Opinião

A hipermetropia presente no debate em torno da requisição pela Defensoria

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

18 de novembro de 2021, 16h06

Como diria Clarice Lispector, "o óbvio é a verdade mais difícil de enxergar". Esse parece ser o raciocínio que melhor ilustra a causa da suposta visão desfocada da Procuradoria-Geral da República em relação à constitucionalidade da prerrogativa de requisição conferida à Defensoria Pública; a PGR não vê a clareza solar da legitimidade do citado instituto, que se amolda ao modelo defensorial erigido pós-EC nº 80/14.

A PGR, aduzindo que a mencionada prerrogativa poderia dotar os defensores públicos de atribuição não conferida aos advogados particulares, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.852, sustentando a inconstitucionalidade material dos artigos 8º, XVI, 44, X, 56, XVI, 89, X e 128, X, da LC nº 80/1994.

Ocorre que a tese veiculada pela PGR, a nosso ver, está alicerçada sob o enfoque da atuação estritamente individual (e judicializada) da Defensoria Pública e parte de ponto de vista que visualiza a instituição defensorial com lentes do passado  e o passado, como adverte o compositor Belchior, "é uma roupa que não nos serve mais" [1].

O autor da ação de controle concentrado descura que o poder constituinte derivado, por meio da EC de nº 80/2014, alocou a Defensoria Pública e a advocacia em seções distintas no capítulo da Constituição que trata das funções essenciais à Justiça, demonstrando (de forma cabal) a desvinculação da Defensoria Pública do regime jurídico que regula a advocacia.

Tal constatação restou mais clara com a conclusão do julgamento da ADI nº 4.636 (Pleno, relator ministro Gilmar Mendes) e do RE nº 1.240.999 (Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes), em que a Suprema Corte, ao reconhecer o quão diversos são as atribuições e regramentos aplicáveis aos defensores públicos e aos advogados, concluiu que é inconstitucional a exigência da inscrição de defensores públicos nos quadros da OAB.

Em voto proferido no RE 1.240.999, o ministro Ricardo Lewandowski definiu que "(…) o tratamento constitucional conferido à Defensoria Pública teve como especial finalidade estabelecer ao órgão autonomia financeira e administrativa, bem como deixar claro que as prerrogativas e as atribuições de seus membros não se confundem com a advocacia privada (…)".

A prerrogativa de requisição, que é de titularidade da população vulnerável, foi concedida pelo legislador complementar como meio (poder implícito) para proporcionar a efetiva promoção dos direitos humanos e a tutela judicial e extrajudicial dos direitos coletivos lato sensu da população hipossuficiente (cerca de 88% da população brasileira [2], segundo critério adotado pelo Ministério da Justiça) e hipervulnerável (indígenas, mulheres em situação de violência doméstica, crianças, idosos etc.).  

A PGR olvida, ainda, que o artigo 4º, II, da LC nº 80/94 incumbiu a Defensoria Pública de promover prioritariamente a solução extrajudicial dos litígios, objetivo que se amolda ao artigo 3º, §2º, do CPC e que confere celeridade à resolução de demandas da população assistida.

Comprovando tais argumentos de forma empírica, estudo divulgado recentemente pelo Condege aponta que 77,7% dos defensores públicos apontam que o uso da requisição foi capaz de evitar a judicialização de demandas [3].

Eventual declaração de inconstitucionalidade da citada prerrogativa irá inevitavelmente prejudicar a atuação extrajudicial da Defensoria Pública e a efetivação dessa prática de Justiça restaurativa, fomentada pela Resolução nº 225/2016 do CNJ.

Não há, portanto, exagero em afirmar que a prerrogativa ora examinada, primordialmente em um país como o Brasil (marcado pela corriqueira ineficiência na prestação de serviços públicos de qualidade), revela-se imprescindível para que a Defensoria Pública, única instituição do sistema de Justiça incumbida de promover os direitos humanos, possa: 1) fiscalizar e cobrar a execução de políticas públicas; 2) materializar o Estado democrático de Direito; e 3) reduzir as desigualdades sociais, objetivo comum à Defensoria [4] e à República Federativa do Brasil [5].

Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes, nos autos da ADI nº 4.636, proferiu voto assentando que "(…) a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman, que deve zelar pela concretização do estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo com o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes".

No mesmo diapasão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em relatório divulgado no ano corrente, destaca que "as Defensorias Públicas Estaduais e a Defensoria Pública da União desempenham um imprescindível papel para a efetiva garantia dos direitos humanos e para a manutenção da ordem democrática no país" [6].

A prerrogativa da requisição defensorial, contra a qual não se aponta qualquer caso de abuso/excesso em sua utilização e que somente veio a ser questionada pela PGR após quase 30 anos de vigência, constitui, de forma incontroversa, instrumento indispensável ao fiel desempenho das relevantes atribuições conferidas à instituição pelo poder constituinte.

O julgamento da ADI nº 6.852 foi iniciado em sessão virtual realizada pelo STF no último dia 12, oportunidade em que o relator, ministro Edson Fachin, votou pela constitucionalidade do mencionado instituto, consignando que "a retirada da prerrogativa de requisição implicaria na prática a criação de obstáculo à atuação da Defensoria Pública, a comprometer sua função primordial, bem como da autonomia que lhe foi garantida".

O julgamento foi suspenso em razão do pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.

Importante que a sociedade permaneça atenta à solução a ser dada pela Suprema Corte nesse caso, evitando-se, nos termos do princípio constitucional da proibição do retrocesso, que se regrida na promoção dos direitos humanos e na tutela jurídica da população vulnerável.

 


[1] BELCHIOR, Antonio Carlos. Velha roupa colorida. In: Alucinação. Rio de Janeiro: Philips, 1976.

[4] Artigo 3º-A, I, da LC n. 80/94.

[5] Artigo 3º, III, da CF/88.

Autores

  • é defensor público do Estado do Maranhão, ex-analista judiciário do STJ, ex-assessor da Corregedoria Nacional de Justiça e especialista em Direito Constitucional.

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