Opinião

Reflexões sobre a inelegibilidade decorrente das decisões dos tribunais de contas

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4 de outubro de 2021, 19h06

Na redação conferida pela Lei Complementar nº 135/2010, a LC nº 64/1990, a chamada Lei das Inelegibilidades, estabelece que são inelegíveis para qualquer cargo "os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente" (artigo 1º, I, g).

Além dessa repercussão na esfera do exercício dos direitos políticos, a rejeição das contas por parte dos tribunais de contas tem o condão, a depender da regulamentação específica, até mesmo de impedir a posse em cargos e funções públicas.

Como exemplo, registre-se que o artigo 2º, III, do Decreto nº 9.727/2019 estabelece como requisito para a ocupação dos cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores (DAS) e das Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE) da administração pública federal direta, autárquica e fundacional "o não enquadramento nas hipóteses de inelegibilidade previstas no inciso I do caput do artigo 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990".

Outro exemplo é a Lei Complementar Estadual nº 14.869/2016 que, em seu artigo 1º, veda, no âmbito da Administração Pública do Estado do Rio Grande do Sul, "a nomeação de pessoas que se enquadram nas condições de inelegibilidade previstas pela Lei Complementar Federal nº 135, de 4 de junho de 2010, para todos os cargos públicos estaduais de provimento efetivo, em comissão ou com gratificação de função, para os cargos de Secretário de Estado, Secretário-Adjunto, Procurador-Geral de Justiça, Procurador-Geral do Estado, Defensor Público-Geral, Presidentes, Superintendentes e Diretores de órgãos da administração pública direta e indireta, fundacional, autarquias e agências reguladoras estaduais".

Voltando à LC nº 64/1990, perceba-se que a inelegibilidade inserida pela Lei Complementar nº 135/2010, tem por condição sine qua non que as contas sejam rejeitadas pelos tribunais de contas em decisões irrecorríveis em razão de conterem irregularidades insanáveis que configurem ato doloso de improbidade administrativa, algo que é muito importante ante ao que o TSE decidiu no RO nº 88467/CE, onde se entendeu que "para que se possa cogitar minimamente da prática de ato doloso de improbidade administrativa, é necessário que, na decisão que rejeitou as contas, existam elementos mínimos que permitam a aferição da insanabilidade das irregularidades apontadas e da prática de ato doloso de improbidade administrativa".

Neste particular, cabe ainda mencionar que o resta consignado na Súmula nº 41 do TSE no sentido de que "não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros Órgãos do Judiciário ou dos Tribunais de Contas que configurem causa de inelegibilidade."

Outrora consolidado, tal quadro foi incrementado por duas grandes novidades.

Na primeira, a Lei Complementar nº 184, de 29 de setembro de 2021 inseriu um § 4º-A no artigo 1º da Lei das Inelegibilidades com a seguinte redação: "A inelegibilidade prevista na alínea ‘g’ do inciso I do caput deste artigo não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa".

A LC nº 184/2021 não mitigou a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990, ela continua sendo atrelada à necessidade da prática de um ato doloso de improbidade administrativa no âmbito das contas que foram rejeitadas, o que a LC nº 184/2021 fez foi esclarecer que contas que sejam julgadas irregulares sem imputação de débito, mas com imputação de multa, não ensejam inelegibilidade, vez que essa depende da configuração da prática de ato de improbidade administrativa.

Já a segunda novidade neste quadro das inelegibilidades que decorrem das decisões dos tribunais de contas reforça essa interpretação do artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990 no sentido de que só há inelegibilidade quando há a ocorrência de ato de improbidade administrativa caracterizada nas contas que foram rejeitadas, qual seja: o julgamento da ADI 6678 DF pelo STF.

Em 1/10/2021, o Ministro Gilmar Mendes deferiu medida cautelar "ad referendum do Plenário (artigo 21, V, do RISTF; artigo 10, § 3º, Lei 9.868/1999), com efeito ex nunc (artigo 11, § 1º, da Lei 9.868/99), inclusive em relação ao pleito eleitoral de 2022, para: (a) conferir interpretação conforme à Constituição ao inciso II do artigo 12 da Lei 8.429/1992, estabelecendo que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário e (b) suspender a vigência da expressão suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos do inciso III do artigo 12 da Lei 8.429/1992."

Veja, se os direitos políticos de alguém não podem ser suspensos por sentença judicial com base na Lei nº 8.429/1992 em caso de atos de improbidade culposos, resta óbvio que a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990 de fato se restringe aos atos de improbidade dolosos.

Assim, essas duas novidades, uma legislativa e outra judicial, tiveram o condão de consolidar o âmbito da aplicação da inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990.

Todavia, questiona-se: o atual quadro que baliza essa inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990 será perene a médio ou até mesmo curto prazo?

Pensamos que não.

É preciso lembrar que no julgamento do RE 636.886 AL o STF deixou patente que os tribunais de contas (no caso específico deste julgamento no STF era o TCU) não julgam pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realizam o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização.

De forma ainda mais clara, consta do RE 636.886 AL a constatação de que: "(a) a Corte de Contas, em momento algum, analisa a existência ou não de ato doloso de improbidade administrativa; (b) não há decisão judicial caracterizando a existência de ato ilícito doloso, inexistindo contraditório e ampla defesa plenos, pois não é possível ao imputado defender-se no sentido da ausência de elemento subjetivo".

Ou seja, se considerarmos a fundamentação do RE 636.886 AL, que tratava da prescrição dos títulos executivos decorrentes das decisões do TCU, a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990 é inconstitucional, pois não compete aos tribunais de contas caracterizar a ocorrência de atos dolosos de improbidade administrativa nos processos sob sua jurisdição.

Destarte, imaginamos que não tardará para que a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da LC nº 64/1990 seja questionada e, talvez, declarada inconstitucional.

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