Governar é eleger prioridades, e quando tudo é, nada é
16 de março de 2021, 8h00
De paternidade incerta, a frase "governar é eleger prioridades", ora é atribuída a John Kennedy, ora a Juscelino Kubitschek, é um bom indicador de governabilidade, pois demonstra à sociedade quais serão as principais preocupações daquele período de governo. De certo modo, isso acabou por se traduzir em um mote de propaganda governamental, como um símbolo das prioridades a serem objeto das preocupações daquele período.
Tudo isso tem a ver com propaganda governamental, coisa diferente de publicidade. Propaganda tem a função de propagação de ideias visando ao convencimento das pessoas, não servindo apenas para divulgar, mas também para convencer. A propaganda está mais voltada para o setor comercial, para as vendas, para colocar uma marca ou produto na preferência dos consumidores; a publicidade está voltada à divulgação e difusão de fatos, ideias e eventos, sem o necessário objetivo de convencer (próprio da propaganda), mas de informar. A linha é tênue, mas existe.
O Reich alemão criou, em 1933, o Ministério da Propaganda, que foi determinante para a disseminação e o convencimento da população alemã acerca da ideologia nazista. Essa é a distinção que está na base da determinação constitucional de vedar o uso da publicidade para promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (artigo 37, §1º), devendo ter caráter educativo, informativo ou de orientação social.
A lógica é que não se pode usar do governo para propaganda pessoal ou mesmo do próprio governo, mas para publicidade das ações e campanhas necessárias para informação pública – do povo. Estão permitidas, por exemplo, as campanhas publicitárias de vacinação periódica contra doenças, ou divulgação de informações sobre prazos para pedidos de bolsas de estudo ou exames gerais na rede de ensino.
Todos os slogans acima citados, portanto, têm a função de propagandear um objetivo de governo, porém, serão úteis para se identificar as verdadeiras prioridades do período, ou apenas uma vaga e difusa tentativa de convencer a população acerca das intenções governamentais? Eis o ponto sob análise.
Penso que as prioridades de um governo — qualquer governo, em qualquer nível federativo — devem ser identificados por suas ações, e não apenas por sua propaganda. E isso pode ser identificado de várias formas, uma delas, bastante simbólica, se verifica na eleição de prioridades entre Executivo e Legislativo. Observemos um caso concreto.
O atual presidente da República encaminhou ao Congresso — que esteve presente na sessão de abertura do ano legislativo em 3 de fevereiro — tendo entregue em mãos aos presidentes da Câmara e do Senado a mensagem presidencial para 2021 na qual foram listadas 35 prioridades para o corrente ano.
Reportagem do jornal Valor Econômico elaborada por Raphael Di Cunto, Matheus Schuch e Renan Truffi, relaciona quais são essas 35 prioridades, identificando 26 projetos econômicos e 09 de "costumes":
Pauta econômica |
||
Número |
Ementa |
Onde está |
PL 4476/2020 |
Lei do Gás |
Câmara |
PL 3877/2020 |
Depósitos Voluntários |
Câmara |
PL 6726/2016 |
Teto Remuneratório |
Câmara |
PL 3515/2015 |
Superendividamento |
Câmara |
PLP 19/2019 |
Autonomia do Banco Central |
Câmara |
PEC 45/110 |
Reforma tributária |
Câmara/Senado |
PL 2646/2020 |
Debêntures de infraestrutura |
Câmara |
PL 5877/2019 |
Privatização da Eletrobras |
Câmara |
PL 5387/2019 |
Marco Legal do Mercado de Câmbio |
Senado |
PLP 191/2020 |
Mineração em terras indígenas |
Câmara |
PEC 32/2020 |
Reforma administrativa |
Câmara |
PL 3729/2004 |
Licenciamento ambiental |
Câmara |
PL 5518/2020 |
Concessões Florestais |
Câmara |
PL 2633/2020 |
Regularização fundiária |
Câmara |
PL 4199/2020 |
BR do Mar (cabotagem) |
Senado |
PLP 146/2019 |
Marco legal das startups |
Senado |
PL 7843/2017 |
Eficiência Administrativa (Govtec) |
Senado |
PL 5191/2020 |
Fundo de Investimento Agrícola (Fiagro) |
Senado |
PL 3178/2019 |
Muda regime de partilha do petróleo |
Senado |
PLS 232/2016 |
Modernização do setor elétrico |
Senado |
PLS 261/2018 |
Transporte ferroviário em infraestruturas privadas |
Senado |
PEC 186/2019 |
PEC Emergencial |
Senado |
PEC 187/2019 |
PEC dos Fundos |
Senado |
PEC 188/2019 |
PEC do Pacto Federativo |
Senado |
PLP 137/2019 |
Uso dos fundos públicos para a pandemia |
Senado |
PLC 8/2013 |
Cobrança de pedágio por trecho (free flow) |
Senado |
Pauta de costumes |
||
Número |
Ementa |
Onde está |
PL 6438/2019 |
Registro, posse e comercialização de armas de fogo |
Câmara |
PL 6125/2019 |
Normas aplicáveis a militares em GLO |
Câmara |
PL 3780/2020 |
Aumento de pena para abuso sexual em menores |
Câmara |
PL 6093/2019 |
Documento único de transporte |
Câmara |
PL 1776/2015 |
Inclui pedofilia como crime hediondo |
Câmara |
PL 2401/2019 |
Ensino doméstico (homeschooling) |
Câmara |
PL 3723/2019 |
Porte de armas para categorias |
Senado |
PLS 216/2017 |
Revisão da Lei de Drogas (Corrupção de menores) |
Senado |
PLC 119/2015 |
Altera Estatuto do Índio contra infanticídio |
Senado |
Olhando essa relação, onde constam temas de grande relevância e de real importância, me vem à lembrança uma frase muito utilizada em filosofia, na qual se tudo é, nada é. Ou seja, se existem 35 prioridades governamentais para um ano, nenhuma delas é realmente prioritária, e o governo apenas apresentou um rol de intenções, e não de prioridades. Na pandemia sanitária em que nos encontramos, onde está esta prioridade?
Neste sentido, alinho-me muito mais com o ministro Guedes, quando afirma que, sem saúde, não há economia, apontando para o que deveria ser a verdadeira prioridade do governo, qual seja, preservar a saúde e salvar vidas da população brasileira, e, com isso, reanimar a economia. Afinal, atingimos a nada louvável média de 2 mil mortos a cada dia, e a vacinação, que não foi prioridade do governo em 2020, não consta da lista em 2021, exceto, de forma difusa, quando menciona o PLP 137/2019, que diz respeito ao uso dos fundos públicos para a pandemia.
Meu alinhamento ao ministro Guedes é meramente circunstancial e pontual, pois, a despeito de sua afirmativa, continua a alimentar a reforma tributária, que não é assunto prioritário em nenhum país do mundo nesse período pandêmico, como tive a oportunidade de escrever na coletânea publicada pela Conjur acerca das reformas tributárias e financeiras por ele propostas.
Nesse panorama, constata-se o completo descolamento das prioridades do governo federal da realidade que nos cerca e do vírus que nos ameaça. Só resta desejar a todos muita saúde, pois o comando constitucional do artigo 196 permanece descumprido: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Nunca essa norma foi tão importante e tão negligenciada, o que é lastimável — no rol de ações governamentais prioritárias onde está previsto o dever do Estado na redução do risco de doença?
Enfim, é o que temos para hoje, com muita tristeza pela anomia e pelo desgoverno reinante. Estamos chegando perto do salve-se quem puder, e, embora se veja alguma luz no fim do túnel, é apenas um vagalume isolado; é necessário que surja uma nuvem de vagalumes, representados pelas vacinas, que chegam em conta-gotas. Espero que você, caro leitor, consiga sobreviver, e com saúde.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!