Ambiente Jurídico

COP 26 e a declaração sobre o papel do Judiciário em tempos de crise climática

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6 de novembro de 2021, 8h00

Participei, no último mês de julho, dos debates organizados pelo British Institute of International and Comparative Law, na conferência mundial Our Future in the Balance: The Role of Courts and Tribunals in Meeting the Climate Crisis, juntamente com juízes de tribunais superiores, formuladores de políticas públicas, professores de importantes universidades, profissionais do Direito, cientistas, políticos, sociólogos, economistas, especialistas em saúde pública, representantes da sociedade civil e jovens ativistas climáticos de vários países [1].

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No evento, multidisciplinar e transversal, restou evidenciado que a mudança climática é uma preocupação comum da humanidade, pois o planeta está sob o alerta vermelho dos riscos decorrentes deste fenômeno de causas preponderantemente antrópicas. Aliás, isso ficou demonstrado, cientificamente, pelo último relatório do IPCC [2], como comentei recentemente, de modo mais detalhado, aqui na ConJur [3]. Dos debates foi possível constatar que os impactos negativos do aquecimento global afetam a saúde humana, a subsistência, a segurança alimentar, o abastecimento de água, a biodiversidade, os ecossistemas, a prosperidade econômica e, em última instância, a paz e a segurança para a humanidade. Outrossim, a comunidade científica vai solidificando a opinião que a janela temporal para limitar o aquecimento global em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais está se fechando, e são necessárias reduções imediatas, rápidas e em larga escala nas emissões e remoções de gases de efeito estufa da atmosfera.

Nesse cenário, bem delineado na referida cimeira mundial, a menos que sejam tomadas medidas imediatas, os jovens e as gerações futuras sofrerão os piores impactos das mudanças climáticas, e os países menos responsáveis pelo agravamento da crise climática serão, evidentemente, os mais prejudicados. É lamentável que conhecidas medidas, com base nos consagrados princípios da precaução e da prevenção, já poderiam ter sido adotadas pelos Estados e não o foram. As medidas que foram adotadas, desde 2015, após a COP 21, estão tão atrasadas em relação às metas mitigatórias acordadas em Paris que podem comprometer os objetivos a serem atingidos em 2100.

Ficou evidenciado, outrossim, o aumento do número dos litígios climáticos ajuizados, nos últimos anos, nas jurisdições dos países, buscando alcançar ações climáticas mais ambiciosas por parte dos Estados e das empresas. Aliás, esse interessante fenômeno já havia sido detalhadamente constatado pelo mais recente relatório elaborado pela ONU e pelo Sabin Center for Climate Change Law (Columbia Law School), que foi divulgado no início deste ano [4].

Outro ponto importante do debate foi a abordagem da crise climática como uma crise dos direitos humanos, como já havia alertado com brilhantismo o papa Francisco na "Encíclica Laudato SI'" [5]. Com efeito, promover a proteção dos direitos humanos é uma obrigação fundamental de todos os poderes do Estado, incluindo, lógica e especialmente, o Judiciário. Referido dever de tutela dos direitos humanos, em tempos de crises climáticas, afeta, em especial, igualmente, os tribunais internacionais.

Ao final do referido evento foi elaborada, criteriosamente, uma declaração que tive a honra de assinar originariamente, com grande convicção, mas igual preocupação com o que pode acontecer com nossa geração e, muito especialmente, com as gerações futuras de seres humanos e não humanos em virtude da emergência climática nesta era do antropoceno.

Consta em nossa declaração (Declaration on Climate Change, Rule of Law and the Courts), apresentada oficialmente em Glasgow, na última terça-feira (2/11), na COP 26:

"1. Um engajamento imperativo
É imperativo que os tribunais julguem as reivindicações surgidas no contexto da crise climática e determinem a existência de quaisquer direitos ou obrigações e seu conteúdo de acordo com a legislação internacional e doméstica relevante;

2. Equilíbrio entres os Poderes e Órgãos do Estado
Quando os poderes legislativo e executivo estão falhando em suas obrigações, a doutrina da separação de poderes não deve limitar o papel dos juízes para determinar se os outros poderes estão operando dentro dos limites da lei, bem como se as limitações aos direitos humanos são justificadas. Pelo contrário, este é o papel fundacional das Cortes;
3. Papel da Ciência Climática e do Direito
As decisões judiciais relativas as questões de previsibilidade e causalidade das conseqüências das mudanças climáticas devem ser baseadas na ciência climática e em evidências;
4. Interpretação da Lei na Realidade Atual
A aplicação da lei deve ser regida por princípios conhecidos de interpretação estatutária, levando em conta a atual realidade global única da crise climática. Os tribunais devem, quando apropriado, considerar causas emergentes e inovadoras de ação e a responsabilidade dos diversos atores, tanto estatais quanto não estatais. A lei deve avaliar se as estruturas legais tradicionais e os princípios de posição devem ser repensados e ajustados para serem aplicados, neste contexto, de forma coerente;
5. Proteção dos Defensores do Meio Ambiente
O ativismo, a resiliência, a força e a determinação dos defensores do meio ambiente, incluindo os jovens ativistas, desempenham um papel vital na linha de frente da crise climática. É crucial que a lei, em substância e prática, proteja os direitos e a segurança dos defensores do meio ambiente na promoção de seu ativismo;
6. Parceria Global e Diálogo entre os Juízes
O diálogo judicial e a continuação da polinização cruzada entre tribunais e juízes dentro e entre Estados é a chave para identificar e aplicar princípios legais na resposta às mudanças climáticas, o problema mais exigente e verdadeiramente universal de nossos tempos;
7. Apelo para a Comunidade Mundial
Estados, governos subnacionais, organizações regionais e outras organizações internacionais relevantes, legisladores, sociedade civil e o setor privado têm a responsabilidade inquestionável de se engajar de forma urgente, plena e cooperativa para responder efetivamente às mudanças climáticas" [6].

É de se esperar que a referida declaração, que já pode ser subscrita por operadores do Direito [7], para além de enriquecer os debates da COP26 no âmbito jurídico, traduza para o direito das mudanças climáticas, mundial e brasileiro e insira nos litígios climáticos, atuais e futuros, estas sete máximas que podem ser norteadoras e, igualmente, auxiliares nas ações de advogados (públicos e privados), representantes do Ministério Público e, em especial, dos juízes em suas decisões. A Declaration on Climate Change, Rule of Law and the Courts pode também ser um importante ponto de partida ou de aprofundamento no debate acadêmico, que já está ocorrendo nas universidades, e vai se desenvolver, de modo mais acelerado e agudo, nos próximos anos, em sede de pesquisas.


[1] British Institute of International and Comparative Law. Declaration on Climate Change, Rule of Law and the Courts. Disponível em: https://www.biicl.org/events/11491/our-future-in-the-balance-the-role-of-courts-and-tribunals-in-meeting-the-climate-crisis. Acesso em: 05.11.2021.

[2] IPCC. Sixth Assessment Report. Disponível em: https://www.ipcc.ch/assessment-report/ar6/. Acesso em: 11.08.21.

[3] WEDY, Gabriel. Mudanças climáticas: o sombrio relatório do IPCC. Revista eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-14/ambiente-juridico-mudancas-climaticas-sombrio-relatorio-ipcc. Acesso em: 05.11.2021.

[4] United Nations Environment Programme (2020).
Global Climate Litigation Report: 2020 Status Review. Nairobi. Disponível em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/34818/GCLR.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 29.01.2021.

[5] Vaticano. Carta Encíclica Laudato SI’ do Santo Padre Francisco: sobre o cuidado da casa comum. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html. Acesso em: 05.11.2021.

[6] British Institute of International and Comparative Law. Declaration on Climate Change, Rule of Law and the Courts. Disponível em: https://www.biicl.org/climate-change-declaration. Acesso em: 05.11.2021.

[7] British Institute of International and Comparative Law. Declaration on Climate Change, Rule of Law and the Courts. Disponível em: https://www.biicl.org/climate-change-declaration. Acesso em: 05.11.2021.

Autores

  • é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe-RS), visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) e presidiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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