Opinião

Processo e procedimento na nova Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Ricardo de Barros Leonel

    é mestre doutor livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e promotor de Justiça em São Paulo.

26 de novembro de 2021, 9h13

1) Introdução
A Lei 14.230/2021 realizou profundas modificações no sistema de tutela da probidade administrativa, regulado pela Lei 8.429/92. Parte delas tem conteúdo processual e, a pretexto de fortalecer o devido processo legal e o contraditório sob a perspectiva do réu, desenha importantes limitações quanto ao processo e ao procedimento.

Sem esgotar o tema (pois se está diante de uma nova realidade, sendo necessário compreendê-la melhor), é importante, desde logo, demarcar pontos que afetarão o dia a dia dos profissionais do foro.

Alguns deles chamam a atenção, pois dizem respeito ao modo como a pretensão é formulada (propositura da demanda, documentada na petição inicial), sobre como ocorrerá a instrução e sobre os limites do julgamento. Ou seja, circunscrevem aspectos do objeto litigioso por meio de disposições relativas ao procedimento.

Devemos procurar uma compreensão que lhes atribua sentido aceitável e inteligente, sob pena de sermos forçados a concluir que se trata de uma "não lei", ou seja, aquela que tem o propósito de regular certa temática, mas, por suas próprias disposições, inviabiliza sua aplicação.

2) Restrições
Os pontos que, neste momento, chamam a atenção são: a aparente vedação de alteração da tipificação do ato, reconhecida no saneamento (artigo 17, §10-C); a nulidade da sentença que condenar por tipo diverso do indicado na inicial (artigo 17, §10-F, I); a nulidade da sentença que condenar sem a produção de provas tempestivamente especificadas pelo réu (artigo 17, §10-F, II); a não aplicação da presunção de veracidade em caso de revelia (artigo 17, §19, I); a impossibilidade de inversão dos encargos probatórios (artigo 17, §19, II); a vedação do ajuizamento da ação de improbidade pelo mesmo fato (artigo 17, §19, III).

Tais disposições são compreensíveis. O legislador reconhece, na ação de improbidade, mecanismo para a atuação fiscalizatória e punitiva do Estado (exercício do ius puniendi), no campo do chamado Direito Sancionador que, embora de conteúdo civil (artigo 37, §4º, e artigo 129, §1º, da CF) expõe o réu a severas consequências e, por isso, deve também lhe assegurar, com maior amplitude do que ocorre no processo de natureza civil tradicional, a observância das garantias constitucionais do processo.

3) Riscos de inconstitucionalidade
Ocorre dizer, entretanto, que as garantias constitucionais do processo devem valer para todos os sujeitos do processo, demandante, demandado e terceiros intervenientes. Se não é correta a perspectiva metodológica que põe o autor em posição de proeminência que naturalmente decorre de sua iniciativa, é importante a orientação em direção ao "processo civil de resultados" [1], que se faz presente na busca pelo equilíbrio.

Só se pode falar em processo justo com a observância de todas as garantias constitucionais do processo em relação a todos os litigantes [2].

Dito isso, deve-se atentar para o fato de que a interpretação literal das disposições acima pode fomentar juízo de inconstitucionalidade.

Assim, a aparente vedação de alteração da tipificação do ato, reconhecida no saneamento (artigo 17, §10-C), associada à nulidade da sentença que condenar por tipo diverso do indicado na inicial (artigo 17, §10-F, I), aparentemente colide com a garantia da ação (artigo 5º, XXXV, da CF). Esta não se esgota na possibilidade de propor a demanda em juízo, alcançando a efetiva chance de obter tutela jurisdicional, com decisão favorável ou desfavorável ao autor. Também parece esbarrar na estrutura de divisão de poder e de seu exercício, impedindo que o juiz cumpra seu papel, ou seja, julgue.

Já a previsão de nulidade da sentença que condenar sem a produção de provas tempestivamente especificadas pelo réu (artigo 17, §10-F, II) pode esbarrar na garantia da razoável duração do processo e do emprego dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (artigo 5º, LXXVIII da CF), além de impedir que o magistrado exerça parte do seu poder, que inclui a avaliação sobre a pertinência, necessidade e utilidade da produção da prova.

Note-se: uma situação é analisar e dizer, "a prova deve ser realizada ou não", fixando critérios para tanto. Outra é impedir o juiz de fazê-lo. Isso significa tirar do juiz parte do poder inerente à atividade jurisdicional, o que tangencia, sob a perspectiva do poder (que é antes de tudo constitucional) o campo de atuação da jurisdição.

Note-se que nem mesmo no Processo Penal, que cuida da possibilidade de sanções mais graves do que aquelas relacionadas à tutela da probidade administrativa (penas privativas de liberdade), há tratamento análogo àquele que decorreria da interpretação literal da Lei 14.230.

Não se pretende, aqui, enveredar pela discussão no sentido da inconstitucionalidade. Enquanto tais disposições estejam em vigor, como fruto da atividade legislativa, devem ser observadas. Isso não impede o intérprete, entretanto, de realizar seu papel hermenêutico, procurando nos preceitos exegese compatível com a ordem constitucional.

4) Interpretação apropriada
Não se vislumbra qualquer ressalva, por exemplo, à não aplicação da presunção de veracidade em caso de revelia (artigo 17, §19, I), à impossibilidade de inversão dos encargos probatórios (não aplicação das "cargas dinâmicas", cf. artigo 17, § 19, II), ou mesmo à vedação do ajuizamento da ação de improbidade pelo mesmo fato (artigo 17, §19, III), em si mesmas.

As ações de improbidade permitem a aplicação de sanções rigorosas. Os parâmetros relacionados à produção de provas e à sua avaliação devem, consequentemente, ser mais rigorosos que aqueles aplicados no processo civil tradicional.

Essa observação permite concluir que se mostra acertada a opção do legislador, no sentido de vedar a aplicação do efeito da revelia (presunção de veracidade), bem como a inversão dos encargos probatórios. Cabe ao autor, Ministério Público, provar, efetivamente, a ocorrência das alegações de fato que traz na inicial da demanda.

A vedação do ajuizamento de outra ação de improbidade pelos mesmos fatos, em si mesma, não é novidade alguma. É a mesma vedação que decorre da litispendência ou da coisa julgada. Outra dicção para institutos que já são, de todos, bem conhecidos.

Cenário diferente se apresenta, contudo, com relação à demais restrições.

Antes de tudo, duas observações. Não há dúvida quanto à aplicação imediata da lei no que se refere aos seus aspectos processuais, em relação aos processos pendentes, mantendo-se os atos já praticados, anteriormente, no processo (artigo 14 do CPC-15). Isso não dispensa, entretanto, a diretriz pela qual, antes de aplicar a lei nova, deve o juiz assegurar às partes a oportunidade de manifestação prévia (artigos 9º, 10 e 933 do CPC-15).

Estabelecidas as premissas, cumpre encontrar exegese que acomode as disposições legais à moldura constitucional e ao sistema processual.

A vedação do artigo 17, § 10-C, é, antes de tudo, aparente.

Ao sanear o processo o juiz deve fixar as questões controvertidas sobre as quais versará a instrução probatória, bem como as questões de direito que irá enfrentar (artigo 357 do CPC-15). A lei acrescenta um dado: deve indicar com "precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa (…) sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor".

Modificar o "fato principal" é algo que o juiz não pode fazer em processo algum, pois quem indica os fatos constitutivos é o autor (artigo 319, II, do CPC-15). Quanto à capitulação legal, a manifestação do juiz a respeito, no momento do saneamento, não é definitiva, pois ainda não se trata de julgamento. O contrário significaria impedir o juiz, no momento próprio (sentença), de fazer o que dele se espera: julgar.

Como compreender, assim, tal orientação normativa? Entendendo que o juiz, de fato, não pode (nunca) alterar o fato principal, mas a capitulação legal por ele externada no saneamento é provisória.

Note-se, nesse ponto, que a análise deve ser conjunta, do artigo 17, §10-C (vedação de modificação da capitulação), com o artigo 17, §10-F, I (nulidade da sentença que modificou).

Caso o juiz entenda que deve dar aos fatos outra capitulação legal, deverá observar o contraditório prévio (artigos 9º, 10 e 933 do CPC-15), tanto como ocorre no processo penal (artigos 383 e 384 do CPP).

Negar essa possibilidade é negar ao juiz a possibilidade de julgar e conceder tutela jurisdicional. Isso violaria a garantia da ação (artigo 5º. XXXV, da CF), o que fica ainda mais evidente se visto ao lado de outra vedação, de que nova ação seja proposta com base nos mesmos fatos (artigo 17, §19, III).

Outro ponto é a previsão de nulidade da sentença que condenar sem a produção de provas tempestivamente especificadas pelo réu (artigo 17, §10-F, II).

O processo é oneroso instrumento estatal de solução de conflitos. Deve ser utilizado de modo eficiente e econômico. Instrução probatória deve ocorrer em relação a fatos relevantes, pertinentes e controvertidos (artigo 374 do CPC-15).

A atividade probatória não pode ser compreendida como um capricho. Do contrário, abrir-se-ia ao litigante malicioso a possibilidade de impedir ou, quando menos, dilatar excessiva e desnecessariamente, a duração do processo. Isso se mostra ainda mais grave num regime prescricional que desequilibra a relação, propiciando incompreensível redução pela metade do prazo prescricional mesmo após o reconhecimento do direito deduzido pelo autor, com a sentença de procedência (artigo 23, §5º).

Ou seja, se a produção de provas for uma prerrogativa absoluta (e não uma possibilidade a ser avaliada a cada caso concreto), ela significará, na prática, deixar nas mãos do réu a chave destinada a abrir a porta da prescrição.

Qual a interpretação adequada, portanto, para tal disposição? Haverá nulidade da sentença, sim, caso seja negada a produção de prova tempestivamente requerida, desde que esta seja relevante, pertinente, diga respeito a fatos controvertidos. Além disso, claro, desde que seja demonstrado o prejuízo em decorrência da não realização da prova.

Que não se declara nulidade sem prejuízo, bem como que não se decreta nulidade em proveito da parte que lhe deu causa, é algo que há muito foi incorporado à doutrina processual brasileira e está, no CPC-15, no âmbito de cláusulas compreendidas como verdadeiro estatuto da instrumentalidade no processo civil (artigos 276, 277, 282, §1º).

Elas não foram revogadas pela nova lei.

5) Conclusão
É importante, nos momentos iniciais que essa nova realidade normativa apresenta, agir com cautela na sua interpretação.

Não é correto deixar ruir todo o edifício em torno do qual se construiu a ciência processual brasileira, com sofisticação reconhecida aqui e alhures, em prol da interpretação meramente literal das disposições da lei nova.

O desejo do legislador (mens legislatoris) pode, de fato, ter sido num determinado sentido. O produto do seu trabalho, entretanto (mens legis), é o que realmente importa. E este não pode ser compreendido de forma descontextualizada, como se inexistisse o sistema constitucional e legal, com seus sólidos pilares, que não se abalam com bafejadas de ar quente.


[1] O chamado "processo civil do autor" (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, I, 10ª ed., São Paulo, Malheiros, 2020, p. 198) é posto sob crítica, endereçando-se os esforços ao equilíbrio, na busca pelo "processo civil de resultados".

[2] Sobre o "processo justo", confira-se: Cfr. Luigi Paolo Commoglio (La garanzia costituzionale dell’azione e il processo civile, Padova: CEDAM, 1970, p. 154-157, esp. P. 156). No mesmo sentido Nicoló Trocker )"Il valore constituzionale del 'giusto processo'", in Il nuovo articolo 111 della Costituzione e il giusto processo civile, Milano: Franco Angeli, 2001, p. 45); Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de direito processual civil, I, cit., p. 377-380), e José Roberto Dos Santos Bedaque (Efetividade do processo e técnica processual, São Paulo: Malheiros, 2006., p. 24-26).

Autores

  • é mestre, doutor, livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e promotor de Justiça em São Paulo.

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