Opinião

A pena de multa mínima para o tráfico de drogas e a perpetuação da miséria

Autores

  • Ava Garcia Catta Preta

    é advogada criminalista sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma Criminal da OAB-DF.

  • Maria Olívia Cardoso Langoni

    é advogada no escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados e pós-graduada em Direito Público Direito Civil e Direito Processual Civil.

24 de novembro de 2021, 10h36

No dia 22 de outubro do corrente ano, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 1347158/SP, tendo fixado a seguinte tese para o Tema 1.178 da sua repercussão geral: "A multa mínima prevista no artigo 33 da Lei 11.343/06 é opção legislativa legítima para a quantificação da pena, não cabendo ao Poder Judiciário alterá-la com fundamento nos princípios da proporcionalidade, da isonomia e da individualização da pena".

A Suprema Corte entendeu, portanto, pela constitucionalidade da pena de multa mínima prevista no artigo 33 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas).

A controvérsia girou em torno da possibilidade ou não de se fixar uma pena pecuniária mínima em abstrato (sem que se leve em consideração as condições subjetivas do condenado) — inovação trazida pela Lei de Drogas — diante das disposições dos artigos 3º, incisos I e II, e 5º, caput e inciso XLVI, da Constituição Federal de 1988, que tratam, respectivamente, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, da erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, bem como da individualização da pena.

A possível violação ao princípio constitucional da individualização da pena é fácil de ser constatada, já que a inovação trazida pela Lei de Drogas no sentido de fixar cominações mínimas da pena de multa acaba por retirar sua fixação da individualização a ser realizada caso a caso pelo julgador no momento da dosimetria.

Nesse sentido, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, recorrente no RE 1347158/SP, argumentou que "há ofensa flagrante ao princípio da individualização da pena, que não é em momento algum considerado pelo Legislador ao fixar a pena mínima de quinhentos dias-multa. Ora, desse modo, o Legislador não deixou qualquer discricionariedade ao julgador para fixar, segundo a condição econômica do acusado, a pena de multa que, ao mesmo tempo que servisse como resposta penal ao crime praticado, estivesse dentro de parâmetros possíveis de serem cumpridos pelo condenado".

Por outro lado, não é tão evidente como a previsão de pena de multa mínima no preceito secundário do tipo penal do tráfico de drogas representaria violação aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 3º de sua Carta Magna.

Poder-se-ia pensar: ora, se as penas restritivas de liberdade, mais severas do que a pena de multa, podem ter uma fixação mínima em lei, por que o mesmo não poderia ocorrer com a pena de multa?

Apesar do aparente paradoxo, a resposta é mais pragmática do que se imagina: a multa mínima prevista no artigo 33 da Lei de Drogas equivale a 500 dias multa, o que corresponde, aproximadamente, a 15 salários mínimos, cerca de R$ 16,5 mil.

A pena mínima de reclusão é possível porque, em tese, todos os indivíduos podem dispor de sua liberdade atual ou futura, no entanto, nem todos os indivíduos — a bem da verdade, a maioria dos indivíduos — não dispõe de R$ 16 mil.

Levando-se em conta o quesito renda nacional média, não é preciso uma análise muito aprofundada para concluir que de fato existe uma desproporcionalidade entre o valor mínimo fixado na lei e a realidade do povo brasileiro, ainda mais diante da situação de pobreza na qual padece a maioria dos cidadãos condenados por tráfico de entorpecentes.

Veja: o CNJ aponta que dos 657,8 mil cidadãos presos em 2019 no Brasil [1], 24,74% são processados e condenados por tráfico de drogas [2].

Além disso, sabe-se muito bem qual é a clientela do sistema penitenciário brasileiro: os pobres, em sua maioria, pretos e moradores de comunidades.

Nesse sentido, dados coletados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 revelam que dos 657,8 mil presos em que há a informação da cor/raça disponível, 438,7 mil são negros (66,7%). Ou seja, de cada três presos, dois são negros [3].

Estamos falando de se cobrar uma multa mínima de R$ 16,5 mil de indivíduos formados em núcleos familiares que, em sua maioria, não percebem sequer 10% desse valor mensalmente, com rendas médias de R$ 1.326 [4].

Não obstante o potencial descalabro em se exigir de um indivíduo em situação de pobreza e vulnerabilidade — muito provavelmente as causas que o levaram ao tráfico de drogas inicialmente — que pague uma multa mínima verdadeiramente astronômica se comparada com a sua realidade financeira, a Suprema Corte firmou entendimento de que o Poder Judiciário não detém competência para interferir nas opções feitas pelo Poder Legislativo a respeito da punição mais severa daqueles que praticam condutas elencadas em norma penal incriminadora.

É certo que uma postura excessivamente proativa do Poder Judiciário de modo a interferir no papel dos outros poderes, notadamente no Poder Legislativo, provocando o famigerado ativismo judicial, pode gerar um problema sério. No entanto, em alguns casos, o que se anseia é justamente que a atuação do Judiciário possa reparar algumas incoerências em certas políticas públicas.

No caso da pena de multa mínima penal, não nos parece que aferir a constitucionalidade desse parâmetro em abstrato diante do seu potencial lesivo feriria a independência entre os poderes.

Do contrário, rechaçar o absurdo de se cobrar quantias evidentemente desproporcionais de indivíduos que muito provavelmente jamais conseguirão pagá-las nos parece dar concretude aos preceitos constitucionais que visam à redução das desigualdades sociais e à erradicação da pobreza.

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