Opinião

Dificuldades e soluções para a regionalização do saneamento básico

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

1 de outubro de 2021, 16h07

Não é difícil imaginar que a água que chega às nossas torneiras reclama uma série de atividades: coleta, bombeamento, tratamento, depósito, construção e manutenção de tubulações, entre outras. Mas, afinal, quem efetivamente executa essas atividades? Resposta: a) alguns municípios fornecem o serviço diretamente, por meio dos "serviços" ou "departamentos"; b) existem localidades que possuem autarquias que se ocupam destas atividades (exemplo: Porto Alegre); c) também há aqueles municípios que possuem contratos de programa com companhias estaduais (exemplos: contratos com Sabesp, Sanepar, Copasa, Corsan etc.); e d) percebem-se casos de concessão à iniciativa privada (exemplos: muitos municípios do estado do Tocantins são atendidos por uma empresa privada).

Também pode ser notado que os serviços de tratamento de esgoto e dispensação de água potável podem ser muito custosos e, por mais que se maximize a eficiência, ainda assim gerarão prejuízos, seja por existirem poucos usuários, ou por se percebem custos elevados na prestação etc. Para que essas localidades também fossem atendidas, algumas soluções foram empregadas: a) prestação por gestão associada entre entidades locais; ou b) por meio de companhias estaduais. No dois casos, pretende-se compensar regiões atrativas e não atrativas em termos econômicos, o que se concebeu chamar de "subsídio cruzado".

O dilema enfrentado agora é: com o Novo Marco do Saneamento Básico — implementado pela Lei nº 14.026/2020 —, o modelo de contrato de programa com companhia estadual tende a ser extinto, passando ao modelo de delegação de serviço público à iniciativa privada — na forma do artigo 175 da Constituição Federal. Contudo, como adaptar esse modelo de concessões quando existem municípios cuja prestação não dá lucro? Uma concessão, nesses termos, teria poucas chances de ter sucesso porque não é atrativa. Em tese, há dificuldades de se encontrar quem queira prestar o serviço nessa localidade.

Para tentar contornar o problema, o novo marco legal aposta na prestação regionalizada. Mas, na minha humilde opinião, foi uma aposta pouco adequada — ao menos quando se fala de Unidades de Referência de Saneamento Básico (alínea "b" do inciso VI do artigo 3º da Lei nº 11.445/2007). Há valor da prestação regional, mas a melhor forma de se obter os benefícios dela não é por meio da regionalização, e, sim, pela criação de fundos públicos. Vejamos porque:

1) Aqueles municípios que não prestam o serviço de modo regionalizado, ou seja, estão fora de uma unidade, bloco etc., não poderão receber de recursos federais para a universalização deste serviço. Logo, o legislador apostou que os municípios fariam a adesão, para poder receber os citados recursos. Contudo, percebe-se que esta é uma opção no mínimo pouco concreta, tendo em vista que sequer se sabe se estes recursos virão, e qual será montante. O histórico de receitas federais destinadas ao setor e por ele executadas revela um cenário desanimador. Em 2021, o governo federal destinou R$ 320 milhões, sendo apenas executados R$ 237 milhões [1] para a expansão dos serviços de saneamento básico no Brasil inteiro. No ano de 2020, foram investidos quase R$ 900 milhões, e executados pouco mais R$ 788 milhões [2]. Isso é demasiadamente pouco, tendo em vista que as estimativas apontam a necessidade de investimentos na cifra de R$ 50 bilhões por ano para se atingir as metas de universalização no ano de 2033. Logo, essa "atratividade" à adesão à prestação regionalizada se mostra bastante fraca, porque os municípios praticamente não contam com estes recursos, colocando em xeque a principal fala: "Para receber recursos federais ao saneamento básico, é necessária a adesão à prestação regionalizada". No entanto, como visto, esses recursos são por deveras escassos, diminuindo o incentivo à adesão mencionada;

2) O modelo de organização da prestação regional por unidades de referência será proposto pelo estado e validado pela respectiva Assembleia Legislativa, dado que deve ser implementado pela edição de lei ordinária estadual. Essa formalidade já apresenta suas dificuldades, porque qualquer reconfiguração do modelo aprovado deverá ser objeto de um novo processo legislativo. Deverá se editar nova lei ordinária toda a vez que se queira alterar a governança prevista na respetiva lei, a transferência de um município de determinado bloco para outro etc. Talvez por isso que São Paulo tenha apostado em não detalhar a estrutura decisória e orgânica das unidades, como assim o fizeram Bahia, Pernambuco e outros. Curioso é o modelo de Rondônia, em que se formatou um único bloco, ou seja, o estado inteiro é uma região, uma unidade;

3) Por esse modelo de regionalização, a adesão dos municípios será facultativa. Logo, dificuldades de toda ordem estão sendo percebidas. A adesão dificilmente ocorrerá em relação a municípios que possuem seu serviço organizado, não dependam de recursos federais ou estejam próximos à universalização. Exemplos não faltam: Jundiaí (SP) presta o serviço por meio de uma companhia municipal que possui índices bastante sólidos em termos contábeis e financeiros e praticamente já universalizou o tratamento de água e de esgoto. Há dificuldade de encontrar algum sentido de este município aderir a uma unidade, a custear os serviços de localidades não atrativas;

4) Outro problema que se está a perceber reside no fato de que muitos municípios possuem autarquias que prestam esse serviço. Ainda que possuam índices baixos de universalização e dependam dos eventuais recursos federais, sua adesão é muito complexa porque, ao aderir à unidade, a autarquia deverá ser desmobilizada ou remodelada. Objetivamente: o que fazer com as estruturas já construídas e, principalmente, com os recursos humanos (servidores públicos detentores de empregos ou de cargos públicos)? Alguns municípios, ao ingressarem em um modelo de prestação regionalizada, solucionaram esse problema de algumas formas: ou incorporaram os servidores em outras funções, dentro da estrutura orgânica da municipalidade, ou mantiveram a autarquia, mas agora prestando outras funções, como a drenagem e a limpeza urbanas — deixando o tratamento de esgoto e de água à unidade regional de referência;

5) O processo de construção da regionalização em muitas localidades ainda contou com toda sorte de obstáculos político-ideológicos pouco relacionados a aspectos técnicos. E esse não é um fator a ser desprezado.

O novo marco legal incentiva a adesão não só a partir do condicionamento quanto ao recebimento de recursos federais, mas também a partir de ganhos de escala e de escopo, por exemplo. Contudo, a realidade revelou outra vantagem da prestação por meio de blocos ou de unidades regionais, contada a mim pela professora Karla Bertocco: a regionalização tende a garantir a presença de conexão entre localidades, formando um sistema integrado de abastecimento. A crise hídrica de 2021 deixou isso a olhos vistos: municípios não interligados, seja por um prestador comum (exemplo: companhia estadual), seja por meio de uma prestação regionalizada não conseguiram contar com a distribuição compensada de água. Em outras palavras, quando o sistema era interligado, conseguia-se transferir recursos hídricos de um manancial abastecido a outros locais que sofriam com a seca. Em municípios isolados, ou seja, com sistemas próprios, essa interlocução não aconteceu, sendo eles aplacados com mais profundidade pela crise.

De toda sorte, em muitas situações o processo avançou com algumas respostas. Havia a dúvida se a adesão deveria contar com a edição prévia de lei municipal autorizativa, a ser promulgada por cada ente federado local. O que se percebeu em uma série de estados foi a edição de convênio de cooperação entre todos os entes que compõem a unidade, o que dispensa o aval das Câmaras de Vereadores, tudo na forma do artigo 241 da Constituição Federal. Até porque a prática demonstrou que a unidade regional tem um papel muito mais de gestor e de fiscal da prestação, por isso que os recursos cedidos à instituição da unidade são humanos e parciais. Não temos casos de injeção de recursos e, por isso, não se precisa da edição de leis municipais. O que se viu na prática é a possibilidade que, diante de concessões feitas pelo bloco, parte da outorga seja destinada à manutenção da unidade.

Assim, reavivou-se o debate sobre titularidade do serviço de saneamento básico, conferindo-se um "arranjo de titularidade compartida" para se chegar à universalização. A titularidade foi consagrada ao município (artigo 8º, inciso I, da Lei nº 11.445/2007), mas surgiram como desdobramento disso fatores de ganho de escala e de escopo, o que orientou que a lei apontasse caminhos para a regionalização.

Na prática, as iniciativas feitas no país procuraram não misturar contratos com operadoras distintas. No máximo houve o convívio da companhia estadual para com serviços autônomos (prestação direta), como é o caso de Alagoas e de São Paulo. A formação de um bloco mais homogêneo garante mais segurança, prazos e dispositivos contratuais convergentes, uniformidade regulatória etc. Então, fica mais fácil se chegar à sustentabilidade da unidade.

Parece-nos ser inovador e adequado prever uma instância ou mecanismos de integração entre as várias unidades. Isso será fundamental para uniformizar prestações nos limites de cada qual, e garantir eventuais conexões entre prestadores. Essa interlocução poderia ser feita por meio dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, por exemplo. Em muitos estados, a consolidação entre unidades é operada por meio de agências reguladoras, e com isso se consegue a unificação de metas, tarifas etc. Mas isso só ocorre quando existe uma mesma agência que atua nas várias unidades.

Por tudo o que se disse e se está a vivenciar, pensamos que a aposta do legislador nacional na regionalização não foi a mais adequada. Compreendemos que seria mais eficaz a formação de "fundos de compensação", criados para justamente auxiliar municípios menos atrativos ou quando a prestação gera prejuízos.

Mas vamos fazer justiça ao mesmo legislador: no artigo 13 da Lei nº 11.445/2007, ele previu que se poderão instituir fundos, "aos quais poderão ser destinadas, entre outros recursos, parcelas das receitas dos serviços, com a finalidade de custear, na conformidade do disposto nos respectivos planos de saneamento básico, a universalização dos serviços públicos de saneamento básico". E essas receitas podem até mesmo ser empregadas como fontes ou garantias em operações de crédito para financiamento dos investimentos necessários à universalização dos serviços públicos de saneamento básico. O que o legislador nacional não fez foi incentivar a criação dos fundos, como assim tratou a prestação regionalizada. Por isso que, na nossa ótica, a aposta foi inadequada. A opção por fundos de equalização teria eliminado a série de problemas de cunho político e estrutural mencionados quanto à adesão voluntária dos municípios.

 


[1] Dados do Portal da Transparência da União: Disponível em: https://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/17-saneamento?ano=2021. Acesso: 2 de outubro de 2021.

[2] Dados do Portal da Transparência da União: Disponível em: https://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/17-saneamento?ano=2020. Acesso: 2 de outubro de 2021.

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