Opinião

A mediação e a conciliação na nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas

Autor

  • Andressa Garcia

    é advogada em societário e M&A do escritório Silveiro Advogados e mestre em Direito Privado pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

13 de março de 2021, 15h50

Em 23 de janeiro deste ano, entrou em vigor a Lei nº 14.112/2020, que atualizou a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária.

Este artigo visa a analisar as previsões da lei que dispõem sobre a mediação e a conciliação envolvendo a recuperação de empresas. Especificamente, este estudo abordará o artigo 22, letra "j", que acrescenta o dever do administrador judicial em estimular a mediação e a conciliação em processos de recuperação judicial, e os artigos da Seção II- A (artigos 20-A a 20-D), que tratam da utilização da mediação e conciliação, antecedentes ou incidentais, nos processos de recuperação judicial.

Cabe apontar, em um primeiro momento, o contexto no qual a Lei nº 14.112/2020 entrou em vigor, sobretudo em razão das recentes mudanças e desafios causados pela pandemia do coronavírus, e no qual há consolidação dos meios alternativos de resolução de disputas.

Há mais de uma década o Brasil vem seguindo o caminho de diversos países, no sentido de estimular a solução autocompositiva das controvérsias, em especial por meio da mediação e da conciliação, adotando o "sistema multiportas" [1] e com o abandono da "cultura da sentença" [1] [2]. A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é considerada o marco inicial de mudanças de paradigmas em âmbito judicial [3], tendo instituído a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos, por meio da qual foram organizados os órgãos que fariam parte da operacionalização da mediação e da conciliação nos estados federados.

Em 2015, duas leis incluíram a perspectiva de solução de conflitos de forma consensual: o novel Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) e a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) [4]. Especificamente em relação à recuperação judicial, foi aprovado, em 2016, o enunciado nº 45 da 1° Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, prevendo que a mediação e a conciliação são compatíveis com a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, desde que observadas as restrições legais. Mais recentemente, em 2019, foi emitida a Recomendação nº 58 do CNJ, que estimula os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação judicial a promoverem a mediação, sempre que possível.

Apesar da existência de recomendações e da utilização da mediação de forma bem-sucedida em recuperações de empresas, tendo-se como caso emblemático o processo de recuperação judicial da Oi, até a entrada em vigor da Lei nº 14112/2020, não havia previsão legal expressa que tratasse da utilização dos meios consensuais de solução de conflitos em processos de recuperação judicial.

Apresentado o panorama legislativo no qual a nova Lei de Recuperação de Empresas entrou em vigor, não pode deixar de ser mencionado o reflexo que a pandemia do coronavírus causou nas empresas. Muitas delas, principalmente as pequenas e médias empresas, estão passando por dificuldades econômico-financeiras jamais imaginadas. Na segunda quinzena de agosto de 2020, 33,5% das empresas reportaram efeitos negativos da pandemia nos negócios, 32,9% indicaram diminuição em produtos ou serviços comercializados e 46,8% reportaram dificuldades para acessar fornecedores de insumos, matérias-primas ou mercadorias [5]. Aliada a isso, em setembro de 2020, a taxa de desocupação atingiu 14,4% da população brasileira [6]. Em comparação com 2019, 2020 teve aumento de 12,7% nos pedidos de falência e de 13,4% nos pedidos de recuperação judicial [7].

A negociação e a criatividade estão sendo utilizadas pelas empresas para superação da crise econômica mundial. Assim como houve o colapso do sistema de saúde, também o Poder Judiciário, conhecido por sua morosidade, pode colapsar. Nesse contexto, foi editada a Recomendação nº 71/2020 do CNJ, que propõe a criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) empresariais nos tribunais do país (a exemplo de TJ-SP, TJ-RJ, TJ-ES e TJ-RS), seguindo-se o pioneirismo da 2ª Vara Cível e da Fazenda Pública da Comarca de Francisco Beltrão, no Paraná [8], que criou o primeiro Cejusc de recuperação empresarial do Brasil. Esses núcleos foram implementados para evitar a judicialização de processos, com a utilização da mediação ou da conciliação na fase pré-processual, e com vistas à superação da crise pelas empresas, em decorrência da pandemia do coronavírus.

Assim, apesar de a Lei nº 14.112/2020 positivar, pela primeira vez, a utilização da mediação e conciliação em processos de recuperação judicial, a lei, em verdade, incorporou entendimentos e práticas que já estavam sendo estimulados e utilizados. Passa-se a elencar os artigos que tratam da mediação e conciliação.

A lei acrescenta que um dos deveres do administrador judicial é estimular, sempre que possível, a conciliação, a mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos relacionados à recuperação judicial e à falência, respeitados os direitos de terceiros (artigo 22, inciso I, letra "j", da Lei nº 11.101/2005). Essa previsão está em consonância com o artigo 3º, §3º, do CPC/15, segundo o qual "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial".

Apesar de o administrador judicial ter um papel de órgão auxiliar da justiça e não de representante das partes, seja da devedora ou dos credores, devendo atuar de forma imparcial, entende-se que, pelas características próprias de cada função, não cabe ao administrador exercer o papel de mediador de forma cumulada, na esteira do que prevê a Recomendação nº 58 do CNJ, no seu artigo 6º. Pode o administrador judicial, no entanto, auxiliar as partes no procedimento de mediação ou conciliação; contratar alguém na forma do artigo 22, I, letra "h", da Lei de Recuperação de Empresas, que atuará sob sua responsabilidade, desde que tenha autorização do juízo; sugerir o mediador, uma lista de mediadores ou uma câmara de mediação.

A nova Lei de Recuperação de Empresas também incluiu um capítulo específico sobre a mediação e conciliação antecedentes ou incidentais nos processos de recuperação judicial. Determina a lei que a conciliação ou a mediação devem ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição e, quando utilizadas, não devem ser suspensos os prazos previstos na Lei nº 11.101/2005, exceto se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou quando houver determinação judicial.

Na fase pré-processual ou incidental, podem ser objeto da mediação ou conciliação as seguintes matérias que envolvem a recuperação judicial:

— Disputas entre sócios e acionistas da sociedade em dificuldade ou em recuperação judicial;

— Litígios que envolvem credores extraconcursais ou credores não sujeitos à recuperação judicial, como os proprietários fiduciários de bens móveis ou imóveis, arrendador mercantil, promitente vendedor de imóvel com contrato irrevogável ou irretratável, inclusive incorporações imobiliárias, proprietário com contrato de compra e venda com reserva de domínio e credores de contratos de adiantamento a contrato de câmbio para exportação;

— Conflitos que envolvem concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos municipais, distritais, estaduais ou federais;

— Litígios que envolvem créditos extraconcursais contra empresas em recuperação judicial durante período de vigência do estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais;

— Na negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.

Caso preenchidos os requisitos para requerer pedido de recuperação judicial, pode a empresa postular tutela de urgência cautelar para suspensão das execuções já movidas contra ela, pelo prazo de até 60 dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurados em um Cejusc. Se a empresa apresentar pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, o período de suspensão será deduzido do período previsto no artigo 6º, §4º, da Lei nº 11.101/2005 (suspensão de 180 dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial).

É vedada a utilização da mediação e conciliação com o objetivo de discutir a natureza jurídica e a classificação de créditos, de forma semelhante ao que prevê o § 1º do artigo 2º da Recomendação nº 58 do CNJ, e sobre critérios de votação em assembleia-geral de credores.

As sessões de mediação ou conciliação podem ser realizadas virtualmente, caso disponível sistema compatível no respectivo Cejusc, medida que proporciona a celeridade e eficiência do processo, e que segue o modelo de reuniões à distância adotado durante a pandemia do coronavírus.

Deve o juízo do local do principal estabelecimento do devedor, ou da filial de empresa estrangeira, homologar o acordo entabulado na sessão de mediação ou conciliação.

Se requerida recuperação judicial ou extrajudicial em até 360 dias após firmado o acordo, serão reconstituídos os direitos e garantias do credor nas condições originalmente contratadas, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados. Dessa forma, posterior pedido de recuperação judicial apresenta-se como condição resolutiva do acordo firmado entre a devedora e os credores de créditos potencialmente concursais. Acredita-se que essa previsão visa a estimular a autocomposição em fase na qual já está instaurada a crise econômico-financeira, sem que a devedora tenha que ingressar com a ação recuperacional e sem que os créditos dos credores sofram os deságios do plano de recuperação judicial.

A mediação e a conciliação, por serem métodos consensuais e flexíveis, apresentam-se como instrumentos promissores de serem utilizados em recuperação judicial, principalmente pela complexidade do processo recuperacional, que envolve múltiplas partes e interesses, dependendo da capacidade de negociação dos envolvidos para que a crise econômico-financeira seja superada. Não bastasse isso, os custos envolvidos na mediação ou conciliação são bem menores se comparados com o processo judicial ou arbitral, sendo esse mais um benefício para a utilização desses métodos autocompositivos de solução de conflitos.

Para sua aplicabilidade em maior número, é importante que os profissionais que trabalham na área tenham qualificação técnica sobre a mediação e conciliação, além dos conhecimentos já desejados para quem lida com recuperação de empresas (contabilidade, direito, economia e administração).

Em síntese, com a união desses instrumentos, mediação ou conciliação e recuperação judicial, acredita-se que a prestação jurisdicional ocorrerá de forma mais célere, eficiente e menos onerosa, com a concretização de um dos princípios basilares da recuperação judicial, a preservação da empresa.

 


[1] O "sistema multiportas" surgiu em uma conferência realizada em 1976, nos Estados Unidos, apresentado pelo professor de Harvard, Frank Sander. O sistema parte da ideia de que, a partir de um conflito, as partes possuem uma gama de alternativas ao Poder Judiciário, como a mediação, a conciliação e a arbitragem. Levando em conta essas alternativas, é possível escolher qual é a mais adequada para a solução de um determinado litígio.

[2] Termo utilizado pelo professor Kazuo Watanabe, que acreditava que a “cultura da sentença” iria ser paulatinamente substituída pela “cultura da pacificação” (WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide de (Org.). Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. 1ª ed. São Paulo: DPJ, 2005. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3079662/mod_resource/content/1/1.1.%20Kazuo%20-%20Cultura%20da%20sentenca%20e%20da%20pacificao.pdf>. Acesso em: 16.fev.2021.

[3] Adolfo Braga Neto pondera que “a mediação deu seus primeiros passos no País na década de 90, quando especialistas estrangeiros, em seu maior número, americanos e argentinos, faziam frequentes visitas ao Brasil para ministrar palestras ou cursos de mediação em distintas partes do território brasileiro”. NETO, Adolfo Braga. Mediação de conflitos: conceitos e técnicas. In: SALLES, Carlos Alberto de; LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes; SILVA; Paulo Eduardo Alves da. Negociação, mediação, conciliação e arbitragem: curso de métodos adequados de solução de controvérsias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 147-186. p. 155/156.

[4] Durante o processo de aprovação da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015), o substitutivo do Projeto de Lei nº 7.169 de 2014, da Câmara dos Deputados dispunha que a medição não poderia ser aplicada em processos de recuperação judicial ou falência, o que foi retirado no texto final: “Artigo 3º Somente pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre matéria que admita transação. […] § 3º Não se submete à mediação o conflito em que se discute: I – filiação, adoção, poder familiar, ou invalidade de matrimônio; II – interdição; III – recuperação judicial ou falência”. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FB2C10CB36DA8436BDBB640C6D267C79.proposicoesWebExterno1?codteor=1230584&filename=PL+7169/2014>. Acesso em 16.fev.2021.

[5] Pesquisa Pulso Empresa, que verifica os impactos da Covid-19 na economia brasileira. Disponível em: <https://covid19.ibge.gov.br/pulso-empresa/>. Acesso em: 16/02/2021.

[6] Dados de 20/09/2020 a 26/09/2020 – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua realizada com apoio do Ministério da Saúde, que visa a verificar os impactos da pandemia da COVID-19 no mercado de trabalho brasileiro. Disponível em: <https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/>. Acesso em 16.fev.2021.

Autores

  • é advogada em societário e M&A do escritório Silveiro Advogados e mestre em Direito Privado pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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