Direito do Agronegócio

A securitização da dívida agrícola e o Programa de Retomada Fiscal

Autores

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

  • Viviane Faulhaber Dutra de Magalhães

    é advogada mestranda em direito econômico financeiro e tributário pela USP (Universidade de São Paulo) especialista em direito tributário e professora conferencista pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários). Assessora jurídica em Tributário da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).

  • Raquel de Andrade Vieira Alves

    é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal autora do livro "Federalismo fiscal brasileiro e as contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris 2017) cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e advogada.

26 de novembro de 2021, 8h00

Em meados da década de 1990, a crise financeira que assolava a economia nacional prejudicou diversos setores, produzindo reflexos específicos em relação às dívidas agrícolas. Diante desse cenário, a União foi levada a tomar algumas medidas a fim de garantir a subsistência tanto dos produtores rurais quanto dos agentes financeiros e, com isso, manter uma realidade economicamente viável para a próxima década [1].

Spacca
Uma das opções do governo federal para que os agentes financeiros e os produtores rurais pudessem prosseguir as suas atividades com certa liquidez foi o "alongamento do pagamento das dívidas rurais", mais conhecido como "securitização das dívidas agrícolas". De forma geral, é possível dizer que a "operação de securitização" constitui procedimento no qual um ativo de difícil negociação é trasmudado em um título mobiliário passível de negociação no mercado financeiro e de capitais [2]. Com isso, o risco do inadimplemento é transferido ao adquirente do título.

Entretanto, no contexto da dívida rural brasileira, a operação de securitização é dotada de peculiaridades que remontam ao plano de renegociação, lançado pelo governo federal a partir da edição da Lei nº 9.138, de 29 de novembro de 1995 [3]. A principal delas é a interferência direta do Tesouro Nacional na operação, como agente emissor de títulos públicos garantidores ou equalizadores da dívida rural. Para tanto, a Lei nº 9.138/95 determinou no artigo 5º, §3º e §5º, que seriam "objeto do alongamento a que se refere o caput as operações contratadas por produtores rurais, suas associações, condomínios e cooperativas de produtores rurais, inclusive as de crédito rural, comprovadamente destinadas à condução de atividades produtivas, lastreadas com recursos de qualquer fonte, observado como limite máximo, para cada emitente do instrumento de crédito identificado pelo respectivo Cadastro de Pessoa Física – CPF ou Cadastro Geral do Contribuinte — CGC, o valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) [..]" e que "os saldos devedores apurados, que se enquadrem no limite de alongamento previsto no § 3º, terão seus vencimentos alongados pelo prazo mínimo de sete anos […]". Para garantir valor das dívidas, o artigo 6º do mesmo diploma trouxe a previsão de que: "É o Tesouro Nacional autorizado a emitir títulos até o montante de R$ 7.000.000.000,00, (sete bilhões de reais) para garantir as operações de alongamento dos saldos consolidados de dívidas de que trata o art. 5º".

Essa primeira etapa do plano de renegociação da dívida rural foi regulamentada pela Resolução nº 2.238, de 31 de janeiro de 1996, emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), cujo artigo 14 evidencia o delineamento da operação ao prever que: "Na formalização da operação de alongamento, o agente credor da operação cederá o respectivo crédito ao Tesouro Nacional figurando a instituição financeira, no contrato de cessão, como garantidor, autorizando, para tanto, expressa e irrevogavelmente o Banco Central do Brasil a debitar em sua conta Reservas Bancárias para efetivação da cobertura da referida garantia, em favor do Tesouro Nacional, quando por este solicitado".

Note-se que, mediante cessão de crédito, o produtor, nessa etapa inicial do plano, passou a ter um débito com o Tesouro Nacional, em substituição à dívida com a instituição financeira, que originalmente era sua credora. Esta última, no entanto, permaneceu como agente garantidor da dívida, mediante a possibilidade de débito em conta de reserva, com autorização do Banco Central.

Em seguida, com o objetivo de complementar o procedimento de alongamento das dívidas originárias de crédito rural que haviam sido excluídas pelo artigo 5º, §6º, da Lei nº 9.138/95, em especial aquelas superiores a R$ 200 mil, além de regulamentar as dívidas que não foram abarcadas pela primeira resolução, foi criado o Programa Especial de Saneamento de Ativos (Pesa), pela Resolução CMN nº 2.471/98.

Importante mencionar que esse novo programa, integrante da fase seguinte à securitização inicial das dívidas rurais, seguiu uma dinâmica específica. Isso se deu em razão da exigência de aquisição, pelo produtor rural, de títulos emitidos pelo Tesouro Nacional (Certificados do Tesouro Nacional — CTN), cujo valor de face correspondia à dívida originária, e de repasse desses títulos aos agentes financeiros credores. Assim, a instituição credora ficaria com os títulos do Tesouro Nacional adquiridos pelos produtores rurais como garantia do principal da operação [4].

O título público de posse da instituição financeira deveria permanecer bloqueado até o vencimento final da operação, ocasião em que o reembolso do capital seria feito através de seu resgate. Em paralelo, os juros da dívida principal seriam pagos à instituição financeira pelo mutuário de acordo com o seu fluxo de receitas, sob as garantias usuais do crédito rural. Em resumo, "esta operação corresponde a uma compra de títulos do Tesouro Nacional por parte dos mutuários do crédito agrícola, ativos estes próprios a satisfazerem o principal dessa dívida junto à instituição financeira, ficando o mutuário com a obrigação de pagamento dos juros acessórios durante a vigência da renegociação (20 anos)" [5].

Portanto, no Pesa os CTNs adquiridos pelos produtores rurais pelo equivalente a 10,37% da dívida original, ao final do prazo do alongamento, serão resgatados de modo que o seu valor nominal corresponda ao principal, devidamente atualizado. Em paralelo, os juros deverão ser pagos pelos produtores rurais à instituição financeira credora até o vencimento do título.

Na sequência, a Lei nº 9.866, de 9 de novembro de 1999, promoveu alterações na Lei nº 9.138/95 a fim de, entre outras coisas, permitir que as instituições financeiras financiassem a aquisição dos títulos pelos produtores rurais, além de possibilitar a concessão de um rebate na taxa de juros. Posteriormente, a Medida Provisória nº 2.196-3, de 24 de agosto de 2001, cedeu as securitizações à União juntamente com o risco do crédito. Apenas em caso de apuração de falha na contratação e na condução da operação haveria retorno de risco de crédito à instituição financeira. E, finalmente, com o advento da Lei nº 10.437, de 25 de abril de 2002, o prazo de alongamento da dívida rural foi estendido até 2025.

Da contextualização normativa acima, é possível depreender que eventuais parcelas do alongamento que deixarem de ser adimplidas pelo produtor rural culminarão com a inscrição em dívida ativa do respectivo crédito e a consequente cobrança pela União, nos termos da Lei nº 6.830/80. É que, na primeira etapa do plano de renegociação, o Tesouro Nacional assumiu o crédito das instituições financeiras, de imediato, fazendo com que os mutuários passassem a ser devedores da União. Já, na fase subsequente que corresponde ao Pesa, o Tesouro Nacional atuou, em um primeiro momento, como agente garantidor da dívida rural junto às instituições financeiras, porém, a partir da Medida Provisória nº 2.196-3/01, mais uma vez assumiu o crédito destas últimas.

Logo, seja no âmbito da primeira etapa do plano de renegociação da dívida rural, seja no âmbito do Pesa, considerando a assunção dos créditos pelo Tesouro Nacional, os valores eventualmente devidos pelos produtores rurais seguirão o regime jurídico de cobrança do crédito público.

Nesse contexto, considerando o recente conjunto de medidas da Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN) para estimular a conformidade fiscal, em razão dos impactos econômicos e financeiros causados pela pandemia da Covid-19, conhecido como Programa de Retomada Fiscal, seria possível a inclusão nas negociações de dívidas dos produtores rurais provenientes do Pesa?

Sem adentrar na questão subjacente da transação, já bem tratada em diversos artigos publicados nesta ConJur [6], vejamos o que se depreende da disciplina do programa.

O Programa de Retomada Fiscal foi instituído pela PGFN, no âmbito do artigo 14 da Lei nº 13.988/20 (regulamenta a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária) e nos termos da Portaria nº 21.562, de 30 de setembro de 2020 (artigo 3º, I, "c"), abarcando, entre as modalidades de negociação, a transação excepcional de débitos de titularidade de pequenos produtores rurais e agricultores familiares, originários de operações de crédito rural e de dívidas contraídas no âmbito do Fundo de Terras e da Reforma Agrária e do Acordo de Empréstimo 4.147-BR, inscritos em dívida ativa da União, disciplinada pela Portaria PGFN nº 21.561, de 30 de setembro de 2020.

O prazo para adesão, originalmente, se encerraria em 29 de dezembro de 2020, porém, foi reaberto neste ano pela Portaria PGFN nº 2.381, de 26 de fevereiro, para débitos inscritos em dívida ativa até 31 de agosto, permanecendo disponível para adesão até 30 de setembro. Vale dizer que a reabertura prevista na Portaria PGFN n° 2.381/21 (artigo 4º, I, "c"), nos mesmos moldes da Portaria PGFN n° 21.562/20, incluía nas modalidades de negociação a transação excepcional de débitos de titularidade de pequenos produtores rurais e agricultores familiares, originários de operações de crédito rural e de dívidas contraídas no âmbito do Fundo de Terras e da Reforma Agrária e do Acordo de Empréstimo 4.147-BR, inscritos em dívida ativa da União, disciplinada pela Portaria PGFN nº 21.561, de 30 de setembro de 2020.

Recentemente, antes do encerramento do prazo de adesão definido na Portaria PGFN n° 2.381/21, foi editada a Portaria PGFN nº 11.496, de 22 de setembro, que estendeu o Programa de Retomada Fiscal aos débitos inscritos em dívida ativa da União e também aos do FGTS até 30 de novembro. A possibilidade de adesão, por sua vez, foi estendida até 29 de dezembro. O novo normativo inovou ao permitir a inclusão de débitos de FGTS, mas, no que interessa ao presente artigo, manteve a previsão de negociação na modalidade de transação excepcional de débitos de titularidade de pequenos produtores rurais e agricultores familiares, originários de operações de crédito rural e de dívidas contraídas no âmbito do Fundo de Terras e da Reforma Agrária e do Acordo de Empréstimo 4.147-BR, inscritos em dívida ativa da União, disciplinada pela Portaria PGFN nº 21.561, de 30 de setembro de 2020 (artigo 4º, I, "c").

Portanto, diante da previsão expressa do artigo 4º, I, "c", da Portaria PGFN n° 11.496/21, tem-se que os débitos de titularidade dos pequenos produtores rurais e agricultores familiares, originários de operações de crédito rural, à exemplo dos débitos contraídos no âmbito do Pesa, podem ser incluídos no Programa de Retomada Fiscal, mediante transação extraordinária, regulada pela Portaria PGFN nº 21.561/20, desde que inscritos em dívida ativa até 30 deste mês, devendo a adesão ser efetivada até 29 de dezembro.

Levando em conta que os títulos públicos emitidos no âmbito do Pesa vencerão até 2025, de modo que o plano de renegociação da dívida rural ainda está em andamento, mas próximo de chegar a termo, os produtores rurais que eventualmente tenham débitos com a União provenientes do Pesa, relativos a parcelas de juros em atraso, por exemplo, se já houver inscrição em dívida ativa, podem incluí-los de imediato no Programa de Retomada Fiscal, eis que a adesão iniciou em 1º de outubro. Caso os débitos ainda não estejam inscritos em dívida ativa, para a inclusão na negociação, devem os produtores, o quanto antes, diligenciar junto à instituição financeira concedente do crédito o envio de informações pertinentes à Procuradoria da Fazenda Nacional, a fim de possibilitar a sua inscrição e respectiva inclusão no programa.

 


[1] "A implantação do Plano Real, em 1994, e a queda da inflação foram importantes para a estabilização econômica do País, porém, os produtores rurais ficaram mais vulneráveis diante desse novo cenário." (SILVESTRINI, André Dressano; LIMA, Roberto Arruda Souza. Securitização da Dívida Rural Brasileira: o caso do Banco do Brasil de 1995 a 2008. Rev. Econ. Sociol. Rural 49 (4). Dez 2011. p. 1026. Disponível em: https://www.scielo.br/j/resr/a/psdXbCKRK3CXtbP4dT8PBNQ/?lang=pt).

[2] SILVESTRINI, André Dressano; LIMA, Roberto Arruda Souza.Op. Cit. p. 1024.

[3] Após esse marco inicial de reestruturação das dívidas rurais, foram aprovadas sucessivas leis tratando de renegociação, inclusive — em alguns casos — de dívidas já renegociadas.

[4] SILVESTRINI, André Dressano; LIMA, Roberto Arruda Souza. Securitização da Dívida Rural. Op. Cit. p. 1030.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP, Insper e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

  • é mestranda em Direito Tributário pela USP, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professora do Ibet, colaboradora do coletivo jurídico Elas Discutem e advogada.

  • é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal, autora do livro "Federalismo fiscal brasileiro e as contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem (https://www.youtube.com/c/Elasdiscutem) e advogada.

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