Opinião

Negacionismo jurídico para interditar o debate político

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28 de março de 2021, 7h11

Durante os últimos anos, o debate político no Brasil foi interditado pela criminalização da política, tendo como alvo central a figura do ex-presidente Lula e o seu partido, o PT. Foram mais de cinco anos em que praticamente todos os órgãos de segurança e justiça no país participaram ativamente da caçada ao Lula. Associar o ex-presidente, e sempre potencial candidato favorito às eleições presidenciais, à corrupção, identificando-o como personificação de todos os desvios éticos da República, permitiu que todas as outras questões importantes fossem deixadas de lado e, com isso, muitas medidas contrárias aos interesses do povo brasileiro fossem aprovadas pelos governos que se seguiram ao impeachment de 2016.

Por isso, muitos brasileiros se sentiram desconcertados após a 2ª Turma do STF, na sessão encerrada no último dia 23, no Habeas Corpus impetrado pelo ex-presidente, declarar a suspeição do então juiz Sérgio Moro, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Independentemente das consequências processuais e políticas favoráveis a Lula, o resultado não deixou pedra sobre pedra na operação "lava jato".

Nos citados votos, que reconheceram a parcialidade do ex-juiz, em especial nos dois primeiros proferidos ainda na sessão do dia 9, a "lava jato" foi apresentada como uma organização criminosa, em minuciosa descrição acompanhada de citações de trechos de gravações vazadas, que o ministro Lewandowski qualificou como fidedignas, entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz.

De acordo com os referidos votos, que são peças difíceis de serem refutadas pela riqueza de detalhes e fatos que oferecem, toda a condução da operação foi motivada pelo interesse político dos seus integrantes de prender o ex-presidente Lula e impedir a sua candidatura, àquela altura amplamente favorita para o pleito de 2018.

A partir de delações premiadas artificialmente construídas, conduções coercitivas realizadas com o mero intuito de promover a desmoralização pública do acusado, interceptações telefônicas ilegais de advogados dos acusados e seus colegas de escritório, articulação prévia entre juiz e MP, ocultação de provas favoráveis à defesa, conexão fantasiosa entre fatos que poderiam levar à culpabilidade, enfim, um processo criminal dos horrores em que ninguém teria chance de não ser condenado. É o que se chama de lawfare, que há anos vem sendo denunciado por juristas nacionais e estrangeiros, finamente reconhecido em plena Suprema Corte brasileira em relação ao "caso Lula".

O saldo da "lata jato", além de abrir as portas do Brasil para a chegada da extrema-direita ao poder, intervindo diretamente no destino político do país, foi a destruição, segundo dados do Dieese, de 4,4 milhões de empregos e a perda de R$ 172,2 bilhões de investimentos nas companhias brasileiras, além de jogar o país numa crise política, econômica e sanitária sem precedentes.

Embora hoje se veja claramente que o objetivo nunca foi combater a corrupção, mas intervir na realidade política nacional, fica para todos a lição, lançada no histórico voto do ministro Gilmar Mendes, de que não se pode combater crimes praticando outros crimes. Não se pode politizar o combate à corrupção, fazendo das investigações criminais um palco sobre o qual os adversários políticos sejam inimigos a serem destruídos. Não se pode imaginar que a ética no exercício da coisa pública é monopólio de determinado grupo, e que outro é dela desprovido. A manutenção do Estado democrático de Direito exige o fim da criminalização da política, pois esta é o único caminho democrático para a solução dos problemas coletivos.

Sob os escombros da "lava jato" deve-se agora investigar a ligação dos integrantes da operação com governos estrangeiros, a partir das já conhecidas relações informais que determinaram ou procuraram determinar o destino dos recursos "recuperados", embora estes sejam uma parcela muito pequena dos enormes prejuízos que a atuação ilegal e antinacional desses agentes públicos gerou ao patrimônio público do povo brasileiro.

A partir daí, muitas perguntas precisam ser respondidas. Esses prejuízos nacionais foram meros efeitos colaterais? Afinal, eles não atuaram sozinhos. A que interesses atendiam? Foi mero deslumbre, vaidade e arrogância de jovens concursados? É preciso que a sociedade brasileira conheça os detalhes dessa história para que no futuro não a repita. É preciso que o vergonhoso fim da "lava jato" seja acompanhado do fim do lavajatismo em nosso país.

É preciso reconhecer que o uso político do combate da "corrupção apenas do Estado" nas palavras de Jessé Souza, deriva da tentativa de estabelecer uma dicotomia entre o Estado demonizado e o mercado como reino da eficiência e da virtude, a fim de escamotear a nossa desigualdade e, a partir do esvaziamento da função estatal distribuidora, justificar a manutenção da grotesca concentração de renda, em favor da elite que é a maior beneficiária da própria corrupção, por meio de financiamentos e privilégios estatais, com a conveniência e o estímulo do mercado. Nessa toada, faz todo o sentido manter livres os corruptores delatores e prender os políticos, preferencialmente os que apresentarem um viés mais distributivista.

Ao contrário do que sugere o senso comum, o maior problema da corrupção não são os recursos que são subtraídos do erário, mas o desvio de perspectiva da atuação estatal, que, deixando de perseguir uma finalidade adequada aos anseios da maioria da população, atende aos interesses do corruptor, quase sempre situado no percentual mais elevado da pirâmide social e econômica.

A nossa história recente mostra que o combate seletivo à corrupção gera mais prejuízos ao país do que a própria corrupção em si, que é fenômeno que vem do mercado para o Estado em uma sociedade em que o senso de coesão social vem perdendo espaço para anseios de um individualismo exacerbado e hedonista. A reconstrução de um projeto coletivo de Brasil não passa pela demonização dos políticos, atalho fácil para o atingimento de outros objetivos políticos que quase nunca guardam superioridade moral sobre o de suas vítimas. Mas pela capacidade de diálogo entre as forças políticas que o povo, de forma certa ou errada, escolheu, a partir de um projeto de desenvolvimento nacional que se abra à maior parte da população, maior vítima da inação estatal decorrente do triunfo dos moralistas sem moral.

Diante desse quadro, que hoje é dado a toda a sociedade brasileira conhecer, constitui verdadeiro negacionismo jurídico, comparável ao negacionismo sanitário, em fenômenos ligados umbilicalmente, insistir em retirar os adversários do jogo político por meio dos tribunais. Significa fechar os olhos para toda a corrupção do processo judicial perpetrada pela "lava jato" e negar que o malogro da caçada ao Lula, que, a despeito de ter se traduzido na maior investigação policial brasileira sobre uma mesma pessoa, não conseguiu apresentar qualquer imputação que ficasse de pé sob um olhar minimamente imparcial, acabou por atribuir ao ex-presidente um atestado de idoneidade que nenhum político brasileiro teve a oportunidade de receber. Essa postura negacionista, tão encontradiça em setores da imprensa, agora minoritários, e nos discursos governistas, em nada contribui para o desejado combate à corrupção que possa ir à raiz do problema, atingindo os corruptores e seus interesses, sem destruir as empresas brasileiras, a economia nacional e a política, arena indispensável à democracia e à solução dos problemas da maioria da população.

É mais uma vez, tentar interditar o debate pela população dos principais problemas nacionais em perspectiva mais ampla do que as desejadas por aqueles que insistem nesta ou naquela forma de negacionismo. Mas tudo indica que a estratégia, tão exitosa em passado recente, parece não produzir mais os mesmos efeitos.

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