Opinião

A invisibilidade LGBTQIA+ no SUS e o fenômeno da inseminação artificial caseira

Autores

  • Miriele Vidotti

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR e pesquisadora em Bioética.

  • Ana Paula Ricco Terra

    é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões pela Fundação do Ministério Público e mestranda em Ciências Sociais pela Unifesp.

4 de novembro de 2021, 6h35

A reprodução humana assistida no Brasil é regulamentada desde o ano de 1992. Embora a normativa exista há quase três décadas, somente em 2011 o acesso às técnicas de reprodução assistida foi ampliado para as pessoas e casais não heterossexuais.

A regulamentação da reprodução assistida no Brasil esteve, por muitos anos, relacionada às questões de infertilidade dos indivíduos e à compreensão tradicional da família, só havendo alteração nesse cenário após decisão-paradigma do Supremo Tribunal Federal em 4 de maio de 2011, com a equiparação das uniões entre pessoas não heterossexuais às uniões estáveis entre homens e mulheres [1].

Esse atraso no reconhecimento do direito ao acesso às técnicas de reprodução assistida impacta a oferta desses serviços e a percepção sobre o acesso a essas práticas pela população LGBTQIA+.

A demora impactou, também, o acompanhamento em saúde reprodutiva voltada às mulheres não heterossexuais no âmbito do sistema público de saúde, de modo que mulheres lésbicas que buscam a maternidade enfrentam um imaginário hostil de que teriam abdicado da maternidade.

A busca por tornar-se mãe para mulheres que não estão em relacionamentos heterossexuais vem acompanhada de dificuldades não só de aceitação social da configuração familiar não tradicional, mas também do despreparo nos cuidados em saúde para essa população no âmbito do SUS.

Embora exista uma concentração muito alta das tecnologias de reprodução assistida no setor privado de saúde no Brasil, o Sistema Único de Saúde oferece tratamentos de procriação assistida, inclusive os de alta complexidade, como a fertilização in vitro, para seus usuários.

No entanto, há uma busca bastante acentuada de mulheres em relacionamentos com mulheres pela inseminação artificial caseira em detrimento das técnicas medicamente assistidas disponibilizadas no sistema público de saúde.

Essa procura pode ser explicada por diferentes razões.

Em primeiro lugar, poucas unidades de saúde oferecem os tratamentos de reprodução assistida no âmbito do SUS em todo o país, sendo que a grande maioria se concentra nas capitais dos Estados.

A título de exemplo, o tratamento de fertilização in vitro, atualmente, conta com apenas 12 hospitais da rede pública de saúde aptos a sua realização.

Há, ainda, um longo processo de espera em razão da demanda pelo serviço, de modo que, dependendo da unidade de saúde, algumas pessoas podem aguardar anos na fila até serem chamadas para realizar o tratamento.

Precisamos considerar, por fim, a persistência de estigmas e despreparo de profissionais de saúde no tocante ao atendimento médico às populações LGBTQIA+. Em estudo realizado por pesquisadoras da Universidade Estadual de Campinas, foi apontado que o acesso a cuidados ginecológicos de mulheres não heterossexuais é prejudicado pela discriminação presente nos serviços de saúde (Barbosa e Facchini, 2009) [2], o que não só afasta as mulheres da procura pelo serviço como também gera uma série de obstáculos na relação médico-paciente, que deveria ser pautada pela confiança.

A invisibilidade é notada quando mulheres não heterossexuais não encontram o atendimento em saúde adequado, que responda às suas demandas específicas, como por exemplo as questões de ordem social e psicológica na construção de um núcleo familiar não tradicional para as mulheres LGBTQIA+ em busca da maternidade biológica.

Esses fatores — e outros não esgotados neste artigo — podem conduzir essas mulheres à busca pela maternidade biológica através da inseminação artificial caseira, alternativa bastante comum entre mulheres em relacionamentos com mulheres.

A técnica envolve a coleta do sêmen de um doador e a inserção desse material na mulher que deseja gestar com o uso de seringa ou coletor menstrual, realizada geralmente no ambiente doméstico, sem assistência de profissional da saúde.

Ainda que a prática não seja ilegal, envolve diversos riscos, em especial o de contágio de doenças que podem afetar a saúde tanto da gestante quanto do feto, tendo em vista que o material biológico introduzido foi coletado sem triagem laboratorial adequada, e considerando ainda que algumas infecções possuem janela imunológica e podem gerar um falso resultado não reagente.

Além disso, ainda hoje, comumente as mulheres precisam recorrer ao Judiciário para o registro da dupla maternidade quando a gestação foi fruto da autoinseminação.

O Provimento nº 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamenta o registro de nascimento e emissão da certidão de nascimento de filhos tidos por reprodução assistida, determinando que nesse caso seja apresentada declaração do diretor técnico da clínica ou serviço em que foi realizada a reprodução assistida, assim como o nome dos genitores. Documento que falta às mulheres que realizaram procedimento de inseminação artificial caseira.

Há, ainda, o risco de que o doador do material biológico venha a requerer, futuramente, o reconhecimento da paternidade dessa relação.

Enquanto ativistas do direito à saúde das mulheres, cabe a orientação para que as mulheres em relacionamento com mulheres que vivenciam o sonho da reprodução biológica considerem o acesso aos tratamentos de reprodução assistida pelo Sistema Único de Saúde, através da consulta iniciada em unidade básica de saúde e consequente encaminhamento para serviço de referência no tratamento.

O direito à maternidade biológica é uma das ramificações do direito à saúde das mulheres. Não cabe ao Estado estigmatizar os corpos e sonhos das mulheres LGBTQIA+, mas proteger e garantir a reprodução humana enquanto direito à existência digna dessas populações.


[1] ADI nº 4.277 e ADPF nº 132.

[2] Barbosa, R. M.; Facchini, R.. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25-Sup 2:S291-S300, 2009.

Autores

  • é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde, pós-graduanda em Políticas Públicas y Justiça de Género pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais e pesquisadora em Bioética.

  • é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões, engajada na construção de uma advocacia familiarista com perspectiva de gênero, mestranda pela Universidade Federal de São Paulo e pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação do Ministério Público.

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