Opinião

Indenização pelo fechamento da Ford não é tributável

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15 de março de 2021, 20h32

No início deste ano, a Ford encerrou abruptamente as atividades industriais no Brasil, e desde então deixou de cumprir a obrigação contratual de fornecimento de veículos que correspondiam a 85% do faturamento médio de sua rede de distribuidores, composta de quase 300 concessionárias, cuja maioria está na iminência de fechar as portas.

A secular ex-montadora, hoje autotransformada em escritório de importação, embora tenha contingenciado a expressiva quantia de US$ 4,1 bilhões para arcar com os custos do encerramento da produção — entre eles o pagamento de indenização aos concessionários —, tem apresentado propostas muito aquém dos enormes prejuízos causados à rede.

Também preocupa os concessionários, vítimas do inopinado fechamento da Ford, a possibilidade de verem o valor recebido a título de indenização ainda diminuído pela incidência de tributos federais.

Conhecendo-se bem a sanha arrecadatória da União, o temor procede. Contudo, os valores que venham a ser recebidos pelos concessionários a título de indenização pelos danos decorrentes do fechamento da Ford não são tributáveis.

Para entender a razão da não incidência de tributação, é crucial observar o que dispõe a Lei Ferrari, que regula a relação entre concedente e concessionários, em seu artigo 24: "Se o concedente der causa à rescisão do contrato de prazo indeterminado, deverá reparar o concessionário".

Como se vê, a lei especial em questão trata, nesse artigo, do dever de "reparar", ou seja, trata de indenização.

Já os respectivos quatro incisos do referido artigo definem a forma como deve se dar essa indenização:

"I – readquirindo-lhe o estoque de veículos automotores, implementos e componentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da rescisão contratual;
II – efetuando-lhe a compra prevista no art. 23, inciso II [comprar-lhe os equipamentos, máquinas, ferramental e instalações à concessão, pelo preço de mercado correspondente ao estado em que se encontrarem e cuja aquisição o concedente determinara ou dela tivera ciência por escrito sem lhe fazer oposição imediata e documentada, excluídos desta obrigação os imóveis do concessionário.];
III – pagando-lhe perdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado para um período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinquênio de vigência da concessão, devendo a projeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamento de bens e serviços concernentes a concessão, que o concessionário tiver realizado nos dois anos anteriores à rescisão;
IV – satisfazendo-lhe outras reparações que forem eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição".

Portanto:

— O valor recebido pela recompra de peças e veículos é indenização;

 O valor recebido pela compra de equipamentos, máquinas, ferramental e instalações é indenização;

 O valor recebido a título de perdas e danos (não lucro cessante) é indenização; assim como,

 Qualquer outro dano que venha a ser reparado será indenização.

De sorte que o valor da indenização compõe um todo indissociável que repara o dano patrimonial emergente causado pela concedente, decorrente do rompimento do contrato de concessão, por inexecução voluntária (dolosa).

Os três primeiros incisos do artigo 24 definem a forma como esse valor indenizatório deve ser apurado, sendo que o quarto e último inciso abre espaço para reparação de outros danos.

Observa-se no inciso III alusão ao termo "faturamento projetado", o que pode levar a equivocada compreensão de que esse item estaria tratando de espécie (inexistente) de lucro cessante vindouro, quando cuida de dano emergente.

Como cediço, o dano patrimonial referido como "perdas e danos" no artigo 389 do Código Civil abrange dano emergente (prejuízo efetivo, que ocasiona diminuição patrimonial) e lucro cessante.

É importante ter claro que lucro cessante, previsto no artigo 402 do Código Civil, é o que o credor "razoavelmente deixou de lucrar" em decorrência do descumprimento do contrato por parte do devedor, ou seja, se refere a passado, não a futuro.

Logo, estreme de dúvida que o inciso III não trata de lucro cessante, tampouco de pretenso lucro vindouro, e, sim, de dano emergente.

A regra em questão apenas define um critério de apuração de dano emergente decorrente do descumprimento do contrato de concessão, por parte da montadora.

De sorte que, por se tratar de "reparação" (artigo 24 da Lei Ferrari) — indenização que não acarreta acréscimo patrimonial, apenas recompõe perdas materiais efetivas — o valor recebido é insuscetível de tributação por Imposto de Renda, Contribuição Social Sobre Lucro Líquido, Pis e Cofins.

A própria Lei 9.430/96, que dispõe sobre legislação tributária federal e contribuições para a seguridade social, e prevê em seu artigo 70 a incidência de Imposto de Renda sobre multa por rescisão de contrato (por constituir acréscimo patrimonial), ressalva no parágrafo 5º que o disposto neste artigo "não se aplica às indenizações destinadas a reparar danos patrimoniais".

Aliás, é pacífico na doutrina e jurisprudência pátria que o valor recebido a título de indenização por dano emergente, por não implicar em acréscimo patrimonial e, sim, recomposição de prejuízo material, não é passível de tributação.

Especificamente quanto ao Pis e à Cofins, cumpre sublinhar que tais contribuições só incidem sobre faturamento/receita, em que eventualmente pode ser computado valor recebido que exceda o dano patrimonial, ou que caracterize recuperação de despesa, jamais valor pago a estrito título de indenização por dano emergente.

Diante da tradicional posição da Receita, será inevitável o debate judicial.

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