Direito eleitoral

Um, dois, três, 'pim': a palavra que o Ministério Público não pode falar

Autor

  • Fernando Neisser

    é mestre e doutor em Direito Penal pela USP membro fundador da Abradep e presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do Iasp.

4 de outubro de 2021, 8h00

Anos atrás, nas tardes de domingo, Silvio Santos circulava em seu auditório selecionando participantes para o "jogo do pim". A pessoa devia contar até um determinado número, trocando o algarismo quatro e seus múltiplos pela palavra "pim". Explorando alguns vieses da nossa arquitetura cerebral, especialmente a afoiteza daquilo que Daniel Kahneman chama de Sistema 1 [1], fatalmente vinham os erros e as gargalhadas da plateia.

A prosaica brincadeira vem a calhar quando analisamos o que tem se passado na atuação de parte do Ministério Público Eleitoral e, por vezes, de juízes eleitorais, no que toca às investigações e à persecução de crimes comuns conexos aos crimes eleitorais. A palavra proibida aqui, longe de um inofensivo algarismo, é a eleitoralidade.

Desde o início da operação "lava jato", em 2014, um E.T. que aparecesse no Brasil — e milagrosamente pudesse compreender nosso idioma e tivesse interesse por notícias político-policiais — teria uma única certeza: tudo girava em torno de esquemas de corrupção organizados com o intuito de perpetuar grupos políticos no poder, mediante o afluxo de recursos financeiros — contabilizados ou não — para campanhas eleitorais.

Esse mesmo alienígena, curioso para compreender as tecnicalidades do Direito terrestre, poderia buscar as denúncias oferecidas na 13ª Vara Federal de Curitiba e ali se depararia com um fato insólito: apesar de toda narrativa verter para a sinopse do parágrafo anterior, ela parecia incompleta. Faltava algo que fechasse o ciclo. Tínhamos uma narrativa interrompida pelo receio da palavra-tabu: eleitoralidade.

Narravam-se os acordos, os contratos obtidos fraudulentamente, a entrega de recursos financeiros a agentes públicos… E a história era bruscamente paralisada. Para qual finalidade se destinava o dinheiro? O que pretendiam aquelas pessoas concertadas em torno da prática de atos ilegais? Como a perpetuação no poder poderia ser possível em uma democracia eleitoral?

A resposta, obviamente, passava pelas eleições. Pelo deságue de recursos em campanhas eleitorais, oferecendo desproporcional vantagem aos beneficiários. Se não estávamos — ao menos naquele período histórico — a cogitar de um golpe, a perenização de grupos políticos no poder somente pode se dar com a vitória eleitoral.

A não ser que nosso forasteiro estendesse sua curiosidade para o Direito Eleitoral e para o Direito Processual Penal, ele ficaria sem compreender por qual razão o Ministério Público abstinha-se de concluir suas narrativas.

Isso porque é da conjunção do que dispõem o artigo 78, IV, do Código de Processo Penal [2] e o artigo 35, II, do Código Eleitoral [3], que se deduz a opção legislativa pela atração, para a Justiça especializada — no caso, a Justiça Eleitoral —, dos crimes comuns conexos aos eleitorais.

Com essa informação o enigma se resolvia. O Ministério Público Federal e a 13ª Vara Federal de Curitiba, em concerto de ações — como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal —, agiam estrategicamente para evitar que as investigações e ações penais fossem deslocadas de sua órbita de controle, sendo remetidas à Justiça Eleitoral.

Em outras palavras, se a narrativa se completasse e o órgão de acusação dissesse a que se destinavam aqueles recursos e por quais meios se buscaria perpetuar grupos políticos no poder, surgiria daquele conjunto fático um elemento inescapável de eleitoralidade.

Como se sabe, a contabilidade paralela de campanhas — vulgo caixa dois — passou nos anos recentes a ser tida como conduta típica à luz do que prevê o artigo 350 do Código Eleitoral [4], a falsidade ideológica para fins eleitorais, uma vez que aqueles que têm o dever de prestar contas de campanha — candidatos e seus administradores financeiros — omitiriam recursos recebidos ilicitamente ou mascarariam sua natureza ilegal.

Assim, se nas investigações criminais ou na narrativa vertida na denúncia fosse possível perceber — pelo conjunto dos fatos — que havia ao menos em tese a possibilidade de identificação do crime eleitoral, seria necessário remeter integralmente o conjunto à Justiça Eleitoral.

Por longos anos o STF, não por falta de insurgência dos acusados, olhou de lado para a questão e preservou a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, topando participar daquele "jogo do pim".

Apenas em 2019, ao julgar o 4º Agravo Regimental no Inquérito 4.435/DF — afetado ao Plenário —, o STF resolveu lidar com a incongruência das narrativas interrompidas e, por maioria, confirmar sua histórica jurisprudência que prestigiava a competência da Justiça Eleitoral. Não deveria ser uma surpresa, vez que o tema, ao menos desde 1978, nunca recebera tratamento diverso [5].

Diante das explicações e com a decisão do órgão máximo de jurisdição desse estranho país terráqueo, nosso amigo só poderia concluir que a questão estava resolvida. Inquéritos e ações penais seriam deslocados para a Justiça Eleitoral e, como naqueles exercícios escolares em que se preenchia as lacunas faltantes do texto, as narrativas seriam completadas para destacar o elemento de eleitoralidade inerente a elas.

Não foi bem assim. Nosso ingênuo visitante desconhecia a resistência de parte do Ministério Público em dar cumprimento às decisões do STF, eminentemente por entenderem — nada obstante o direito constitucional ao juiz natural — que as investigações e demandas teriam melhor chance de êxito se processadas perante a Justiça Federal.

As estratégias de resistência têm se mostrado variadas, todas confluindo para minar o devido processo legal e o direito que cada acusado tem de ser processado perante o órgão judicial previamente determinado por lei.

Há casos em que, ao receber o inquérito ou ação penal por determinação do STF ou do STJ, o Ministério Público Eleitoral simplesmente arquiva — sem promover qualquer diligência — a parte da narrativa relativa à falsidade ideológica eleitoral. Ausente, assim, crime eleitoral a atrair a competência para a justiça especializada, remete de volta a batata quente à Justiça Federal.

Em outras situações a criatividade é ainda maior. Decalca-se do conjunto fático a possível prática de falsidade ideológica eleitoral, instaurando-se inquérito policial eleitoral, mas afirma-se que as investigações relativas aos demais crimes — em regra, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa —, em estágio mais avançado, devem retornar à Justiça Federal para processamento autônomo.

Uma terceira estratégia, mais ao gosto dos que só querem mesmo livrar-se do excesso de trabalho, é deixar o inquérito repousando nas prateleiras até que sobrevenha a prescrição em abstrato do crime do artigo 350 do Código Eleitoral, reconhecendo posteriormente tal situação e rebatendo com isso a peteca de volta à Justiça Federal, pois os crimes comuns, com penas maiores, ainda poderiam ser objeto de persecução.

Por um caminho ou outro o que se vê é a ilegal e inescusável resistência de parte do Ministério Público em dar cumprimento à decisão do STF. Uma fraude de etiquetas, para usar uma expressão cara à Corte de Cassação italiana em situação análoga [6].

Não sem razão, desse modo, merece elogio a recente decisão do ministro Gilmar Mendes na Reclamação 45.439/RJ [7], de agosto deste ano. Como salientou-se ali com precisão, o que o Ministério Público — ou a parte dele que age ilegalmente nessa resistência — busca fazer é um verdadeiro bypass, um atalho, uma fuga.

Não convence o argumento em sentido contrário, de que a titularidade da ação penal sendo do Ministério Público, haveria discricionariedade quanto à capitulação dos fatos que chegam ao seu conhecimento. Como bem se pontuou na decisão:

"É por isso que não se deve atribuir caráter absoluto ou ilimitado ao princípio da independência funcional do Ministério Público. O Parquet também está vinculado às decisões proferidas por esta Corte. O sistema de checks and balances, estabelecido pela Constituição, demanda o controle da atuação e dos desvios de todos os órgãos estatais.
Nessa linha, o próprio princípio da legalidade ou da obrigatoriedade do processo penal estabelece ao Parquet o dever de promover as medidas persecutórias cabíveis, sem a utilização de critérios de conveniência e oportunidade".

Explicando de forma mais clara ao nosso atento e confuso viajante espacial, a independência funcional do Ministério Público não lhe dá o direito de, conhecendo fatos que possivelmente constituem um delito, optar por não aprofundar a investigação ou ajuizar uma ação penal, buscando com isso o deslocamento estratégico do processo a outro juiz ou Justiça.

Uma última dúvida talvez ainda pairasse na avantajada cabeça do nosso amigo. Por qual razão o Ministério Público parece não confiar na Justiça Eleitoral?

Os motivos são variados e em sua maioria envergonhados.

Enquanto alguns, estudiosos competentes e de boa-fé [8] [9], sustentam que a organização institucional da Justiça Eleitoral não comporta a complexidade e longa duração das investigações que tratam de crimes como a lavagem de dinheiro e a organização criminosa, outros apenas acham que falta idoneidade e capacidade técnica aos julgadores daquela justiça especializada.

Pode parecer chocante, mas é exatamente isso. Longe das manifestações públicas, o que muitos pensam é que a Justiça Eleitoral, por ter em seus tribunais juízes oriundos da advocacia e que podem seguir com sua profissão no curso da judicatura, não teria a imparcialidade necessária para apreciar e julgar casos envolvendo corrupção e organizações criminosas.

Além da indefensável presunção de vileza dos magistrados, a contradição é tão óbvia que salta aos olhos. Entrega-se a essa mesma Justiça Eleitoral a tutela de um dos mais preciosos valores de nossa sociedade, a democracia, mas ao analisar um caso de corrupção, seria necessário guardar a carteira. Contraditória e ofensiva, mas real e lamentável a opinião nutrida por parcela do Ministério Público.

O argumento sobre a alegada falta de capacidade técnica é ainda mais frágil. Além de ofender todos os magistrados e servidores da Justiça Eleitoral — tidos por incapazes —, faz crer que juízes e servidores das varas especializadas da Justiça Federal e as forças-tarefa do MPF desceram dos céus no sétimo dia conhecendo os meandros das técnicas de investigação de crimes econômicos.

Nada pior para a organização do sistema de Justiça que apenas um órgão detenha o conhecimento técnico necessário para apurar e processar certos delitos. Muito mais vantajoso, para a sociedade, que esse monopólio — não apenas do conhecimento, mas da atenção da imprensa que alimenta egos — seja pulverizado em mais órgãos e instâncias.

Por qualquer ângulo que se analise a questão, a resistência institucional a garantir o direito ao juiz natural é indefensável e ilegal.

Provocada em seus brios e ciosa de sua capacidade técnica e probidade, a Justiça Eleitoral vem se aparelhando para dar cumprimento à determinação do STF. Em maio de 2020, foi aprovada pelo TSE a Resolução 23.618, permitindo a especialização de zonas eleitorais pelos Tribunais Regionais Eleitorais e a designação de "servidores devidamente capacitados e treinados para o desempenho de funções tipicamente jurisdicionais em matéria criminal", com a possibilidade ainda de "criar grupo de assessoramento às zonas eleitorais especializadas e de designar juiz (juízes) auxiliar(es) dentre juízes no exercício da função eleitoral" [10].

Em alguns estados, como São Paulo, a especialização de zonas eleitorais e a estruturação do Ministério Público Eleitoral no modelo de força-tarefa tem permitido à Justiça Eleitoral cumprir com qualidade e presteza sua missão jurisdicional, exemplo que soterra as críticas já tratadas anteriormente.

É necessário que a estratégia de desobediência ao STF aqui narrada, onde quer que ainda esteja vicejando, seja obstaculizada com firmeza pelos Tribunais Regionais Eleitorais, pelo Superior Tribunal de Justiça — ao analisar conflitos de competência — e pelo próprio STF, como feito na reclamação aludida.

A subserviência à lei não é um dever apenas dos cidadãos, mas também de cada membro do Ministério Público, cujas preferências pessoais não podem se sobrepor ao direito constitucional dos acusados e à posição da maioria do STF.

 


[1] KAHNEMAN, Daniel. Thinking Fast and Slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011.

[2] CÓDIGO DE PROCESSO PENAL "Artigo 78 – Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: […] IV — no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta".

[3] CÓDIGO ELEITORAL "Artigo 35 – Compete aos juízes: […] II — processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais;".

[4] CÓDIGO ELEITORAL "Artigo 350 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Pena — reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular".

[5] STF. Conflito de Jurisdição 6113/MT, em 1978.

[6] "[…] E ciò perché, ad onta del ‘nomen iuris’, la nuova responsabilità, nominalmente amministrativa, dissimula la sua natura sostanzialmente penale; forse sottaciuta per non aprire delicati conflitti con i dogmi personalistici dell'imputazione criminale, di rango costituzionale (artigo 27 Cost.); interpretabili in accezione riduttiva, come divieto di responsabilità per fatto altrui, o in una più variegata, come divieto di responsabilità per fatto incolpevole (…) Seppure si debba considerare la responsabilità creata dalla norma come un ‘tertium genus’ nascente dall'ibridazione della responsabilità amministrativa con principi e concetti propri della sfera penale […]". ITÁLIA. Corte di Cassazione. Sez. II, nº 3615, Jolly Mediterraneo, julgado em 30 de janeiro de 2006. O tema é suscitado em SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção, p. 97.

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