Opinião

É cabível acordo de não persecução penal em casos de emendatio e mutatio libelli?

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8 de novembro de 2021, 17h04

Uma das principais novidades introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/19 (Pacote "Anticrime"), o acordo de não persecução penal ainda gera dúvidas no que toca ao momento de sua aplicação.

A jurisprudência tem se posicionado entre a retroatividade do instituto até recebimento da denúncia ou até o trânsito em julgado. As decisões tomadas nesse âmbito deixam de considerar, contudo, a possibilidade de incidência do acordo de não persecução penal diante dos fenômenos processuais conhecidos como emendatio libelli e da mutatio libelli.

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal já decidiu que a aplicação do acordo de não persecução penal retroage desde que não recebida a denúncia [1], entendimento que parece ter sido pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça [2], após ter sido superada divergência existente entre a 5ª e a 6ª Turmas  esta última havia, anteriormente, considerado a norma como de natureza jurídica mista, devendo retroagir em casos que ainda não tivessem transitado em julgado, em benefício do réu [3].

O entendimento que vem se consolidando, todavia, não levou em conta a possibilidade de incidência do acordo de não persecução penal diante de situações processuais antigas em nosso ordenamento jurídico e que, muitas vezes, por provocarem alteração na capitulação legal dos fatos, dão ensejo à aplicação de instrumentos de justiça negocial: a emendatio libelli (artigo 383 do Código de Processo Penal) e a mutatio libelli (artigo 384 do Código de Processo Penal).

Como se sabe, a previsão legal da emendatio libelli consagra o brocardo jurídico narra mihi factum dabo tibi jus e representa o poder do juiz de subsumir os fatos narrados na denúncia em outro tipo penal, que não aquele imputado pelo órgão acusatório. Por não haver, nessa hipótese, violação ao princípio da correlação entre a acusação e a sentença, não se faz necessário aditar a peça acusatória, sendo recomendável, no entanto, em homenagem ao contraditório, a intimação das partes (acusação e defesa) para se manifestarem, evitando surpresas processuais e decisão sobre questão não debatida processualmente.

Assim, em caráter exemplificativo, ao sentenciar a acusação de crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, que imputa ao dono do estabelecimento a conduta de guardar arma de fogo, pode o magistrado reclassificar os fatos, sem alterá-los, para o delito de posse irregular de arma de fogo de uso permitido.

Por sua vez, a mutatio libelli manifesta-se não através de equivocada capitulação dos fatos pela acusação, mas pela possibilidade de nova tipificação em função de fatos novos sobre elementares e circunstâncias do crime apuradas ao longo da instrução processual.

Nessa segunda situação, é dever do Ministério Público aditar a denúncia  embora não caiba ao juiz instá-lo a tal, em respeito ao sistema acusatório , seja no prazo aberto para apresentação de memoriais ou em alegações finais orais, sucedida de manifestação da defesa, que poderá arrolar até três testemunhas, passando a nova formulação acusatória, enfim, por juízo de admissibilidade. Recebido o aditamento, realiza-se nova audiência de instrução e interrogatório do acusado, devendo o magistrado ater-se à nova imputação ao sentenciar.

Tome-se como exemplo hipotética acusação de homicídio doloso na condução de veículo automotor, em que a instrução processual demonstra que o autor do fato agiu culposamente. A denúncia é aditada e as penas cominadas ao tipo de homicídio culposo no trânsito não admitem transação penal nem suspensão condicional do processo. O Ministério Público deixa de oferecer acordo de não persecução penal ao argumento de que a denúncia anterior já fora recebida e, ao final, o acusado é condenado.

No caso da desclassificação para o crime de posse de arma de fogo de uso permitido, tendo o delito a pena mínima cominada igual a um ano, a jurisprudência remansosa admite abertura de vista ao Ministério Público para análise de cabimento da suspensão condicional do processo [4]. Essa já não seria uma alternativa possível no caso da desclassificação para o crime de homicídio culposo no trânsito.

Cabe, então, o questionamento: caso a pena mínima de um ano ou máxima de dois cominada ao delito afastasse, respectivamente, a incidência da suspensão condicional do processo e da transação penal, preenchidos os demais requisitos do artigo 28-A do CPP, e não tendo o crime sido praticado com violência ou grave ameaça, seria viável a abertura de negociação entre acusação e defesa para celebração de acordo de não persecução penal?

A resposta formada a partir dos precedentes dos tribunais é negativa. Com efeito, à exceção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região [5]  em decisão ainda anterior à posição adotada pela 1ª Turma do STF , as cortes brasileiras têm rechaçado a análise do instrumento negocial em questão nos casos de desclassificação à luz da premissa de que iniciada a etapa judicial da persecução penal, a partir do recebimento da denúncia, encerra-se o período de incidência do acordo de não persecução penal [6].

Essa não parece a solução mais acertada por motivos gerais e por motivos específicos de cada hipótese desclassificatória, como se verá adiante.

Como mencionado, a jurisprudência há muito se consolidou no sentido de que a desclassificação para o crime menos grave admite a manifestação do Ministério Público sobre o oferecimento de transação penal ou suspensão condicional do processo [7].

O acordo de não persecução penal constitui, assim como a transação penal e suspensão condicional do processo, uma medida de racionalização do sistema punitivo [8], é dizer, visa, precipuamente, a oferecer soluções alternativas à persecução penal, com vistas a um aperfeiçoamento do sistema de Justiça e redução do número de processos. A ideia motriz é a de evitar o avanço da persecução penal, com vantagens para o Estado, no sentido de evitar custos e a demora no resultado, e para o indivíduo, no sentido de evitar sua exposição ao processo.

Assim, de maneira geral, entende-se que a constrição de um instituto despenalizador em desfavor do acusado, a partir de interpretação acerca do momento processual em que poderia ser adotado, vai contra a base teleológica de um sistema que privilegia cada vez mais a Justiça Penal negociada.

Particularmente, no caso da emendatio libelli, os fatos tipificados em crime menos grave e compatível com a celebração do acordo de não persecução penal estavam narrados pela acusação desde o princípio. Permitir que um equívoco  ainda que não intencional  impeça a posterior celebração do instrumento negocial, além de cristalizar prejuízo contra a legítima expectativa criada pelo acusado quanto à viabilidade de acordo, acaba por ferir o princípio da isonomia, pois acusados em contexto fático similar defendendo-se de correta tipificação desde a denúncia, poderiam, em tese fazer jus ao acordo de não persecução penal.

Já em se tratando de mutatio libelli, destaca-se que o aditamento, enquanto nova formulação acusatória sujeita a juízo de admissibilidade, por si só, já afastaria a proposição de que o acordo de não persecução penal seria incabível porquanto já recebida a denúncia. Isso porque, de um lado, o aditamento pode vir a ser rejeitado; por outro, se admitido, o juízo não poderá julgar a imputação originária. Em ambas as hipóteses, não há de se falar, portanto, em denúncia recebida para fins de negativa de incidência do instituto em questão.

Como se não bastasse, a aquisição de elementos fático-probatórios ao longo da instrução criminal e a respectiva mudança do fato processual  a partir da qual a própria tipificação imputada ao acusado poderia ser alterada para delito menos gravoso , em nada altera a realidade objetiva ex ante. Em outras palavras, a conduta praticada pelo agente subsumia-se, desde o princípio, a tipo legal de menor gravidade no que toca à pena cominada, sendo tal juízo de tipicidade realizado a posteriori apenas em razão de uma deficiência na investigação preliminar que acarretou formulação de acusação imprecisa, ou porque determinada fonte de prova foi descoberta ou apresentada tão somente na etapa judicial da persecução penal.

Se no curso do processo ou ao final da instrução houver aditamento da denúncia e após a resposta da defesa, for recebida pelo juiz, levando a alteração do tipo penal e passando a ser cabível o acordo de não persecução penal em relação ao novo delito, o juiz deverá dar vista ao Ministério Público para que seja feita a proposta de acordo, ou justifique o seu não cabimento no caso concreto.

Seja o acordo de não persecução penal classificado como direito público subjetivo do réu, seja como verdadeiro espaço de consenso entre acusador e autor do fato, entende-se que, presentes as condições previstas em lei o Ministério Público não poderia deixar de fazer a proposta sem fundamentação, sob pena de se admitir ampla discricionariedade sobre a aplicação do instituto.

Essas constatações servem, em primeiro lugar, para romper com a lógica de que o acusado se defende tão somente dos fatos, falácia processual que ignora a construção da estratégia defensiva em função das elementares do tipo imputado na denúncia ou queixa-crime, causas de aumento e diminuição de pena entre outras circunstâncias do delito, além da própria expectativa de manejo de um dos instrumentos de Justiça negocial atualmente existentes na legislação.

Em segundo, demonstram que a aplicação do entendimento manifestado pelos tribunais superiores quanto ao momento de celebração do acordo de não persecução penal deve levar em conta as hipóteses de desclassificação do delito, restringindo-se a inaplicabilidade do instrumento negocial aos casos em que a persecução penal avança sem alterações na capitulação legal dos fatos (por exemplo, a denúncia é aditada apenas em relação às circunstâncias temporais ou espaciais, para narrar hora ou local diferente do crime face à formulação originária, em nada alterando a capitulação legal da conduta).

Portanto, faz-se necessário o debate a fim de que, vindo o Supremo Tribunal Federal a consolidar a posição dominante de que o acordo de não persecução penal não retroage aos casos em que denúncia já foi recebida, os efeitos desse entendimento sejam modulados para que se admita a abertura de negociação quando houver desclassificação do delito  seja por emendatio ou mutatio libelli , uma vez preenchidos os requisitos legais.

 


[1] HC 191464 AgR, Relator Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 11/11/2020, DJe-280, Publicado 26/11/2020.

[2] EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1319986/PA, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 18/05/2021, DJe 24/05/2021.

[3] AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 08/09/2020, DJe 14/09/2020.

[4] HC 302.544/DF, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/02/2015, DJe 23/02/2015.

[5] TRF4, ACR 5000730-74.2015.4.04.7008, Relatora Cláudia Cristina Cristofani, Sétima Turma, juntado aos autos em 08/07/2020.

[6] AgRg no HC 642.591/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 18/05/2021, DJe 21/05/2021.

[7] Súmula nº 337, do STJ: "É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva". No mesmo sentido, HC 302.544/DF, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/02/2015, DJe 23/02/2015.

[8] O termo é de Maria Thereza Rocha de Assis Moura, que, em palestra ministrada no curso "Pacote Anticrime: alterações processuais penais", realizada pela Fundação Arcadas na data de 30 de julho de 2020, considerou como medidas de racionalização do sistema punitivo 1) o acordo de não persecução penal; 2) a transação penal; 3) a suspensão condicional do processo e 4) a suspensão condicional da penal.

Autores

  • é advogado criminal no escritório Carina Quito Advogados, Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado no programa de Direito Penal Econômico da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

  • é advogada criminal no escritório Carina Quito Advogados e graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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