Embargos Culturais

Gustavo Zagrebelsky, a crucificação e a democracia

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de março de 2021, 8h01

Há várias leituras jurídicas que problematizam o julgamento de Jesus Cristo. Hans Kelsen (1881-1973), Haim Cohn (1911-2002), Giorgio Agamben (1942) e Gustavo Zagrebelsky (1943) são autores dos trabalhos mais substanciais sobre o fascinante assunto. Cada um deles sugere um determinado ponto de vista, que todos se encontram em algum lugar do infinito, como se fossem retas paralelas de uma narrativa intrigante. Uma percepção secular do assunto indica um problema histórico fundamentalmente político, que revela, entre outros, a natureza da dominação romana na Palestina, bem como as alianças e desavenças locais que havia. E eram muitas.

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As fontes para estudo desse importantíssimo julgamento estão nos Evangelhos Sinópticos; nesse sentido, pode-se consultar Mateus (26, 27), Marcos (14, 15) e Lucas (22, 23). Há também, ainda que com variação de pormenor, a explicitação do procedimento em João (13, 18, 19). O Evangelho apócrifo de Nicodemos também trata do assunto, com muita amplitude. São relatos fascinantes, que ocorrem na Palestina, então dominada pelos romanos, cujo imperador era Tibério César. O governador romano na região era Pilatos, indeciso e perturbado, e sempre advertido pela enigmática esposa, Cláudia. Não foi por falta de aviso de Cláudia que Pilatos carrega pela eternidade o peso de tão temerária sentença. O governador da Galileia, que fazia parte da Palestina, era Herodes Antipas. Um fortíssimo nacionalismo judeu os colocava contra a dominação romana. É circunstância que pode ter pressionado Judas, o traidor. Judas amarga pela eternidade por causa do tal dos "30 dinheiros".

Hans Kelsen definiu a decisão condenatória de Pilatos, tomada depois de ouvir a multidão, como um plebiscito indicativo de poderoso argumento contra a democracia. Considerou se tratar de história simples, em estilo singelo, uma das peças mais sublimes da literatura mundial e, "sem que o pretenda, transforma-se em um trágico símbolo do antagonismo entre convicção e relativismo". Cético e relativista, Pilatos teria optado por um procedimento democrático, "submetendo a decisão do caso ao voto popular".

Haim Cohn (que foi juiz na Suprema Corte de Israel) denunciou a perversão da justiça aplicada ao caso, inclusive em forma de cumprimento da profecia de Jesus: o Templo foi destruído e não ficou pedra sobre pedra (Marcos, 13,2; Mateus, 24,2; Lucas, 21, 6). Defendeu os judeus da acusação de terem sido os responsáveis pela morte de Jesus: "Centenas de gerações de judeus, através do mundo cristão, têm sido indiscriminadamente esbulhados por causa de um crime que nem eles, nem seus ancestrais, cometeram".

Giorgio Agamben discorreu sobre o embate entre Pilatos e Jesus, concluindo que "o indeciso Pilatos e o decidido Jesus não tem nenhuma decisão a tomar". Argumentou que todos os processos (e inclusive o processo de Jesus) começam quando o julgamento já aconteceu: "O juiz pode apenas entregar o acusado ao carrasco, não pode julgá-lo". Questionou por que o "evento decisivo da história a paixão de Cristo e a redenção da humanidade deve(ria) assumir a formar de um processo". As dúvidas de Pilatos se reverteram em catástrofe: uma condenação injusta.

Gustavo Zagrebelsky, em "A crucificação e a democracia", refletiu sobre esse famoso julgamento sobre um prisma parecido com o de Kelsen, ainda que (penso) de um modo mais sofisticado. Zagrebelsly lecionou Direito Constitucional em Turim (onde Norberto Bobbio havia lecionado Filosofia do Direito). Em 1995, assumiu uma vaga no Tribunal Constitucional Italiano. É um magistrado italiano, com fortíssima relação com leituras pós-positivistas do Direito ("O Direito Dúctil", é um de seus livros mais conhecidos e debatidos).

Entendo que o argumento de "A crucificação e a democracia" se centra no questionamento de decisões judiciais que atendem à opinião pública, especialmente quando revelada em forma de pressão. Pilatos convocou o povo para decidir. Percebe-se na leitura dos textos canônicos que os amigos e familiares de Jesus não participaram da aclamação em favor de Barrabás. Sem afirmá-lo explicitamente, Zagrebelsky denunciou que "opinião pública" não é a mesma coisa do que "opinião publicada", diferença sutil que se agrava em tempos de redes sociais.

Na construção do argumento Zagrebelsky comentou com proficiência passagens emblemáticas dos Evangelhos. Apelando para o povo, afirma o autor, Pilatos suscitava uma solução democrática, cujo resultado todos sabemos, e que não poderia ser de outro modo, porque assim foi. A decisão foi tomada em um contexto de histeria e de fanatismo popular. Marcos, entre os Evangelistas, como opina Zagrebelsky, foi quem narrou o desfecho do julgamento de modo mais enfático.

Para Zagrebelsky o julgamento de Jesus é o fio condutor de uma reflexão sobre a democracia, e do papel que nela exerce o Judiciário. O leitor delicia-se com um exercício de crítica literária, respeitosa, que o autor vincula com Ciência Política, Direito e política judiciária. Nas narrativas do Novo Testamento o autor identificou os "autos" desse complicado processo judicial, lembrando-nos que "os Evangelhos não foram escritos como relatórios com finalidades historiográficas, mas como documentos vivos de um grupo de pessoas à procura de sua fé".

Acrescentou que "todos os elementos da história já assumiram hoje um significado objetivo, completamente independentes da sua veracidade". É um autor ousado. Não tem medo. Sabe que está tratando de uma questão política, deduzida em literatura de primeiríssima grandeza. Evitou a dimensão teológica da discussão, que predica em uma questão de fé.

Para Zagrebelsky, parece-me, o problema crônico (político e jurídico) decorre da (im)parcialidade dos tribunais e do modo como a judicialização das disputas políticas pode assumir a forma de farsa, ou de dissimulação de um resultado que o julgador já antevia. Opõe-se a esse realismo cético um realismo otimista, a partir de uma parcialidade positiva do julgador. É a tese de Artur César de Souza (com base em Emmanuel Levinas e Enrique Dussel), para quem o magistrado deve "tematizar o outro (vítima inferiorizada na relação jurídica processual)". Pilatos, de algum modo, procurou essa compreensão, mas não resistiu à pressão.

Uma vez proferindo a decisão Pilatos retomou a centralidade jurídica dos acontecimentos. Reagiu aos judeus que queriam que a placa identificadora da cruz fosse alterada, de "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus", para "Jesus de Nazaré, que disse ser Rei dos Judeus". A diferença é abissal. Pilatos manteve sua ordem, porque (palavras dele) o que estava escrito estava escrito. Não há espaço para embargos de declaração. A ordem era mantida por seus próprios fundamentos, que radicavam na autoridade que o julgador retomava. A tentativa de satisfazer a multidão estava esgotada. Pilatos (talvez) intuiu que melhor era ser amado do que temido, lógica que Maquiavel retomará quinze séculos depois, e que lhe valeu um nome próprio (Maquiavel) transformado em temido adjetivo (maquiavélico).

Zagrebelsky repudiou a decisão tomada com base na multidão, que "tinha pressa, era atomística, mas totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva e, portanto, extremista e manipulável". "A crucificação e a democracia" é um livro que ajuda a entender o que parece incompreensível. Exige leitor atento, desarmado de preconceitos, interessado nas relações entre Direito e Religião, relativamente bem informado em temas de Teologia e, principalmente, preocupado com os efeitos das decisões judiciais que decorrem de pressões populares que amanhã ninguém sabe de onde vieram.

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