Opinião

O 'administrador médio' não poderia ser 'alto' ou 'baixo'?

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

26 de novembro de 2021, 17h12

Na década de 50 do século passado, a aviação nacional ainda estava a se consolidar com modelos de aeronaves próprios à época. Conta-se que a empresa brasileira de transporte aéreo mais famosa contratava comissárias de bordo somente com determinada estatura. Não poderiam ser tão altas porque bateriam a cabeça no teto ou ficariam andando esgueiradas, dado que os aviões eram fabricados com uma parte interna muito estreita. E, por motivos bastante questionáveis, a empresa não contratava comissárias de baixa estatura. Elas deveriam ter "altura média", excluindo-se a possibilidade de contratação de boas funcionárias com alta ou baixa estatura.

Essa passagem pode revelar o dilema que reiteradamente é noticiado: o emprego pelo Tribunal de Contas da União (TCU) do conceito de "administrador médio". Resumidamente, a corte fixa padrões de conduta que considera aceitáveis, razoáveis, lícitos etc. e sanciona aqueles gestores que se afastam do arquétipo. Essa metodologia não é nova, porque já foi abordada — e abandonada  pelo Direito Penal (v.g. conceito de "homem médio" para definir a culpa), quando se tratou da boa-fé objetiva, e mesmo pela Psicologia  veja que a psicologia analítica de Carl Jung muito se traduz em "padrões de conduta", os quais por ele foram definidos e classificados para explicar os modelos de comportamentos sociais. Mas, antes, os gregos antigos já falaram em arquétipos: archein significa "original" e typos é traduzido por "padrão". De modo que se fixariam "padrões originais" para o agir do ser humano na sociedade.

Em todas essas situações, sempre voltaram à tona questões do tipo: quem define os padrões? Qual a legitimidade? A eleição dos padrões não seria subjetiva ou, no limite, arbitrada? Essas perguntas já foram respondias nos vários textos mencionados e em tantos outros, revelando até mesmo a contrariedade com a metodologia do TCU, ao se permitir fixar tais "padrões originais" = arquétipos. Dou um passo atrás: o mundo de hoje é extremamente volátil e rápido, trazendo constantemente à tona uma série de novidades. Logo, a fixação de padrões objetivos do "administrador médio" correria o risco de: 1) não acompanhar estas modificações; ou 2) impedir que elas sejam aplicadas no âmbito da Administração Pública.

Veja o caso: há alguns anos  ao menos aqui em Porto Alegre , surgiu uma onda do que se chamou de food trucks, os quais se estabeleciam em estacionamentos públicos ou ruas da cidade para comercializar alimentos e bebidas. Não havia legislação específica a respeito. Como o "administrador médio" se comportaria quando o padrão de conduta não está regulado? Muitos gestores "altos", não médios, aplicaram por analogia a legislação referente aos ambulantes.

E esse mesmo raciocínio vale para qualquer nova tecnologia, a qual certamente desafiará os padrões impostos ao "administrador médio". O efeito é danoso: a impossibilidade de se pretender incorporar essas novas tecnologias no âmbito da Administração Pública, porque fatalmente fugiriam do "padrão original", e colocariam o gestor ao alcance de um sancionamento.

Certa feita um estado da federação tinha um problema grave relacionado à segurança pública e, de quebra, estava acometido de uma grave crise financeira. É dizer: os índices de criminalidade eram alarmantes e não havia recursos para a ampliação das vagas em presídio. Diante dessa conjuntura, a solução encontrada pelo "administrador baixo" foi não fazer nada. O "administrador médio" resolveu fazer um leilão para vender os imóveis inservíveis do Estado e, com os recursos, fazer outra licitação para construir o presídio, situação que se prolongaria por anos até a operação efetiva da cadeia pública. E o "administrador alto" compreendeu que era melhor fazer uma única licitação, em que o vencedor seria escolhido a partir da combinação de dois critérios: oferta de maior valor aos referidos bens e menor valor por metro quadrado construído, sendo que dois presídios foram erguidos em pouco tempo  deixo destacado ao leitor que o exemplo é real.

Este último é considerado "administrador alto" porque saiu de um padrão de conduta média. Afinal, as leis gerais de licitações não regulam o critério de julgamento escolhido por ele. E estamos diante de uma construção engenhosa daquele que não foi mediano, mas fez acontecer a política pública tão desejada. Este gestor fugiu do "padrão de conduta original".

Assim como a altura dos aviões no século passado era um obstáculo objetivo às comissárias altas, a legislação também assim o será aos administradores que pretendam contrariar o sistema jurídico. Não se pode admitir um "administrador alto" ou "baixo" desrespeitando o sistema jurídico. Mas assim como os aviões, mudaram as legislações e o mundo, colocando em xeque veementemente a escolha apenas de comissárias e administradores "médios".

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