Opinião

A desconsideração da personalidade jurídica inversa no Direito de Família

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5 de novembro de 2021, 10h50

A personalidade jurídica é uma ficção criada para viabilizar a atividade econômica empresarial, de maneira a estabelecer que o patrimônio pessoal dos sócios não se confunda com o patrimônio da pessoa jurídica. Assim, com o devido registro dos atos constitutivos da sociedade empresária no órgão competente (artigo 985 do Código Civil), adquire-se a personalidade jurídica e as obrigações constituídas pela pessoa jurídica serão adimplidas com o patrimônio da própria pessoa.

Ocorre que em algumas sociedades empresárias existem sócios que apresentam condutas inadequadas e fraudulentas no que tange ao gerenciamento do patrimônio pessoal e do patrimônio da empresa, e é exatamente nesses casos em que é possível se valer da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil.

O referido artigo estabelece que nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público, promover a desconsideração da personalidade jurídica. Segundo o artigo 50, §1º, o desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. O §2º, por sua vez, determina que a confusão patrimonial é a ausência de separação de fato entre os patrimônios da pessoa física com a pessoa jurídica.

Com a desconsideração da personalidade jurídica direta, determinada por decisão judicial, o patrimônio particular dos sócios será atingido para satisfazer os créditos provenientes de uma relação obrigacional da pessoa jurídica, contrariando a lógica de separação patrimonial que é inerente ao mundo empresarial.

No entanto, o cenário de confusão patrimonial e abuso da personalidade jurídica pode ser utilizado de forma "inversa" ou indireta, quando os sócios utilizam a personalidade jurídica para ocultar o patrimônio pessoal de maneira a lesar credores, fraudar situações jurídicas e cometer atos ilícitos. Nesse caso, a desconsideração da personalidade jurídica inversa, também determinada por decisão judicial, teria o efeito de afastar a autonomia patrimonial da sociedade empresária para que esta seja também responsável pela obrigação constituída pelo sócio administrador.

Segundo Madaleno [1], entre as "múltiplas aplicações da despersonalização do artigo 50 do Código Civil, situação clássica ocorre nas ações de alimentos ou de sua revisão processual para majoração dos alimentos defasados". Exemplo disso ocorre no caso do devedor de alimentos que visando a atenuar ou evitar a sua obrigação, oculta o seu patrimônio na pessoa jurídica em que é sócio, como é possível observar no Agravo de Instrumento nº 0063117-77.2011.8.19.0000, de relatoria do desembargador Maldonado de Carvalho, da 1ª Câmara Cível do TJ-RJ, julgado em 15/5/2012.

Outra hipótese de desconsideração da personalidade jurídica inversa ocorre nos casos em que o cônjuge ou companheiro utiliza a sociedade empresária para subtrair do outro cônjuge direito oriundo de meação. Exemplo disso encontra-se na análise do julgamento do Resp 1.236.916, em que contatou-se a ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário, concluindo a 3ª Turma do STJ pela necessidade de manter a desconsideração inversa da personalidade jurídica para proteger o direito de cônjuge em momento de partilha.

Já no direito das sucessões é possível aplicar a desconsideração inversa da personalidade jurídica nos casos em que um dos herdeiros utiliza a pessoa jurídica para ocultar patrimônio recebido por ato de liberalidade com o intuito de escusar-se do dever de colacionar [2], tal como ocorrido no julgado do TJ-GO, Apelação Cível nº 0251017-79.2010.8.09.0175, 4ª Câmara Cível, relator desembargador Marcus da Costa Ferreira, DJGO 25/8/2014, página 282.

Diante do exposto, é possível concluir que a desconsideração da personalidade jurídica inversa, se bem utilizada pelos operadores do Direito, pode servir de importante instrumento processual utilizado para prevenir fraudes, evitar a dilapidação de patrimônio e abuso do direito.


[1] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p 745.

[2] TARTUCE, Flávio. A desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões e medida provisória 881/2019 (liberdade econômica) — Visão Crítica. Revista eletrônica Migalhas, 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/303198/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-aplicada-ao-direito-de-familia-e-das-sucessoes-e-a-medida-provisoria-881-2019–liberdade-economica—-visao-critica. Acesso em 01/11/2021.

Autores

  • é advogada, pós-graduanda em Direito de Família e das Sucessões pela EPD, membro do grupo de pesquisa "Planejamento Patrimonial" da faculdade Milton Campos e redatora do Blog "Familiarizando".

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