Opinião

A possibilidade de retroação da nova Lei de Improbidade Administrativa

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8 de novembro de 2021, 15h05

Em um mundo cada vez mais complexo, principalmente em razão da pandemia da Covid-19, em que dissensos são a tônica cada vez mais tautológica da sociedade, a construção de um Estado de Direito deixa de ser uma tarefa paleológica e torna-se uma premissa indissociável para a manutenção do pacto vivencial da sociedade [1]. Urge reconstruir o princípio da legalidade, em que a sua ontologia de vinculação não seja flexibilizado pela entronização da discricionariedade, de modo a voltar os olhos para os romanos e agasalhar os eflúvios do adágio latino, dura lex, sed lex.

Esse estado de coisas emerge de um contexto em que proliferam contínuas diminuições do campo de incidência do princípio da legalidade, que culmina na predileção da jurisprudência como a principal fonte normativa e, por consequência, desenha um quadro de claro acinte ao Estado de Direito [2]. A situação torna-se ainda mais grave quando os operadores do Direito infectam-se com a seiva do moralismo exacerbado e adotam comportamentos nitidamente contra legem.

Indubitável que a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) sofreu fortes influxos desse verniz moralizante, no que permitiu que o princípio da legalidade fosse relegado frequentemente por voluntarismos judiciais. Desse e de outros influxos resultou na edição da Lei nº 14.230/2021, que altera a Lei de Improbidade Administrativa, mudando vários de seus parâmetros de validade.

Inúmeras foram as mudanças que perpassam por vários espectros. No entanto, devido ao espaço limitado para as presentes formulações, a quaestio juris que orbita por este estudo cingir-se-á à possibilidade de aplicação dos efeitos retroativos das disposições normativas da Lei nº 14.230/2021.

Com relação às sanções, a Lei nº 14.230/2021 retirou a suspensão dos direitos políticos como consequência da condenação por ato que atenta contra os princípios da Administração Pública, bem como também delineou os tipos insertos no artigo 11, que deixam de ser genéricos e abstratos para se restringirem aos parâmetros legais, no que o referido preceptivo legal perde a característica de "norma penal em branco", que estava ao talante da compreensão do intérprete acerca dos limites, flexões e inflexões dos conceitos jurídicos indeterminados. A Lei nº 14.230/2021 também revogou alguns tipos insertos no antigo artigo 11 da Lei nº 8.429/1991, como por exemplo o que tipifica a "prática de ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência".

Outrossim, a Lei nº 14.230/2021 diminuiu o valor máximo da multa, que cai para até 24 vezes o valor da remuneração percebida pelo agente (artigo 12, inciso III, da LIA). A sanção de perda da função pública, nas hipóteses de cometimento de atos que importem em enriquecimento ilícito e lesão ao erário, atingirá apenas o vínculo da mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração (artigo 12, §1º, da LIA). Também unificou-se o prazo prescricional para oito anos, com a criação de marcos interruptivos da prescrição e a prescrição intercorrente, que impõe que entre o ajuizamento da ação de improbidade e a publicação da sentença condenatória não decorra prazo superior a quatro anos (artigo 23, §§4º e 5º, da LIA).

De acordo com os imperativos deontológicos da mencionada estrutura normativa, houve a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa (artigo 1º, §1º), de modo que se faz necessária a presença do dolo específico que ateste de forma indene de dúvidas a vontade livre e consciente do agente em alcançar o resultado ilícito (artigo 1º, §2º). Quanto aos atos que atentem contra os princípios da Administração Pública, a Lei nº 14.230/2021 impôs a exigência de lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento (artigo 11, §4º, da LIA).

Diante desse novo panorama, indaga-se: se, hodiernamente, esse tipo de ato ímprobo não é mais punido com as sanções de outrora, a perpetração da aplicação das penas dispostas em dispositivos legais revogados, a ilícitos pretéritos, consubstanciaria algum tipo de vindita pública?             Como é cediço, a retroatividade se constitui na possibilidade de uma determinada lei produzir efeitos retrospectivos. A retroatividade da lei mais benéfica, por exemplo, assegura que a lei posterior, quando for mais favorável, retroagirá para alcançar fatos cometidos antes de sua vigência. Extrai-se dessa previsão que na loi plus douce, o parâmetro a ser perseguido é o da retroatividade da lei mais favorável, que pode ocorrer quando o fato não é mais considerado crime (abolitio criminis) ou quando a lei nova beneficia o agente (lex mitior).

O seu fator teleológico é o de que a aplicação da normatização reproduza as invariáveis axiológicas vigentes, sem que valores ultrapassados ou até mesmo atestados como ineficazes ou inconstitucionais possam continuar a ser aplicados, haja vista o consenso que se formou na sociedade para sua superação. Fala-se em invariável axiológica no sentido exposto por Miguel Reale, em que valores subordinantes desgarram-se da civilização que os concebeu para galgarem um patamar mais alto, de modo a desempenharem um papel de caráter universal, transcendente e definitivo [3].

Em razão de sua grande importância, a Carta de 1988, denominada de Constituição Cidadã, disciplinou a retroatividade e a irretroatividade como garantias fundamentais.

Como regra geral, para propiciar que todos possam ser disciplinados pelas estruturas normativas vigentes e captar as alterações no grau de reprovabilidade social, a Lex Mater em nenhum momento proibiu a retroatividade de leis, como era a regra em textos constitucionais anteriores, todavia, forcejou determinadas garantias, como no artigo 5º, XXXVI, que garante que esses efeitos ex tunc não podem prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Outrossim, o artigo 5º, XL, explana que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Portanto, de forma clarividente se deduz que não há estorvo para a retroatividade normativa, desde que respeitando os comandos legais, a segurança jurídica e as relações jurídicas consolidadas.

Como grassa uma certa unanimidade, que nesse caso não é burra, como já mencionava Nelson Rodrigues, aduz-se que a Lei de Improbidade Administrativa pertence ao campo do Direito Administrativo Sancionador, no que exige uma série de garantias para a sua implementação, mormente as garantias constitucionais de natureza penal. Sustenta-se que o Direito Administrativo Sancionador caracteriza-se como um mecanismo para garantir a efetividade dos valores caros à sociedade, como forma de estímulo a se tomar caminhos que apontem para o interesse público. Como espécie do gênero Direito Sancionador, cuja principal característica é a possibilidade do cidadão sofrer uma punição por parte do Estado, o devido processo legal material e formal precisa ser obedecido de forma mais minuciosa. 

Mas não é só. O Direito Administrativo Sancionador, em paralelo ao Direito Penal, engloba o conjunto do poder punitivo do Estado, razão pela qual Regis Fernandes Oliveira assevera não existir diferença ontológica entre crime, contravenção e infração; e entre pena e sanção, no que também inexiste diferença de substância entre pena e sanção administrativa [4]. Nesse espeque, García de Enterría e Fernández asseveram que o Direito Administrativo Sancionador não pode constituir instância repressiva e arcaica, que busque promover acintes aos direitos fundamentais, com aplicação de técnicas de responsabilidade objetiva, previsão de sanções que não estejam legalmente delimitadas, presunções e inversões do ônus da prova [5]. Até mesmo porque o Direito Administrativo Sancionador tem como núcleo fundamental os princípios que garantem a contenção do poder punitivo estatal, independentemente de a sanção ser aplicada pelo Estado-Administração ou pelo Estado-juiz.

Com efeito, a violação dos bens jurídicos tutelados atrairá, por consectário lógico, a imposição de uma sanção de natureza civil, como a multa; política, como a suspensão dos direitos políticos; e condenatória diversa, como o ressarcimento integral do dano e a proibição de contratar com entes públicos (artigo 12 da LIA). Assim, tem-se que a classificação, o processamento e a aplicação de sanção pela prática de ato de improbidade administrativa repousa na seara do Direito Sancionador, como afirma a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [6]. Inclusive, urge acentuar que o STJ reverbera entendimento no sentido da interpenetração dos institutos do Direito Penal com os do Direito Administrativo Sancionador, sob o arremate jurisprudencial de que "onde permanecem as mesmas razões, permanece a mesma compreensão" [7].

Mesmo que esse não fosse o posicionamento dominante, a nova diretriz normativa expungiu qualquer tipo de divagação, ao deixar claro que na sua utilização deve-se aplicar os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador (artigo 1º, §4º). Assim, depreendendo-se que a Lei de Improbidade Administrativa está circunscrita ao campo do Direito Sancionador, que a Constituição não proíbe a retroatividade de lei que beneficie o réu, tanto as normas penais, quanto as que ostentam conteúdo sancionatório, não há se falar em engendrar qualquer tipo de discussão quanto à possibilidade de aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso, seja em primeira instância ou em qualquer outra esfera recursal.

Além do que, se esse não fosse o escopo tencionado pela mens legis, haveria o impedimento de se colocar óbices ao alcance da retroatividade. Como facilmente se depreende, em nenhum momento a nova lei impediu a retroatividade, autorizando o cumprimento da retroatividade da norma mais benigna. Se assim não foi realizado, segue-se os ditames do Estado de Direito que comina que na ausência de obstáculo normativo, de modo a permitir a prática de um ato, mormente quando ele se sincroniza com as modificações operadas no grau de reprovação social. Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça perfilhou entendimento no sentido de que o princípio da retroatividade da lei mais benéfica alcança as leis que disciplinam o Direito Administrativo Sancionador [8].

O brocado latino tempus regit actum, que comina que os fatos jurídicos sejam regidos inexoravelmente pelas leis do início de sua vigência, não pode ser interpretado de forma restritiva ou descolado do todo sistêmico. As exceções, além das dispostas por lei, são todas aquelas em que há atos que ainda não foram realizados, encontrando-se pendentes, no que obriga a aplicação da nova lei aos atos subsequentes. De qualquer modo, sua exegese não pode ser delineada através de uma ultratividade indefinida, pois seu âmbito de incidência é apenas para atos jurídicos já realizados e não para os que ainda serão concretizados. Na dogmática jurídica, em razão do artigo 14 do CPC esse princípio se restringe à seara processual e nos termos do artigo 2º do CPP, permite a retroatividade da Lex Mellius.

Seria um grande contrassenso estorvar os caminhos para a aplicação da retroatividade dos pontos mais benéficos do novo diploma normativo quando o próprio espírito conformador da Lei nº 14.230/2021 encampa princípios que interferem na dinâmica da aplicação das sanções, que embora façam parte da dogmática penal, também foram elevados ao patamar constitucional, como por exemplo o princípio da culpabilidade (artigo 59 do Código Penal e artigo 17-C da LIA); da proporcionalidade; da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI, da CF); do instituto da continuidade delitiva e do concurso de crimes (artigos 69, 70 e 71 do Código Penal e artigo 18-A da LIA).

Deve-se, nesse ponto, promover uma interpretação sistêmica do arcabouço normativo punitivo para que o julgador possa valer-se das categorias de outras searas do Direito Sancionador, de modo a aperfeiçoar a estrutura dogmática e garantir os direitos fundamentais, pois, à maneira do ensinamento do ministro Eros Grau, "não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços", mas sobretudo com o cerne de impedir o surgimento de antinomias que possam arrefecer a sua eficácia normativa [9]. Notório que a retroatividade não pode atingir a coisa julgada nem os atos jurídicos perfeitos já plenamente exauridos, mas constitui-se uma obrigação, até mesmo um imperativo categórico kantiano, a aplicação dos comandos da Lei nº 14.230/2021 as decisões que ainda serão prolatadas. Considera-se que fases históricas marcadas por moralismos jacobinos provocam muito mais malefícios do que as benesses tencionadas.

Sabe-se que a Lei de Improbidade Administrativa consegue muito pouco na questão de restituir o que foi subtraído do erário público, no que o legislador poderia ter aproveitado a oportunidade para instituir mecanismos eficazes para o follow the money, trazendo mais eficácia ao resgate dos valores que escaparam dos cofres públicos pelo cometimento de atos ímprobos. No entanto, intentou-se, em verdade, coibir os excessos cometidos na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, que, apesar de merecer todos os aplausos, foi utilizada intensamente de forma voluntarista ou moralista. Portanto, defende-se, nesse palmilhar, a retroatividade da Lei nº 14.230/2021 para beneficiar o réu, especificamente no tocante à dosimetria da pena e na supressão dos tipos que tem como requisito o elemento subjetivo na modalidade culposa.

 


[1] VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximações ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 53.

[2] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. P. 46.

[3] REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 95.

[4] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 1995. P. 32.

[5] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: RT, 1991. P. 891

[6] (STJ – REsp: 1605701 MG 2015/0011720-6, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 16/06/2016, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/10/2016)

[7] (STJ – EDcl no AgRg no REsp: 1086994 SP 2008/0209361-0, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 10/12/2019, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2020).

[8] (STJ – RMS: 37031 SP 2012/0016741-5, Relator: Ministra REGINA HELENA COSTA, Data de Julgamento: 08/02/2018, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/02/2018)

[9] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo de juízes: (a interpretação/aplicação do direito e os seus princípios). 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016. P.86.

Autores

  • é procurador de Pernambuco, advogado, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor pela Université Montesquieu Bordeaux IV (França) e doutor pela UFPE/Universitá Degli Studio di Firenzi (Itália). Membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

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