Opinião

Ações sobre crianças e adolescentes têm prioridade absoluta de tramitação

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27 de novembro de 2021, 15h12

O artigo 227, caput, da Constituição Federal determina que é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar saudável, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  

Por sua vez, o §8º do artigo 226 da Carta Magna, tendo em conta que a família é a base da sociedade, fazendo, por isso, jus a especial proteção do Estado, estabelece que esse deve criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

Em obediência a tais mandamentos constitucionais, buscando assegurar a prioridade absoluta e integral outorgada às crianças e adolescentes, em 4 de agosto de 2009 foi publicada a Lei Federal nº 12.010/2009, que entrou em vigor na data de 2 de novembro daquele ano.

Referida lei, no §1º de seu artigo 1º, consigna que nas ações que versarem sobre direitos de cidadãos com idade inferior a 18 anos, a intervenção estatal deverá ser prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada a absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada.

A Lei nº 12.010/2009 também acrescentou ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei Federal nº 8.069/1990), os princípios processuais preventivos e protetivos que hoje se encontram estampados nos incisos do parágrafo único do artigo 100 desta última lei, cânones esses que se coadunam com o espírito contido no caput de tal artigo, que recomenda a aplicação de medidas preventivas, protetivas e pedagógicas, preferencialmente aquelas que visem ao fortalecimento, manutenção, reconstrução ou criação dos vínculos familiares e comunitários saudáveis.

Uma das mais importantes alterações trazidas pela Lei nº 12.010/2009 foi a introdução de um parágrafo único no artigo 152 do ECA, atualmente §1º, que assim dispõe: "É assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos nesta Lei, assim como na execução dos atos e diligências judiciais a eles referentes".

Após a inserção de tal dispositivo no ordenamento jurídico, a todo e qualquer processo ou procedimento previsto no ECA, ou nos que se enquadrem em qualquer das hipóteses previstas no artigo 98 de tal legislação, incluindo os ilícitos parentais, familiares e domésticos de natureza cível, é assegurada a prioridade absoluta de tramitação.

Interessante notar que a disposição trazida no artigo 4º da Lei 12.318/2010 (Lei de Alienação Parental), publicada em data posterior à Lei 12.010/2009, ao assegurar tramitação processual prioritária na hipótese de haver declaração judicial de indício de ato de alienação parental, nada acrescentou ao ordenamento jurídico, mas somente reiterou prerrogativa legal já existente, pois, independentemente de tal declaração, aos processos contenciosos envolvendo direitos de crianças e adolescentes, como, por exemplo, os que discutem guarda (proteção e cuidado) de filhos, arranjos e demais questões relacionadas à efetivação do direito à convivência familiar saudável, ilícitos parentais, familiares ou domésticos etc. já era assegurado, por lei, a prioridade absoluta de tramitação.

Nesse ponto, é oportuno esclarecer que quando falamos em ilícitos parentais, familiares e domésticos, tal fato se dá pela imprescindibilidade de ampliação de tal rol, adequando-o à realidade dos atuais arranjos, necessidades e diversidades familiares, em que as funções da parentalidade, lato senso, são exercidas por vários atores, como bem observa Philippa Perry:

"Quando uso a palavra 'pais', me refiro aos responsáveis pelo bem-estar de crianças, seja por razões biológicas e legais, seja por relação de parentesco ou amizade próxima; em outras palavras, o termo "pais" pode ser usado de maneira intercambiável com 'principais responsáveis'. Às vezes, uso a palavra 'cuidadores'; isso pode significar mães e pais, madrastas e padrastos, babás ou qualquer pessoa que seja a principal encarregada de cuidar da criança" [1].

Reforçando a importância de observância da prerrogativa de prioridade absoluta na tramitação dos processos que versam sobre interesses de crianças e adolescentes, notadamente no que tange aos cidadãos, sujeitos de direito, que se encontram na primeira infância, período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida, a Lei Federal nº 13.257/2016 asseverou que tal prioridade absoluta implica o dever do Estado, aí incluído o Poder Judiciário, de estabelecer políticas, planos, programas e serviços que atendam às especificidades e urgências dessa faixa etária.

Na mesma linha, o atual Código de Processo Civil (CPC), Lei Federal nº 13.105/2015, que entrou em vigor em março de 2016, também enfatizou, em seu artigo 1.048, a prerrogativa de prioridade absoluta de tramitação dos processos que dizem respeito a interesses dos cidadãos com idade inferior a 18 anos (inciso II), assim como dos feitos que tratam de violência doméstica ou intrafamiliar (inciso III).

Apesar de o inciso III do artigo 1.048 do CPC remeter à Lei Maria da Penha, tal disposição também se aplica aos processos nos quais se discute ilícitos parentais, familiares ou domésticos, de natureza cível, perpetrados contra crianças e adolescentes, por força da norma inserta no parágrafo único, do artigo 6º [2] da Lei Federal nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Questão relevante, que não pode passar desapercebida por nenhum operador do Direito, é o alerta contido no §4º, do artigo 1.048 do CPC, que assim prevê: "A tramitação prioritária independe de deferimento pelo órgão jurisdicional e deverá ser imediatamente concedida diante da prova da condição de beneficiário".

Nesse cenário, efetuado o pedido, advertido e ciente o juízo da incidência da hipótese legal de prioridade absoluta de tramitação, alternativa não restará ao magistrado, senão determinar a imediata e efetiva implementação de tal regime de tramitação, sob pena de responder, civil e regressivamente, por perdas e danos (artigo 143, inciso II, CPC).

Destarte, tendo o legislador cumprido seu papel de implementar o mandamento constitucional, assegurando a prioridade absoluta de tramitação aos processos que tratam de questões relativas à prevenção, proteção e aos demais direitos relacionados às crianças e adolescentes, cabe a nós, operadores do Direito, efetivar tal prerrogativa legal, fazendo o manejo, a tempo e modo, precocemente, de todos os meios e recursos necessários para assegurar a celeridade e à razoável duração dos respectivos processos, buscando evitar, principalmente, que crianças e adolescentes sejam submetidos ao estresse tóxico, traumático, oriundo da vivência de uma demanda judicial prolongada, com forte carga emocional negativa, equiparável aos piores tipos de violência psicológica.

 


[1] PERRY, Philippa. O livre que você gostaria que seus pais tivessem lido (e seus filhos ficarão gratos por você ler), tradução Guilherme Miranda  1ª ed.  São Paulo: Fontanar, 2020. p 13.

[2] Lei 13.341/2017. Artigo 6º A criança e o adolescente vítima ou testemunha de violência têm direito a pleitear, por meio de seu representante legal, medidas protetivas contra o autor da violência. Parágrafo único. Os casos omissos nesta Lei serão interpretados à luz do disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) , na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) , e em normas conexas.

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