Opinião

Sobre Lula(s), queijos e abolição

Autor

  • André Luiz Figueira Cardoso

    é abolicionista advogado criminalista pós graduando em Direito Constitucional ex-consultor jurídico da Rádio Justiça e ex-membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB-DF.

21 de março de 2021, 14h55

1) Introdução
Na segunda-feira, dia 8 de março, o mundo jurídico foi abalado por decisão monocrática tomada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin nos autos do Habeas Corpus nº 193726/PR.

Tratava-se de writ impetrado pelo ex-presidente Lula, discutindo a tese da incompetência territorial da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, especificamente nos autos da Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000.

A alegação foi submetida ao Supremo após percorrer todas as instâncias possíveis (o próprio juízo da 13ª Vara Federal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça). Foi sustentada pela defesa durante aproximadamente cinco anos, em uma multiplicidade de irresignações, recursos, remédios constitucionais e incidentes.

E foi monocraticamente reconhecida em sede de embargos de declaração opostos em face de decisão pretérita negativa do próprio ministro que, refluindo do entendimento anterior, veio a deferir o pedido.

A singeleza da tese, concernente à incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar fatos praticados  nenhum deles consumados no Paraná  em detrimento da Petrobras S/A  cuja sede, igualmente, não era naquele estado —, era questão de obviedade chapada.

A tese, portanto, nada tinha de extraordinária. Excepcionais seriam apenas a figura do paciente um ex-presidente da República  e o caráter aguerrido e obstinado de sua defesa técnica.

O caráter até comezinho da alegação  mera incompetência territorial  não deve ocultar, todavia, um problema essencial que surge a partir dessa narrativa: quantos Lulas não devem existir, nos quatro cantos da jurisdição penal brasileira, sem um Zanin que lhes faça a defesa?

2) Teimosia, queijos e insignificâncias
Em retrospecto, fazendo-se uma análise meramente jurídica, é até difícil compreender como uma tese de tamanha simplicidade, facilmente demonstrável e compreensível, demoraria tanto tempo e enfrentaria tamanha resistência para ser reconhecida.

Para além dos debates metajurídicos envolvidos na questão, a insistente veemência verificada na negativa judicial não é isolada, e nem mesmo rara. Advogar, aliás, parece resumir-se a um duelo de teimosias entre teses e denegações.

Nos anos recentes, têm assomado casos, a maioria de divulgação pela própria mídia oficial do Supremo, em que a mais alta corte do país foi chamada a se manifestar em questões igualmente óbvias e cujo indeferimento anterior, pelas cortes inferiores, deveria suscitar a maior das perplexidades.

Em janeiro deste ano, o mesmo ministro Fachin determinou o trancamento de um inquérito policial no qual se apurava suposto furto de um pedaço de queijo cujo valor de mercado era R$ 14 [1]. Consta nos autos do Habeas Corpus respectivo (HC 197.530/PB) que a mulher, de 52 anos, aproveitou-se de um momento de distração do atendente de uma padaria para comer, sem pagar, o referido laticínio.

Em 2019 [2], o STF concedeu a ordem no Habeas Corpus 139.503/MG a fim de reformar, do semiaberto para o aberto, regime de cumprimento de pena imposto ao paciente condenado à sanção de quatro meses de reclusão pelo furto de quatro frascos de desodorante. O valor dos bens assomava R$ 31,28.

Para encerrar as exemplificações, refira-se à absolvição, também em sede de Habeas Corpus (HC 155920), proferida pelo então ministro Celso de Mello [3], em situação de furto tentado de duas peças de queijo minas cujo valor somava R$ 40. Nesse caso, ao paciente havia sido imposta pena de cinco meses de reclusão em regime semiaberto.

Tais exemplos, de forma alguma taxativos, abundam nas mídias oficiais e nas redes sociais. A variação é apenas das circunstâncias. Ora tranca-se o inquérito, ora absolve-se, ora altera-se o regime imposto. Gêneros alimentícios variados [4], panelas [5], uma antiga fita de videogame [6] e cabos elétricos[7] são alguns dos bens objeto do delito. Invariável é a tipificação — delito patrimonial simples, cometido sem violência ou grave ameaça, cujo alvo é bem de baixa expressividade econômica (artigo 155, CP, furto), bem como a forma de encaminhamento da questão ao STF (Habeas Corpus).

Os argumentos empregados são os seguintes: princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade do Direito Penal; atipicidade material da conduta; princípio da insignificância ou da bagatela; caráter famélico do furto.

Não se debate, todavia, o custo social e econômico de se movimentar a estrutura do Poder Judiciário e do sistema de Justiça Criminal. Há, é evidente, todo um custo material na atuação das polícias, militar e civil, desde o combustível utilizado pela viatura que atende ao chamado, até o custo da hora trabalhada para se lavrar o auto de prisão em flagrante nos casos citados. Há despesas envolvendo o encarceramento em si. Há ônus financeiro na instauração e distribuição de ações penais e remédios constitucionais. Há também, por exemplo, o prejuízo dificilmente ponderável de se direcionar a atenção de um ministro do Supremo Tribunal Federal e de sua assessoria para a apreciação de casos como os narrados.

Ainda que se considere os valores e bens jurídicos supostamente promovidos imateriais e de impossível precificação  ordem pública, segurança pública, aplicação da lei, estabilização de expectativas, etc., não é difícil imaginar a inexistente lesividade e a ausência de risco de colapso societário que decorra do furto de fatias ou pedaços de queijo. Ao contrário, a inutilidade e a desproporção da movimentação jurisdicional causa prejuízos muito maiores do que o eventual sumiço de fatias de queijo.

Não se debate também, nos referidos casos, a seletividade do sistema; ou, tampouco, o que há de inequivocamente errado num sistema judiciário em que questões como as referidas não são enfrentadas em nenhuma das instâncias superiores, e no qual é preciso que uma já assoberbada Suprema Corte intervenha para restaurar uma sombra de razoabilidade.

Tampouco se enfrenta, no julgamento desses exóticos casos criminais, as exigências e demandas de assistência social e a profunda desigualdade social que eles permitem entrever.

O caráter (i)legítimo das decisões estatais adotadas, e a insindicabilidade dos agentes públicos envolvidos é, sem dúvida, o elemento mais chocante.

Para cada Lula anônimo, sem um Zanin que o defenda, e para cada caso que jamais chegará às manchetes, haverá também um Moro e um Dallagnol a exercer, em suas pequenas esferas de poder, miniabsolutismos, sem qualquer responsabilização ou consequências.

Sem dúvida, para cada Habeas Corpus deferido, há um sem número de situações em que a Defensoria Pública, ou a advocacia pro bono não dão conta de impugnar. O sistema atual está construído de tal forma que se permite aos seus principais agentes selecionar, com base em critérios ideológicos inconfessáveis, os alvos da repressão. E isso, independentemente do figurino legal, da tipicidade, do princípio da legalidade. Limpeza social, reforma política, visões de futuro e país: nada disso deveria ser o móvel da ação judicial, e, no entanto, o é com assustadora frequência.

Há milhares de Lulas que jamais terão seu dia na corte no Supremo; e milhares de Moros a impor, sob o sufocante manto de uma moralidade idiossincrática, visões de "certo e errado", a pretexto de reestabelecer uma "autoridade" que nada mais é que o rescaldo de uma obsoleta e carcomida ordem social velha de 500 anos [8]. E que, em nome dessa mesma autoridade, solapa liberdades, viola a dignidade da pessoa humana e torna ainda mais distantes a materialização dos princípios e objetivos fundamentais de uma República convalescente.

3) A solução abolicionista
Direito Penal não é mecanismo de resolução de conflitos sociais. Como dito pelo professor Juarez Cirino [9], um Direito Penal que garante uma sociedade desigual, na verdade, garante a própria desigualdade e é, por mais lógico e consistente que seja, estruturalmente injusto.

Nem o cárcere, nem a pena, como instituição, são programas estatais corretivos de sucesso. A própria jurisdição, que tem a pretensão de racionalizar e ordenar a aplicação da pena, claramente não tem dado conta dessa demanda.

A anulação de condenações e decisões restritivas da liberdade pelo Supremo apenas qualifica a indecorosa inutilidade de boa parte dos provimentos judiciais de natureza penal. São recursos públicos totalmente desperdiçados, numa sociedade que os vê cada vez mais escassos num momento em que se luta pela sobrevivência.

O Direito Penal e o cárcere não conseguem sequer solucionar seus próprios problemas. Como poderiam solucionar os do país? É preciso, para ontem, desenvolver uma análise crítica, que vá além do mero apontar da deslegitimação do sistema, do debate sobre a quantidade e qualidade das penas cominadas e aplicadas, a quantidade e qualidade das proibições, e as técnicas de controle processual. Que enfrente os problemas ligados à limitação do poder punitivo e que se coloque, sempre, como diz Ferrajoli [10], "ao lado de quem paga o preço da pena".

Uma análise crítica que, em atenção aos milhares de Lulas e Moros, onde se prende por pedaços de queijo, se desconhecem regras básicas de competência territorial e se mantém a prisão por razões difíceis de se diferenciar da mera teimosia, seja também abolicionista. O sistema de Justiça Criminal, enquanto instituição voltada à retribuição, à prevenção geral ou específica, e à reforma do criminoso, é um retumbante fracasso. Seus custos sociais e financeiros superam demasiado quaisquer eventuais benefícios. Ele é irreformável, imoral e obsoleto [11]. E está na hora de se declarar mais essa obviedade.

 


[8] PRADO, Geraldo; MALAN, Diego (org.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. – Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2015, p. 44.

[9] Debate entre Juarez Cirino dos Santos e Rogério Sanches na audiência pública do Senado sobre o Anteprojeto de Código Penal (PLS 236/12) no trecho 6min20seg-9min12seg (https://www.youtube.com/watch?v=90mFIO5yiR8&ab_channel=ThiagoFabresAdvocaciaCriminal). Acesso em 12.mar.2021.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. RT: São Paulo, 2002, pp. 203-204.

[11] DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. 5º Edição – Difel: Rio de Janeiro, 2020, p. 10.

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