Opinião

Lei Aldir Blanc no federalismo brasileiro: riscos e contradições

Autor

  • Cecilia Rabêlo

    é advogada mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

23 de março de 2021, 6h02

Segundo o ditado: "Quando a cabeça não pensa, o corpo padece". Essa máxima de sabedoria popular poderia ser aplicada ao atual cenário brasileiro, não fosse um preceito fundamental da Constituição de 1988: somos um Estado federal. E o que isso significa mesmo?

No caso do Brasil, significa que os entes que compõem nossa federação (União, estados, Distrito Federal e municípios) são autônomos entre si, ou seja, não existe hierarquia entre eles, mas apenas uma distribuição de atribuições feita pela Constituição Federal, em que cada um exerce um papel ali determinado.

É por isso que algumas tarefas são atribuídas à União, outras aos Estados e outras aos municípios. Por uma questão de organização, geralmente cabe à União o papel de "coordenação" geral, enquanto estados, municípios e DF exercem competências voltadas à realidade local.

E é exatamente por causa desse preceito constitucional e fundamental que estados e municípios estão impondo a sua autonomia na luta contra a pandemia de Covid-19, frente à instabilidade do governo federal diante do cenário caótico da Saúde.

Essa competência vem sendo, como somente poderia ser, reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que em diversas oportunidades teve de reiterar o óbvio: os entes federados são autônomos entre si, podendo tomar decisões sem "pedir autorização" aos outros, desde que estejam de acordo com as atribuições determinadas pela Constituição da República.

E no campo da política cultural isso também está acontecendo. Por exemplo, o estado do Ceará impetrou uma ação judicial contra a União [1] requerendo a prorrogação do prazo para apresentar o relatório final de gestão da Lei Aldir Blanc (LAB), documento exigido para prestar contas de como os recursos federais foram aplicados. O prazo dado pelo governo federal vai até 30 de junho, embora ele mesmo tenha autorizado que o efetivo repasse para o setor cultural seja desembolsado até o final do ano.

Ou seja, se a conta pode ser paga até dezembro, por que exigir a prestação de contas muito antes disso? Parece contraditório, não?

A manutenção do prazo de apresentação do relatório final de gestão afeta não só o estado do Ceará, mas todos os demais Estados, DF e municípios do país, que ficam inviabilizados de prestar as contas devidas à União, vez que milhares de projetos ainda estão sendo pagos e executados (conforme permitido pela própria União), existindo ainda aqueles que sequer iniciaram, pois se encontram em localidades em lockdown.

Quando o repasse do recurso foi realizado, no segundo semestre de 2020, a perspectiva sobre a pandemia era de melhora, com permissão de funcionamento de teatros, cinemas e demais equipamentos culturais (ainda que com restrições, observadas as normas de segurança sanitária), ou seja, havia a possibilidade de realização de diversos projetos culturais apoiados.

Porém, já no início de 2021 o cenário mudou e diversas atividades artísticas e culturais foram impedidas de funcionar, bem como várias localidades entraram em regime de isolamento social rígido, como é o caso do Ceará, que vive o pior momento da pandemia até agora.

O resultado dessa grande confusão é o seguinte: artistas que não podem realizar seus projetos financiados com recursos da LAB por causa do enrijecimento das medidas de combate à pandemia do Covid-19; estados e municípios que terão de reprovar a prestação de contas desses projetos, já que não foram executados, pois sequer podem prorrogar o prazo de execução deles por também terem um prazo a cumprir com a União, o de envio do bendito relatório de gestão até 30/6/21.

Ou seja, o recurso destinado para apoiar, de forma emergencial, o setor artístico e cultural nesse momento de pandemia acabará por causar o efeito contrário, prejudicará o próprio setor cultural, que terá prestações de contas de milhares de projetos reprovadas, pessoas caindo em situação de inadimplência perante o poder público e, provavelmente, uma enxurrada de ações administrativas e judiciais para cobrança dos recursos (e imposição de sanções), além de outras contestações possíveis. Enfim, um caos!

A contradição do governo federal ao prorrogar o prazo de pagamento e não fazer o mesmo com o prazo para apresentação do relatório de gestão prejudica a já árdua tarefa de implementar com eficiência os recursos da Lei Aldir Blanc, tarefa esta atribuída aos Estados, DF e municípios pela própria LAB, cabendo à União gerenciar esse repasse aos entes e, minimamente, orientá-los na aplicação da norma. No entanto, a demora nas decisões, a falta de informações claras e a ausência de diálogo com o setor cultural demonstram uma instabilidade do governo federal para enfrentar também essa crise.

Em uma federação, é fundamental que cada um dos entes cumpra suas atribuições para um bom funcionamento do todo. Como em uma orquestra, a harmonia entre os instrumentistas é crucial para uma boa apresentação. No âmbito da política de cultura, o dever de fomento ao setor não pode ser prejudicado pela falta de harmonia entre os entes do poder público, o que acaba onerando, como sempre, a parte mais frágil dessa história: quem vive e trabalha com cultura.

 

[1] Processo nº 00492386420211000000

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Saraiva & Rabêlo Advocacia, mestre em Direito Constitucional, especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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