Opinião

Fraudes patrimoniais: STJ e valoração de indícios e presunções para prova de má-fé

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18 de novembro de 2021, 12h28

Foi noticiado recentemente, no site do STJ, que "mesmo sem registro, dação em pagamento de imóvel antes da citação não configura fraude à execução", conforme REsp 1.937.548, de relatoria do ministro Moura Ribeiro.

Ainda, noticiou-se que "sem averbação da execução no registro do imóvel, configuração de fraude em alienações sucessivas exige prova de má-fé", de acordo REsp 1.863.999, de relatoria da ministra Nancy Andrighi.

Sem adentrar especificamente nas nuances de ambos os casos julgados, é importante discutir e não esquecer que em teses envolvendo fraudes patrimoniais devem ser levadas em consideração as provas indiciárias e as presunções.

O julgamento de demandas em que se discute o reconhecimento de fraudes não pode desprender-se, de modo algum, da análise dos indícios e das presunções. O Judiciário deve se valer das teses firmadas pelos tribunais com cautela e observância de todo o conjunto probatório direto e indireto dos autos, para, assim, não gerar julgamentos inefetivos, a estimulação da atuação de má-fé e o enfraquecimento do instituto da repressão às fraudes.

Por isso, e também pela formação de jurisprudência no STJ em relação aos litígios civis sobre fraudes patrimoniais, o presente texto tem por objetivo elucidar, relembrar e ratificar a importância dos indícios e das presunções no julgamento das referidas demandas judiciais.

Para tanto, conforme se passa a expor, se demonstrará: 1) o conceito objetivo de indício e de presunção; 2) os motivos pelos quais as provas indiciárias e as presunções merecem escorreita valoração quando da aplicação da atividade judicante; 3) alguns indícios, exemplificativos, que devem ser vistos com atenção pelos magistrados; e 4) os problemas que podem surgir com a interpretação fria dos entendimentos jurisprudenciais.

Inicialmente, defende-se que o indício é um meio de se chegar a uma presunção, conforme tradicional e sempre lembrada lição do professor Vicente de Azevedo [1]:

"(…) Indício é  uma  circunstância  ou  fato  conhecido  que  serve  de  guia  para  descobrir  o outro.  De  um  fato  conhecido,  se  deduz  outro. O  conhecido  indica  o  outro. Presunção é operação mental, a interferência que por via do raciocínio, ou de experiência deduzimos do indício conhecido".

Em sentido parecido, leciona o professor Humberto Theodoro, abordando que a presunção de determinado fato é obtida por uma prova indireta, no caso, uma circunstância ou um indício, veja-se:

"As presunções correspondem mais a um tipo de raciocínio do que propriamente a um meio de prova. Com elas pode-se chegar a uma noção acerca de determinado fato sem que este seja diretamente demonstrado. Usa-se na operação a denominada prova indireta (circunstancial ou indiciária)" [2].

Ou seja, pela presunção se admite determinado fato independentemente de ter sido comprovado diretamente no processo. Basta, assim, que haja uma circunstância, um indício, para que, então, seja admitida a existência do fato probando.  

Definido o conceito de indício e de presunção, passa-se a expor os motivos pelos quais se defende que os temas devem ser ponderados, com extrema importância, nos litígios que versem sobre fraudes patrimoniais.

Pois bem, a importância de valoração dos indícios e das presunções se dá na medida em que é muito difícil que se prove, diretamente, a existência de uma fraude e, logo, a má-fé da parte [3].

A prova da má-fé, o que, por consequência, leva à comprovação da fraude, em regra, é obtida por indícios, senão vejamos estudo de Gioconda Fianco Pitt [4]: "A prova da má-fé é geralmente obtida por indícios, o que significa que, em cada caso concreto, o juiz deve analisar as circunstâncias que rodeiam o fato, com o fim de provar em forma indireta o comportamento do dano".

A intenção das partes, quando não manifestada expressamente, deve ser comprovada pelos indícios, sob pena de não se ter a comprovação do fato pretendido, em afronta à garantia constitucional de ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF). Defende-se, nesse sentido, conforme Gioconda Fianco Pitt, que os indícios perfeitamente se adequam à comprovação da intenção das partes e, por via de consequência, de sua má-fé [5]:

"A adequação dos indícios à prova das intenções decorre da própria natureza daquele meio de prova e da circunstância de que, dificilmente, por outra forma, se logra descobrir a intenção das partes, no processo, quando estas não a manifestem expressamente".

Neste sentido, deve-se entender pela admissão dos indícios e das presunções como meio eficazes de prova em ações que visem a discutir fraudes, conforme ensinamento de Yussef Said Cahali [6]:

"(…) Ttanto a simulação, como a fraude contra credores, podem ser provadas por indícios e circunstâncias. No campo do direito probatório, indícios e presunções também são meios eficazes de prova, indícios são sinais, que, isoladamente, são insuficientes para demonstrar a verdade de um fato alegado, enquanto as presunções comuns constituem raciocínios, que no terreno da fraude e da simulação podem ser derrubados pela contraprova. No entanto, é a soma de indícios que leva à presunção".

Existem, ainda, alguns indícios de suma importância para a comprovação da alegação da existência de fraude, os quais não podem ser desprezados pelos magistrado quando da apreciação do conjunto probatório, inclusive pelo fato de que o Judiciário deve zelar pela busca da verdade real e a realização, efetiva e justa, da atividade jurisdicional.

O professor Eduardo Cambi [7] cita alguns indícios que devem ser vistos com atenção na apreciação de demandas em que se discute a fraude e a má-fé em alienações, veja-se:

"(…) Parentesco ou amizade íntima entre os contratantes; preço vil dado em pagamento para a coisa valiosa; falta de possibilidade financeira do adquirente (que pode ser demonstrada pela requisição de sua declaração de Imposto de Renda); não transferência de numerário no ato, nas contas bancárias dos participantes, continuação do alienante na posse da coisa alienada; o fato de o adquirente não conhecer a coisa adquirida".

Acrescentam-se, ainda, algumas outras circunstâncias exemplificativas, tais como: 1) a existência de transações e a diminuição patrimonial às vésperas da litigiosidade, ou seja, já antevendo a possibilidade de ajuizamento de ações, o que vem sendo denominada como "intenção preordenada de fraudar"; 2) alienações sucessivas e repentinas, sem que sejam necessárias, efetivas ou adequadas naquele momento; e 3) a vida pregressa dos devedores.

Aliás, em julgado interessantíssimo proferido pelo STJ (REsp 1.092.134), analisando-se a existência de fraude contra credores, foi abordado a atípica questão da intenção preordenada de fraudar, que se revela, como salientado, quando a parte, já antevendo um inadimplemento futuro, diminui maliciosamente o seu patrimônio, objetivando afastar o requisito da anterioridade do crédito como condição da ação pauliana, tese que foi muito bem explicada pela relatora, ministra Nancy Andrighi, conforme demonstra-se:

"Não há como negar que a dinâmica da sociedade hodierna, em constante transformação, repercute diretamente no direito e por consequência na vida de todos nós. O intelecto ardiloso, buscando adequar-se a uma sociedade em ebulição, também intenta – criativo como é inovar nas práticas ilegais e manobras utilizados com o intuito de escusar-se do pagamento ao credor. Um desses expedientes é a diminuição maliciosa do patrimônio, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana. E a esse cenário, criado por aqueles que, de má-fé, buscam alternativas para burlar o sistema legal vigente, não pode o Poder Judiciário ficar alheio.
 A ordem jurídica, como fenômeno cultural, deve sofrer constantemente uma releitura, na busca pela eficácia social do Direito positivado. Assim, aplicando-se com temperamento a regra contida no referido preceito legal, entendo que, embora a anterioridade do crédito  relativamente ao ato impugnado  seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser relativizada quando for verificada a fraude predeterminada para atingir credores futuros, ou seja, o comportamento malicioso dos recorrentes, no sentido de dilapidarem o seu patrimônio na iminência de contraírem débito frente à requerida".

No caso, analisando-se os indícios e as presunções hábeis à comprovação da fraude alegada pela parte, como a alienação de todos os bens móveis e imóveis e, após isso, a transferência das quotas para off-shores e, posteriormente, em curtíssimo espaço de tempo, a celebração de negócios de vultosos valores por parte dos devedores, mesmo cientes de que não mais dispunham de patrimônio, manteve-se a procedência do pedido da ação pauliana.

Portanto, é salutar que se tenha em mente os indícios e as presunções em casos que visem a desconstituições e desconsiderações de negócios fraudulentos, tanto em ações de conhecimento como nas execuções, inclusive para não se enfraquecer o importantíssimo instituto da repressão às fraudes e, assim, por vezes, dar ao caso levado a juízo uma solução injusta e não efetiva. 

Entendimentos jurisprudenciais, como exemplificativamente os que foram utilizados pelo STJ no julgamento do REsp 1.937.548 e do REsp 1.863.999, se levados ao pé da letra, sem a análise das provas diretas e indiretas, poderão, em determinadas situações, ocasionar o aproveitamento malicioso de devedores e terceiros de má-fé.

Isso porque poderão haver casos em que: 1) será apresentado aos autos determinado negócio jurídico firmado com terceiro, sem qualquer lastro efetivo, somente com o objetivo de se evitar a penhora de determinado bem; e 2) se procederão alienações sucessivas de imóveis somente para se evitar o reconhecimento da fraude à execução.  

Ou seja, muito embora não se possa partir, de modo algum, da premissa de que o devedor e o terceiro estejam de má-fé em toda e qualquer alienação, deve se dar especial atenção para os indícios e para as presunções existentes no caso para, somente assim, se reconhecer como legítima, válida ou eficaz determinada transação alegada fraudulenta pelo credor.

 


[1] AZEVEDO, V. de. Curso de direito judiciário penal. São Paulo: Saraiva, 1958. v. II. p. 12.

[2]  (Curso de Direito Processual Civil — Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum — vol. I / Humberto Theodoro Júnior. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. Versão virtual)

[3] Salienta-se, desde já, para facilitar a discussão, que a fraude aqui abordada tem sentido amplo, envolvendo tanto as questões de direito material, inclusive a simulação, como de natureza processual, embora seja de conhecimento a existência categorizações jurídicas para cada um dos temas (fraude contra credores, simulação, fraude à execução, fraude processual etc.).

[4] PITT, G. F. (2008). A prova indiciária e convencimento judicial no processo civil. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegra, RS, Brasil. Disponível: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/15503>

[5] O.P cit.

[6] (Fraude contra credores, RT: São Paulo, 1989, p. 52)

[7] CAMBI. Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 364.

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