o consolidador das leis civis portuguesas, vigentes no nosso país antes da edição do Código de 1916 [1]. A obra "Esbôço do Código Civil", finalizada em 1865, também será objeto de destaque, eis que se trata da primeira proposta de sedimentação das normas cíveis brasileiras [2]. Em seguida, abordar-se-á o empenho do cearense Clóvis Beviláqua para que o Código Civil brasileiro iniciasse a sua vigência em 1º de janeiro de 1917, alcançando-se a normatização de regras fundamentais para a resolução de uma multiplicidade de questões [3]. Inaugurou-se uma nova era jurídica que possibilitaria, a posteriori, o surgimento de microssistemas destinados à salvaguarda dos mais fragilizados, eis que as mutações materializadas, mormente a partir da segunda metade do século 20, assim suscitariam.

Ainda na primeira metade do século 20, Eduardo Espínola, outro ilustre jurista nascido na Bahia, produziu doutrina de inquestionável relevância que subsidiaria a defesa dos mais vulnerabilizados. Nas obras "Sistema de Direito Civil" [4] e "Tratado de Direito Civil" [5], publicadas respectivamente, a partir de 1908 e 1939, ele anteviu que a responsabilidade civil não ficaria adstrita apenas à avaliação subjetiva e que seria também analisada de forma objetiva. O alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda tornou-se o jurista mais citado pelos operadores do Direito dada a magnitude de sua extensa produção intelectual [6], que abrangeu o Direito Civil e Processual Civil, além de outros meandros do conhecimento humano. Nas obras "Tratado de Direito Privado" e "Tratado das Ações", podem ser localizados argumentos de inquestionável importância em prol dos mais debilitados [7]. Também escreveu sobre Sociologia e lecionou que a realidade enseja a modificação das leis e, realmente, nas décadas vindouras, as metamorfoses socioeconômicas engendraram vários conjuntos normativos apartados das codificações [8].

Orlando Gomes, outro grande nome do Direito Civil pátrio, distinguiu-se pela marca socializante das suas concepções, dedicou-se ao exame dos explorados no campo laboral e, em 1938, produziu a obra "A Convenção Coletiva de Trabalho". Foi o primeiro autor brasileiro a tratar da massificação das relações jurídicas no livro "Contratos de Adesão", datado de 1972. Alertou que, nas décadas seguintes, haveria a sua intensificação fato que exigiria proteção específica para os destinatários finais de bens [9]. Na década de 80, previu o surgimento de microssistemas normativos específicos que, atualmente, vigoram em prol de indivíduos extenuados [10]. O português João de Matos Antunes de Matos Varela foi professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia no período de 1975 a 1980 e, juntamente, com Orlando Gomes, escreveram a primeira obra sobre os aspectos econômicos do campo jurídico [11]. Notabilizou-se também, entre outras produções, pelo conteúdo do livro "Direito das Obrigações", composto por dois volumes, publicados, respectivamente, nos anos de 1977 e 1979 [12].

O sergipano Alvino Ferreira Lima debruçou-se sobre os diversos acidentes que ocorriam com o uso de bens, devido ao aumento da sua complexidade decorrente da evolução científica e tecnológica. Publicou, em 1938, a obra "Da culpa ao risco" [13] e previu a necessidade de o Brasil dispor de normas sobre a responsabilidade dos envolvidos de forma objetiva. A sua colaboração para a proteção dos trabalhadores, que sofriam com constantes lesões, decorrentes dos maquinários utilizados, e dos hodiernos consumidores, que se deparam com bens inseguros, é inesquecível. Na década de 60, José de Aguiar Dias lançou a obra "Da Responsabilidade Civil" e forneceu o embasamento doutrinário necessário para a defesa as adversidades que afetam os vulneráveis, bem como quaisquer outros interessados [14]. Quarenta e dois anos antes da edição do Código Civil de 2002, propugnava que o Brasil deveria avançar para a objetivação quanto ao julgamento de condutas que causassem danos, não se limitando à averiguação da culpa.

Em 1976, o jurista gaúcho Clóvis do Couto e Silva publicou a obra "A Obrigação como Processo" [15], que, até os dias atuais, em decorrência do mérito do seu substrato, vem sendo utilizada para o fomento dos direitos dos que estejam inseridos em contextos de forças assimétricas. A incisiva presença da ética, nos liames jurídicos, é dissecada pelo autor que defendeu a sua presença em todas as fases do seu transcorrer. O vetor axiológico da boa-fé deverá incidir de tal modo que os deveres adjacentes, colaterais ou adjuntos pressupõem compromissos que não se esgotam com o mero cumprimento da obrigação principal. Antônio Junqueira de Azevedo, nascido em São Paulo, em 23 de julho de 1939, tornou-se célebre por sua obra "Negócio jurídico: existência, validade e eficácia" [16]. Importante também lembrar que ele, originalmente, criou o termo "dano social", que tem possibilitado aos prejudicados a obtenção de indenização ampla, envolvendo também a punição do agente causador dos malefícios. São situações em que estes sofrem lesões, que também afetem outros sujeitos, gerando um "rebaixamento do nível de vida". Junqueira de Azevedo apresentou, como um dos exemplos, o problema dos atrasos do transporte aéreo e os malefícios para os afetados e a sociedade em geral [17].

Os institutos jurídicos são frutos da evolução do passado e, como assevera Le Goff, os fenômenos, em geral, devem ser apreciados "a partir de evocações de lembranças". Ora, bem compreender e aplicar as normas cíveis atuais não poderá prescindir da anamnese dos nossos antepassados, pois, reitera o autor, que o cotidiano somente terá o valor devidamente averiguado sob a égide da memória. Complementa ainda que "onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro" e, assim sendo, deve-se "trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a servidão dos homens" [18]. É um "elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual e coletiva" e o referido evento não se destinou a sobrelevar tão somente as vidas singulares dos juristas.

Tenciona-se resgatar as mais proeminentes projeções dos pensamentos destes doutrinadores que, com uma postura visionária, defenderam aspectos normativos que predominam na pós-modernidade. Ensinar e apreender os conteúdos jurídicos são tarefas que não podem deixar de estar imbrincadas com o resgate dos clássicos, uma vez que deve haver um vínculo entre o presente e a história pontua Pollak. A memória corresponde também a "um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si" [19]. Nessa mesma linha de intelecção, Giroux e Simon [20] argumentam que tais abordagens geram um inquestionável benefício pedagógico para os estudantes, viabilizando-lhes a constituição de um sólido e crítico conhecimento.

A formação jurídica limitada ao singelo apreço por conteúdos superficiais, calcados até mesmo em registros de aulas e/ou em sinopses não aprofundadas, não será eficazmente satisfatória para o saber agir crítico e a formação pedagógica das identidades, individuais, sociais e coletivas, termina sendo fragilizada. Aponta Agnes Heller que "A vida cotidiana é a vida do homem inteiro"; ou seja, "o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade". Nela, "colocam-se 'em funcionamento' todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias, a formação da cidadania" [21]. De acordo com Burke, a memória é "uma reconstrução do passado" e a importância da "história social do lembrar" não pode ser relegada a um segundo plano na capacitação educacional [22]. Esse é o propósito do seminário em apreço: trazer à tona as reminiscências do Direito Civil brasileiro, para que discentes e profissionais tenham a plena consciência de como se dera a gradativa constituição do universo normativo que se contempla. Outros notáveis juristas sobressaíram-se adrede nos séculos 19 e 20 e os seus ensinamentos devem ser também revividos, sucessivamente, em futuros encontros.

 


[1] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto Consolidação das Leis Civis. 3. ed. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1876.

[2] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil: esbôço. Rio de Janeiro: Typographia Universal e de Laemmert, 1865.

[3]BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos. 6. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1943, 6 volumes.

[4] ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil Brasileiro. 1º v. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1908.

[5] ESPÍNOLA, Eduardo. Manual do Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1938.

[6] RODAS, Sergio. Morto em 1979, Pontes de Miranda ainda é o doutrinador preferido dos juízes. Seção Obra Eterna. Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2019.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratados das Ações. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1974, 10 volumes.

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Borsoi, 1972, 60 volumes.

[9] GOMES, Orlando. Contrato de adesão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972.

[10] GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. 2. ed. aum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. GOMES, Orlando. A Caminho dos Microssistemas. In: Novos Temas de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1983.

[11]ANTUNES VARELA, João de Matos.; GOMES, Orlando. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva Editora, 1977.

[12] ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral. 10. ed. Coimbra: Almedina, 1997.

[13] LIMA, Alvino Ferreira. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938.

[14] DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960.

[15] COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A Obrigação como Processo. 2. ed. São Paulo: Editora Bushatsky, 1976.

[16] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed., atual. 7. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2010.

[17] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. Revista trimestral de direito civil: RTDC, v. 5, n. 19, p. 211-218, jul./set. 2004.

[18] LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994, p. 477.

[19] POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, v. 5, n.10, Rio de Janeiro: CP/DOC FGV, 1992. Conferir também: GIROUX, Henry & SIMOM, Roger. Cultura Popular e Pedagogia Crítica: A Vida Cotidiana Como Base Para O Conhecimento Curricular. In: MOREIRA, Antônio F. B. e Silva, Tomaz Tadeu (orgs.). Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1994.

[20] GIROUX, Henry & SIMOM, Roger. Cultura Popular e Pedagogia Crítica: A Vida Cotidiana Como Base Para O Conhecimento Curricular. In: MOREIRA, Antônio F. B. e Silva, Tomaz Tadeu (orgs.). Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1994, p. 99.

[21] HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra 2008, p.17.

[22] BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 70.

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