Opinião

Os novos desafios do Direito Penal

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

30 de novembro de 2021, 15h08

* Resumo da palestra no IX Fórum Jurídico de Lisboa em mesa que dividi com os colegas Pierpaolo Bottini, Alaor Leite e Ney Bello

Recentemente, num evento em Lisboa, fiz uma breve reflexão sobre as mudanças do Direito Penal nos últimos anos e os desafios que virão pela frente. De pronto já cabe mencionar o ferimento a vários regras e princípios básicos do Direito Penal que lutamos muito para edificar numa teoria do delito. Assim, a criminalização de estágios prévios delitivos (atos preparatórios), falta de delimitação das regras de autoria e participação, utilização cada vez mais de normas penais em branco e de tipos abertos, tudo isso ferindo, de alguma forma, o princípio da taxatividade no Direito Penal, o que se reflete em insegurança jurídica.

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Importamos teorias que muitas vezes não refletem a originalidade e a correta interpretação dos seus países de origem, como é o caso da teoria do domínio do fato, amplamente debatida na AP 470 que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, transformou-se em coautor, sem fundamento jurídico muitas vezes, o sujeito que de alguma forma concorria para o crime. As denúncias, principalmente nos delitos econômicos, já não descrevem mais de que forma o sujeito participou do delito, bastando que figure formalmente na sociedade, ou melhor, no papel para que concorra para o crime. É certo que a Corte Constitucional acabou corrigindo os desacertos da teoria do domínio do fato.

Em relação aos tipos penais abertos, há dificuldades de interpretação das condutas no momento da adequação típica. Veja-se, por exemplo, o caso de gestão temerária. Não há uma definição específica deste tipo penal previsto na Lei 7.492/86, cabendo ao intérprete (juiz) fazer o fechamento do tipo. Ocorre que não temos a formação técnica sobre mercado financeiro e de capitais para avaliar se uma conduta arriscada é verdadeiramente temerária, ou seja, se colocou em risco o bem jurídico tutelado. Aliás, muitos dos tipos penais sequer exigem um dano (crime material), pois se tratam de crimes formais ou de mera conduta, o que permite a punição com o simples agir do agente.

Voltando ao tema de teorias importadas, também a jurisprudência adotou de plano a teoria da cegueira deliberada, equiparando o "fechar os olhos" do agente ao assumir o risco de praticar o crime, isto é, o dolo eventual. Ocorre que nos países que adotam o sistema da common law ou de precedentes não há figuras equiparadas às previstas em nosso Código Penal. Diante disso, criamos em nosso sistema jurídico uma nova regra de imputação por equiparação ao sistema anglo-saxão. Assim, nos casos em que supostamente era possível a informação pelo agente e ele não o faz poderá responder por crime doloso, na modalidade de dolo eventual, tudo isso porque fechou os olhos diante de uma conduta que estava proibida. Ao fazer isso, assumiu o risco de praticar o crime. Ocorre que a verificação do conhecimento da possibilidade de consumação de um resultado e a conduta indiferente em relação a esse resultado são pressupostos essenciais do dolo. Mas é necessário ir além. O conhecimento não se limita a eventualidade de um resultado antijurídico genericamente; é preciso que o agente possua o conhecimento específico dos elementos objetivos do tipo em questão.

Importante destacar a figura das modalidades de consenso na justiça penal. Introduzidos há muito pela lei dos juizados especiais foram reforçadas pela lei de colaboração premiada e pelos acordos de não persecução penal. De fato, foi um avanço no sistema criminal que ajudou a desafogar a justiça penal. De um lado o Estado desistiu de buscar a sentença penal condenatória e, de outro, o sujeito de provar a sua inocência. O cuidado dos acordos deve sempre recair sobre a tipicidade penal ou sobre a prova, porque em determinados casos se levados a julgamento culminariam em absolvição do agente. Aliás, a respeito do tema o professor Douglas Husak fez importante reflexão sobre os acordos firmados no sistema norte-americano, onde constatou que a superposição de acusações e o custo da defesa criminal levava o sujeito a se declarar culpado e aceitar o acordo proposto pelo Ministério Público. Mas igualmente constatou que em diversos casos os processos não levariam a condenação do sujeito. Portanto, ainda há muito que refletir sobre os acordos e a justiça negocial.

Nos casos específicos dos acordos de colaboração premiada, houve avanços com o advento do "pacote anticrime" que fixou algumas balizas sobre os acordos que antes eram determinados pela jurisprudência. Assim, firmou-se o entendimento de que a colaboração premiada se trata de negócio jurídico processual, conforme voto paradigma do ministro Dias Tofolli no HC 127.483, e devem atender o interesse público. As denúncias não podem ser mais recebidas quando unicamente lastreadas na palavra do colaborador, ainda que sejam colaborações cruzadas. O magistrado deverá verificar se o colaborador está ou esteve sobre medidas cautelares, reforçando-se, assim, a voluntariedade da colaboração. As sanções premiais devem estar de acordo com o ordenamento jurídico. Embora esse ponto seja louvável em se tratando de justiça negocial, deveria ser possível uma flexibilização desde que não gravosa ao colaborador.

Por fim, tema que segue polêmico e foi objeto de tentativa de reforma é o da lei de lavagem de capitais. Seguimos com questões abertas se de fato em determinados casos se trata de lavagem de dinheiro ou mero exaurimento do crime, como nos casos do delito de corrupção passiva onde o recebimento de valores é ínsito ao tipo penal. O problema do momento da consumação do crime deve ser discutido com mais profundidade porque, se seguirmos adotando que se trata de crime permanente, dificilmente ocorrerá a prescrição deste delito. A autolavagem é uma questão igualmente problemática, mas deve ser revisitada quando o autor do delito antecedente e da posterior lavagem ferir o mesmo bem jurídico tutelado, embora, nesta questão, a doutrina e jurisprudência tenham consolidado o entendimento do concurso material de crimes. Também tormentosa é a possibilidade de banalização do delito de branqueamento de capitais dede a abertura do rol dos crimes antecedentes. Elogiável do ponto de vista de coibir a lavagem de dinheiro, mas problemática no sentido de que tudo se torne branqueamento de capitais.

Todas essas reflexões merecem destaque sobre os novos desafios do Direito Penal. Diante dos avanços tecnológicos e da necessidade de proteção de novos bem jurídicos, flexibilizamos alguns princípios que norteavam a política criminal no momento de elaboração dos tipos penais. A questão é saber se há espaço ainda para o bom e velho Direito Penal.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor titular de Direito Penal no IDP/Brasília e sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal.

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