Opinião

O STF e a espada de Dâmocles: a imprescritibilidade da injúria racial

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

11 de novembro de 2021, 17h18

O STF não para de afrontar a doutrina pacífica, secular, de Direito Penal, e contrariar os maiores juristas que este país já teve e ainda tem.

Além de criar o crime de homofobia mediante decisão judicial, ao aplicar a analogia contra o réu (in malam partem), o que é vedado no Brasil, violando, ainda, o princípio da legalidade e da separação dos poderes, fundamentais para a manutenção do Estado democrático de Direito, proferiu outra decisão, digamos, inusitada: equiparou um crime contra a honra (injúria racial) com o crime de racismo propriamente dito, a fim de dar ao primeiro o caráter de imprescritível.

Os crimes de racismo e o de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático de Direito são imprescritíveis, nos termos do artigo 5º, incisos XLII e XLIV, da Magna Carta. A razão de ser da imprescritibilidade é a gravidade dos delitos. O primeiro tende a segregar da sociedade alguns grupos minoritários ou vulneráveis e o segundo o rompimento constitucional, normalmente revolução ou golpe de estado. Note-se que nem mesmo o homicídio qualificado, sequestro seguido de morte e latrocínio, alguns dos delitos mais graves previstos na legislação, são imprescritíveis.

Racismo é uma coisa e injúria por motivo de raça, cor, etnia, religião ou origem, outra, de natureza bem diferente.

Injúria é crime contra a honra subjetiva do ofendido, isto é, a imagem que ele tem de si próprio, atingindo a sua dignidade ou decoro. Na injúria, não há imputação de fato, mas de qualidade negativa ao ofendido, individualmente considerado.

Dignidade nada mais é do que o sentimento próprio em relação aos atributos morais do ofendido, ao passo que decoro é o sentimento próprio a respeito dos atributos físicos e intelectuais da pessoa humana (CF: Damásio Evangelista de Jesus, "Código Penal Anotado", página 435, Saraiva, 1999).

Na injúria racial a pessoa é ofendida em sua dignidade ou decoro por intermédio de sua raça, cor, etnia, religião ou origem, ou mesmo condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Racismo, por outro lado, não é uma mera ofensa, mas algo muito mais grave e deplorável, posto que afronta todo o grupo, e não apenas o ofendido. O racismo discrimina e segrega componente de grupo minoritário ou, por algum motivo, mais vulnerável, não permitindo ou, ao menos, tentando fazer com que não possa viver e conviver da mesma maneira do que os grupos majoritários e não vulneráveis.

A gravidade de um e de outro delito são bem distintas. Racismo é muito mais grave do que a injúria racial, vez que não atinge apenas um indivíduo, mas a toda coletividade, notadamente o grupo a que pertence a vítima.

O crime de injúria racial, por não ser tão grave, processa-se mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido (artigo 145, parágrafo único, do CP). Assim, há necessidade de autorização do ofendido ou de seu representante legal para que o Ministério Público possa promover a ação penal. Há, no caso, prazo para que seja oferecida a representação, que é de seis meses a contar do conhecimento do fato pelo ofendido. Decorrido esse prazo sem o oferecimento de representação, ocorre o fenômeno da decadência (artigo 103 do CP), ou seja, perde-se o direito de oferecer a ação penal e, consequentemente, a punibilidade do autor do fato é julgada extinta, nos termos do artigo 107, inciso IV, do Código Penal, do mesmo modo que ocorre quando advém a prescrição.

Observo que, diferentemente da prescrição, em que seu prazo pode ser suspenso ou interrompido, o prazo decadencial é fatal, não estando sujeito a nenhum tipo de interrupção ou suspensão no âmbito do Direito Penal e Processual Penal.

Com efeito, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a injúria racial não prescreve, mas pode ocorrer a decadência, a não ser que seja dada nova interpretação ao artigo 103 do Código Penal, afrontando a clareza da norma e a doutrina e jurisprudência pacíficas, o que nossa Suprema Corte tem feito a rodo nos últimos dois anos.

Imaginem o autor do fato ficar à mercê do ofendido, que pode não apresentar a representação no prazo de seis meses, podendo fazê-lo quando quiser, até a morte do ofensor, que estará com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça. Isso poderá ocorrer se o STF decidir que, do mesmo modo que não advém a prescrição para a injúria racial, não ocorre a decadência.

Claro que outra saída para a Excelsa Corte é decidir que a injúria racial se processa mediante ação penal pública incondicionada, não obstante dispositivo expresso que a condiciona à representação do ofendido ou de seu representante legal, o que a levará a realizar interpretação contra legem, em razão da literalidade da norma, de clareza ímpar.

Enfim, quando o sistema legal é subvertido, absurdos jurídicos tendem a ocorrer.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-SP, professor, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP, palestrante e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade", publicadas pela Editora Juruá.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!