Opinião

A Lei Mariana Ferrer no júri: expectativa popular e realidade jurídico-criminal

Autores

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

  • Raquel Alves Rosa

    é advogada criminalista mestre em Direito (UFRJ) pós-graduada em Direito (Emerj) professora do projeto e do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

26 de novembro de 2021, 21h37

O "caso Mari Ferrer" se origina da acusação de que o empresário André de Camargo Aranha estuprou Mariana Ferrer em sua boate, Café de La Musique, em Florianópolis. O Ministério Público de Santa Catarina o denunciou por estupro de vulnerável, uma vez que teria tido conjunção carnal quando Mariana não tinha condições de dar verdadeiro consentimento.

Embora André tenha afirmado, em um primeiro momento, que nunca teve contato físico com Mariana, seu discurso mudou após a perícia ter constatado o ato sexual e a presença de sêmen dele na roupa dela. A partir disso, o empresário passou a afirmar que não sabia que Mariana estava incapaz de consentir com o ato.

O caso vinha sendo acompanhado por milhares de pessoas nas redes sociais, pois, diante das intempéries que enfrentou já em sede de delegacia, Mariana começou a verbalizar o que estava acontecendo no que tange ao que entendia ser descuido em relação às provas. Mariana estava rompendo o paradigma do sofrimento solitário da vítima ao utilizar a única ferramenta que tinha, a internet, para publicizar um pouco da prática do sistema de Justiça Criminal brasileiro, que atua cotidianamente dessa mesma forma, mas protegido pela pouca visibilidade de sua rotina.

Entretanto, o caso ganhou notoriedade nacional quando, apesar das provas constantes dos autos, o empresário foi absolvido. Na sentença, o juiz, que entendeu não haver provas contundentes quanto "à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação", afirmou que, pelo vídeo acostado aos autos, a vítima demonstrava "controle motor, não apresenta distúrbio de marcha, característico de pessoas com a capacidade motora alterada pela ingestão de bebida alcoólica ou de substâncias químicas". Algo noticiado erroneamente como "estupro culposo", causando grande confusão e revolta social.

Ocorre que, posteriormente, o caso voltou a chocar o público quando o site The Intercept Brasil divulgou o vídeo da audiência de instrução e julgamento, naturalmente ocorrida antes da sentença, mas até então em sigilo, na qual o advogado de defesa de André ofendeu e humilhou Mariana, fazendo afirmações de que ela postaria imagens "ginecológicas" em seu perfil pessoal na rede social Instagram e, ainda, que "graças a Deus" não tinha uma filha do nível de Mariana. Indo além, declarou pedir a Deus que seu filho não encontrasse uma mulher como ela, já que, ao seu ver, como explicitou: "A verdade é essa, não é? É o seu ganha pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem…". Independentemente de quem era o juiz, o promotor e os advogados, a audiência foi um ato exemplar de misoginia.

Mariana recorreu da decisão, mas os desembargadores mantiveram a absolvição e o que ficou, por parte do público que acompanhou o caso, foi um profundo desalento em relação ao sistema de Justiça Criminal, ao tomarem conhecimento do massacre ocorrido com a vítima e tantas que, socorrendo-se do sistema de Justiça Criminal, saem, muitas vezes, ainda mais destruídas, moral e psicologicamente.

Dessa forma, após aprovação das duas casas legislativas e sanção presidencial, passou a vigorar na terça-feira (23/11) a Lei nº 14.245/21, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que faz uma alteração penal e uma processual penal.

No que tange ao Direito material, a lei em comento prevê o aumento da pena para quem cometer o crime de coação no curso do processo quando este envolver crime contra a dignidade sexual.

Já no que tange ao Direito Processual Penal, houve mudanças no Código de Processo Penal e na Lei dos Juizados Especiais, estabelecendo que, em audiência, seja preservada a integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e até administrativa dos envolvidos no ato processual.

Nesse sentido, a lei prevê que é dever do juiz garantir que, durante a audiência, não haja a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios ao objeto de apuração nos autos, nem a utilização de linguagem, informação ou material que ofenda a dignidade da vítima ou de testemunha, criando limites necessários à urbanidade entre as partes.

Nesse diapasão, ressalte-se que não é a primeira vez que o ordenamento jurídico penal passa por alterações voltadas a conter o abuso, há muito presente, da exploração de elementos externos ao fato. A vedação da referência ao uso de algemas no Plenário e a proibição da menção à peça de pronúncia quando da sessão plenária de julgamento são exemplos disso. A diferença é que, pela primeira vez, o foco da proteção é a vítima e não o réu.

Mas tal limitação da Lei Mariana Ferrer, produto de um processo penal historicamente violador de garantias do réu e da vítima, afronta o princípio da plenitude de defesa presente no Tribunal do Júri? Importa o debate.

As inovações legislativas foram trazidas à luz do caso da Mariana Ferrer, que não é submetido ao júri, e no qual o advogado se utilizou de fotos sensuais da vítima para humilhá-la, sem que isso guardasse qualquer relação com o fato (estupro) debatido. Assim, a lei, de maneira acertada, seria capaz de penalizar os excessos ocorridos na vara criminal.

Não obstante, para o plenário do júri, o que a Lei Mariana Ferrer traz é que, a partir de hoje, só pode ser usado o que é relevante à análise do fato e diretamente a ele relacionado. Mas como fica a proteção do réu? Isso porque, se por um lado os exageros em Plenário se dão, no geral, pela utilização de elementos externos que reafirmam a culpa de quem senta na cadeira vexatória, por outro, o julgamento por pares só faz sentido se estes podem entender  muito além do fato julgado  quem são os atores por trás desse fato. Lembrando sempre que, mesmo antes da nova lei, a garantia da urbanidade já era dever do juiz-presidente.

Ademais, o entusiasmo inicial de muitos corre risco de rapidamente cair por terra diante das muitas interpretações possíveis do texto legal aberto, tal como publicado. O espaço discricionário e o inexorável componente pessoal na leitura sobre o que sejam "circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração", e ainda, a própria definição do que poder ser considerado ofensivo à dignidade da vítima (e das testemunhas) criará tantas aplicações quantos forem os juízes que as apliquem, sabendo-se desde logo que, a contar pelos muito censos realizados pelos tribunais, haverá enorme chance de que, nessas leituras, revele-se um profundo moralismo, sobretudo naqueles casos que envolvam a dignidade e a liberdade sexual  ainda quando não objeto direto do debate, como acontece, muitas vezes, no Tribunal do Júri.

Esse é o problema de somente mudar a lei enquanto continua intacta a estrutura patriarcal, esta que se revela principalmente em instituições punitivistas e institutos não restaurativos como os que compõem o sistema de justiça criminal. Teleologicamente, a Lei Mariana Ferrer é um avanço. Na ordem do dia, porém, pode ser revelar um novo constritor das garantias constitucionais. De certo haverá alguns ganhos com ela, impedindo alguns absurdos como o ocorrido no caso que deu origem à lei, mas impera a necessidade de pensar maneiras estruturais e, por isso, efetivas, de garantir que o Poder Judiciário não continue (re)produtor de violência.

Autores

  • é advogada criminalista, doutoranda e mestre em Direito pela USP e professora do projeto de extensão Mulheres Encarceradas, do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • é advogada criminal, mestre em Direito (UFRJ), pós-graduada em Direito (Emerj), professora do Projeto de Extensão Mulheres Encarceradas da FND-UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

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