Opinião

A PEC 186/2019 e as promoções no serviço público

Autor

  • Luiz Alberto dos Santos

    é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

12 de março de 2021, 19h27

A PEC 186/2019, nos termos aprovados pelo Senado Federal, e que será apreciada pela Câmara dos Deputados, é uma síntese das PECs 186/19, 187/19 e 188/19, apresentadas ao Senado pelo líder do governo, senador Fernando Bezerra.

Originalmente, as PECs previam medidas diversas para redução de direitos e consequente redução de despesas com o serviço público. Entre elas, estava prevista a possibilidade de redução salarial com redução de jornada em face, além do congelamento salarial e a suspensão de progressões e promoções, vedação de concursos e outras, sempre que fosse necessária a realização de operações de crédito para custear despesas correntes (regra de ouro).

Ao longo da tramitação no Senado, foi suprimida a previsão de redução salarial com redução de jornada, e os critérios para acionamento dos "gatilhos" foram ampliados. Na forma aprovada, as medidas de congelamento de despesas serão acionadas sempre que:

1) For declarado pelo Congresso, por solicitação do presidente, estado de calamidade pública de âmbito nacional, hipótese em que as vedações de aumento de despesas, em sua totalidade, vigorarão pelo período da duração da calamidade, para todos os entes, sendo obrigatória para a União e facultativa para Estados, DF e municípios. Contudo, caso os entes subnacionais não adotem todas as medidas previstas, não poderão receber garantias por qualquer outro ente da federação, de garantias em operação de crédito, nem realizar qualquer operação de crédito com outro ente da federação, ressalvados os financiamentos destinados a projetos específicos celebrados na forma de operações típicas das agências financeiras oficiais de fomento;

2) No caso da União, a despesa primária obrigatória alcançar 95% da despesa primária total, independentemente da relação entre despesa e receita, ou do alcance do teto de despesas fixado pela EC 95/2016; e

3) No caso de Estados, DF e municípios, a despesa corrente alcançar 95% da receita corrente, consideradas a totalidade das suas despesas (e não apenas de pessoal) e receitas (sem exclusão de qualquer parcela). Para esses entes, as medidas são facultativas, mas se não adotadas, aplica-se a mesma vedação prevista no item "a" ao final. E quando a relação despesa/receita alcançar 85%, o chefe do Executivo poderá adotar as medidas de contenção de despesas no âmbito do Executivo, cabendo ao Legislativo se manifestar sobre o ato em 180 dias, considerando-se rejeitado ato se não o fizer nesse prazo, prevalecendo, porém, as medidas até então adotadas.

Além dessas situações, a lei complementar de que trata o artigo 167 disporá sobre a sustentabilidade da dívida pública, e deverá especificar "medidas de ajuste, suspensões e vedações", estando ainda expressamente prevista a autorização, válida para os três níveis federativos, da aplicação das vedações previstas no artigo 167-A, ou seja, medidas de congelamento de despesas, especialmente com pessoal.

Por fim, no caso de calamidade pública, o artigo 167-F autoriza que lei complementar defina "outras suspensões, dispensas e afastamentos aplicáveis durante a vigência do estado de calamidade pública de âmbito nacional", o que pode vir a servir de pretexto, inclusive, para medidas ainda mais profundas de controle e redução de despesas, mas com duração limitada ao período da calamidade.

No que tange, especificamente, à vedação de promoções e progressões, cumpre esclarecer alguns aspectos dessa restrição de direitos.

A progressão e promoção são institutos básicos do sistema de carreiras previsto no artigo 39, caput da CF, e que é decorrência do regime jurídico único nele previsto. Trata-se de instrumentos que, em tese, devem refletir a aplicação de princípios meritocráticos, incentivando o servidor de carreira ao aperfeiçoamento e ao desempenho ao longo do período em que permanece no serviço público.

A progressão implica na elevação de um padrão ou referência de vencimento para outro, dentro da mesma classe da carreira ou plano de cargos, e é, via de regra, associada ao cumprimento de interstício (tempo de serviço no padrão atual), e avaliação de desempenho. Assim, o servidor "progride", a cada 12 ou 18 meses, em geral, segundo o seu desempenho aferido, não sendo incomum, porém, a progressão com base apenas em tempo de serviço, hipótese em que todos os servidores são "progredidos" periodicamente, até o último padrão da classe. O número de padrões por classe varia entre três a seis, em geral, mas, atingido o último padrão, encerra-se o direito à progressão. Há diversas situações em que a progressão funcional somente é deferida após o cumprimento do estágio probatório, ou seja, o servidor recém-nomeado permanece "estacionado" na carreira pelo prazo de três anos, e somente após esse prazo passa a receber progressões.

Já a promoção envolve a passagem de uma classe para a seguinte, para o servidor que tenha cumprido requisitos de tempo de serviço, avaliação de desempenho e, em alguns casos, a aprovação em cursos de aperfeiçoamento que são requisitos para a promoção, diferenciados em função da classe para a qual será promovido. Essa regra visa a tornar o sistema do mérito mais rigoroso, limitando o direito à promoção, pois o conceito está associado ao exercício de responsabilidades mais elevadas na carreira, ou de atribuições de maior nível de complexidade, ou seja, hierarquizando-se as classes da Carreira.

Algumas carreiras têm limitação numérica de vagas por classe, como ocorre na carreira de diplomata, na magistratura, no Ministério Público e nas Forças Armadas.

A Lei nº 11.890, de 24 de dezembro de 2008, definiu no seu artigo 157 que as carreiras enumeradas em seu artigo 154 [1] observariam quantitativos de cargos por classe, assim definidos, conforme a carreira: 1) 45% do total de cada cargo da carreira na classe A; 2) até 35% do total de cada cargo da carreira na classe B; e até 20% do total de cada cargo da carreira na classe Especial; ou 1) 30% do total de cada cargo da carreira na classe A; até 27% do total de cada cargo da carreira na classe B; até 23% do total de cada cargo da carreira na classe C; e 2) até 20% do total de cada cargo da carreira na classe especial. O artigo 158, porém, previu como regra de transição que até que fossem definidos por ato do Poder Executivo os percentuais obtidos na avaliação de desempenho individual a partir do qual o servidor poderia progredir com 12 ou 24 meses de efetivo exercício no padrão em que se encontrar, continuariam a ser observadas as regras até então vigentes.

Com a Lei n° 13.464, de 2017, que extinguiu o regime de subsídios para as carreiras tributária e aduaneira e de auditoria fiscal do trabalho, deixou de haver, no caso dessas carreiras, para qualquer efeito, a limitação fixada pela Lei n° 11.890, de 2008, relativa ao direito à promoção. Em tese, assim, todos os servidores dessas carreiras que cumpram os requisitos fixados em regulamentos específicos podem ser promovidos, além de fazerem jus à progressão, anualmente.

Na forma aprovada pelo Senado Federal, enquanto vigorarem as medidas de contenção de despesas, e além do "congelamento" salarial absoluto, sem o direito, sequer, à revisão geral anual, "fica suspensa a progressão e a promoção funcional em carreira de agentes públicos, excetuadas aquelas que implicarem provimento de cargo ou emprego anteriormente ocupado por outro agente", enquanto perdurar o descumprimento do limite de despesas fixado no artigo 109 do ADCT (95% da despesa obrigatória) ou no caso de calamidade pública.

Para esses fins, ficam vedados quaisquer atos que impliquem reconhecimento, concessão ou pagamento de progressão e promoção, não se derivando desta suspensão quaisquer efeitos obrigacionais futuros, salvo a concessão de promoção e progressão cujo respectivo interstício tenha se encerrado antes da entrada em vigor da suspensão. Decorrido o período de suspensão, os respectivos critérios anteriores para a sua concessão voltam a gerar efeitos, podendo ser computado resíduo ou fração de tempo que tenha se acumulado exclusivamente no período anterior à data de início do regime de que trata este artigo.

A mesma regra está prevista no §5º do artigo 167-A, que será aplicada também à União no caso de calamidade pública, mesmo que não haja qualquer excesso de despesas, e será aplicada quando o respectivo interstício se encerrar no exercício financeiro em que tenha se verificado o excesso de despesas.

Assim, uma vez aplicadas as medidas de suspensão, não mais poderão ser concedidas progressões ou promoções cujo direito viria a ser adquirido a partir de sua vigência, ou mesmo aquelas cujo direito tenha sido adquirido antes de sua declaração, mas no mesmo exercício financeiro, no caso de excesso de despesas.

No caso do artigo 109, será permitida a concessão de promoção e progressão cujo respectivo interstício tenha se encerrado antes da entrada em vigor da suspensão. O tempo de suspensão não será computado para nenhum fim, e apenas após o seu encerramento, seja pelo cumprimento do limite de despesas, seja pelo término da situação de calamidade pública, é que voltam a ser computados tempos de serviço para completar o interstício requerido, e concedidas promoções e progressões cujo direito venha a ser adquirido.

Trata-se de medidas que irão desorganizar, completamente, o fluxo das carreiras, pois haverá interrupções que poderão ser frequentes ou continuadas para a progressão e promoção dos servidores em geral, e uma carreira que, em princípio, poderia ser cumprida em 19 ou 20 anos até o servidor atingir o seu padrão final de vencimentos, poderá vir a ser tornar uma carreira sem previsão de cumprimento desse percurso.

A PEC 186, de 2019, porém, abre exceção a essas vedações quando prevê que a progressão e promoção poderá ser concedidas nos casos em que "implicarem provimento de cargo ou emprego anteriormente ocupado por outro agente".

Essa regra poderá ser aplicada, portanto, quando a carreira for estruturada em classes, e onde, para que algum servidor possa ser promovido, há a necessidade de vacância do cargo ocupado por outro membro da carreira, seja em decorrência de aposentadoria, exoneração ou falecimento.

Trata-se, como vimos, de um rol previamente delimitado pelo sistema de carreiras vigente em cada poder, que adotam regras diferenciadas, à mingua da lei que deveria regulamentar o atual artigo 39, caput da CF e o parágrafo único do artigo 10 da Lei nº 8.112, de 1990, o qual prevê que "os demais requisitos para o ingresso e o desenvolvimento do servidor na carreira, mediante promoção, serão estabelecidos pela lei que fixar as diretrizes do sistema de carreira na Administração Pública Federal e seus regulamentos".

No caso da carreira da magistratura, a sua estrutura prevê, expressamente, essa hierarquização, posto que cada vara ou instância têm número limitado de titulares, aos quais o acesso se dá por promoção. Já a carreira militar segue o princípio da hierarquia, em cada posto de comando é igualmente limitado, cabendo a promoção ao posto segundo regras rígidas e limites numéricos preestabelecidos. Por fim, o mesmo ocorre na carreira de diplomata, composta por seis classes hierarquizadas, em quantitativo decrescente de cargos, e onde a promoção a ministro de primeira classe, ministro de segunda classe, conselheiro e primeiro-secretário, se dá "por merecimento" [2], desde que cumpridos requisitos de qualificação e tempo de serviço, e observada a existência de vaga na classe.

Não se vislumbra o mesmo critério, porém, em carreiras como a advocacia pública, a Polícia Federal, o magistério superior e mesmo a auditoria fiscal, em que as promoções podem ser concedidas independentemente de vaga.

Foi esse elemento que levou a que, em setembro de 2020, o procurador-geral federal, por meio da Portaria nº 510, de 18 de setembro, concedesse promoção a 606 procuradores federais ao final da carreira. Os beneficiados pela promoção ingressaram em seus cargos entre 2007 e 2014, ou seja, servidores com menos de seis anos de efetivo exercício atingiram a última classe da carreira, por força de um regulamento que previa promoções alternadas por antiguidade e merecimento, a cada seis meses. Nos termos da regulamentação da carreira em vigor, o interstício exigido em cada classe para a promoção seria de três anos. Como a carreira e composta por apenas três classes, a promoção à última classe exigiria apenas seis anos de exercício, propiciando um curso de carreira extremamente curto. Embora fundada em ato normativo emanado de autoridade competente (Portaria nº 173, de 21 de março de 2016, que "disciplina a promoção na carreira de procurador federal"), em face da delegação legal contida na Lei nº 10.480, de 2002, que, no inciso V do §2° do artigo 11 atribui ao procurador-geral federal "disciplinar e efetivar as promoções e remoções dos membros da carreira de procurador federal", a repercussão da medida acabou por provocar a sua suspensão em 24/9/2020 [3], medida que ofendeu direito líquido e certo dos procuradores federais, e cujo deslinde caberá, efetivamente, ao Poder Judiciário. A rigor, nenhuma ilegalidade foi cometida, mas, nos termos da restrição estabelecida pela PEC 186/19, não será possibilitada medida dessa ordem, em nenhum caso, com base em fundamentação legal semelhante. Apenas e se a carreira for estruturada em classes, com número delimitado de vagas por classe, e onde o provimento derivado dependa da vacância de cargo já ocupado, é que poderá ser afastada a restrição.

Situação similar ocorreu em 2016, quando a Lei n° 10.660, de 28 de março de 2016, do Estado da Paraíba, resultante de medida provisória do governador do Estado, suspendeu as promoções e progressões funcionais previstas em lei para todas as categorias de servidores civis e militares no âmbito do Estado, o que foi validado pelo Tribunal de Justiça do Estado, que não viu ofensa a direito líquido e certo, mesmo quando os requisitos para a promoção foram cumpridos antes da vigência da norma.

Em 1999, o presidente da República editou a Medida Provisória nº 1.815, de 6 de abril, a qual suspendia a concessão de promoções e progressões funcionais a todo servidor da Administração Federal direta, das autarquias e das fundações. Nos termos do artigo 1º da MPV 1815, o período entre 8 de março de 1999 e 7 março de 2000 não seria considerado para os fins de promoção e de progressão funcional de todo servidor da Administração federal direta, das autarquias e das fundações públicas do Poder Executivo da União, ressalvada, porém, a carreira de diplomata.

Não obstante, ao apreciar o pedido de medida liminar na ADI n° 1.975-DF, relator o ministro Sepúlveda Pertence, o STF adotou a seguinte decisão:

"EMENTA: I. Promoção e progressão funcional: desconsideração ordenada por lei (MProv. 1.815/99, art. 1º) do período de um ano (março de 1999 e março de 2000) para os fins de promoção ou progressão dos servidores do Poder Executivo, salvo os diplomatas: plausibilidade da argüição de inconstitucionalidade.
1. Fragilidade da alegação de ofensa ao art. 246 da Constituição no trato da matéria por medida provisória, uma vez que – salvo para carreiras específicas (CF, 93, II, e 129, § 4º) – nem o texto original da Constituição, nem o que hoje vigora, por força da EC 19/98, cuidam da antiguidade como critério de promoção ou progressão funcional de servidores públicos.
2. É densa, porém, a plausibilidade da alegação de ofensa ao princípio da igualdade na lei – e, também, se se quiser, do substantive due process of law – uma vez que, sem abolir a promoção e a progressão por antiguidade, a norma questionada, só para determinada parcela do universo dos servidores públicos – eis que dela excluídos, além dos diplomatas e os militares, do Executivo, e os funcionários do Legislativo e do Judiciário – manda desconsiderar um ano de seu tempo de serviço: discriminação arbitrária.
(…)"
(grifo do autor).

Assim, quanto ao ponto, o STF considerou que a exceção estabelecida configurava discriminação arbitrária, pois lhe faltava o componente de generalidade que, em tese, poderia dar margem a sua validação, à luz do interesse público na contenção de despesas e da inexistência de direito adquirido, pelo servidor, a regra de seu regime jurídico.

O mesmo argumento, portanto, poderá vir a ser empregado para buscar-se pela via do Poder Judiciário, caso venha a ser aprovada a PEC 186/2019, a nulidade da vedação da contagem de tempo de serviço e de concessão de progressões e promoções, posto que abre caminho para que um número indeterminado, mas limitado, de servidores, seja contemplado, acarretando situação discriminatória.

Note-se, por fim, que a PEC 32/2020, a "reforma administrativa" do governo Bolsonaro prevê que passará a ser vedada a progressão ou promoção — mais uma vez, de servidor público e empregado público — com base apenas no tempo de serviço. Assim, ficam vedadas leis que permitam progressões ou promoções apenas com base em tempo de serviço, como ocorreu, em 2001, no caso da "carreira" de especialistas em meio ambiente com a Lei nº 10.410, alterada, porém, em 2014. Já no caso de militares, onde a antiguidade é o critério alternativo ao "merecimento", as promoções não serão afetadas por essa previsão constitucional, visto que o foco da PEC em questão são os servidores civis.

 


[1] Entre elas estão os cargos de Analista do Banco Central do Brasil e Técnico do Banco Central do Brasil, da Carreira de Especialista do Banco Central do Brasil; Auditor Federal de Finanças e Controle e Técnico Federal de Finanças e Controle; Analista de Planejamento e Orçamento e Técnico de Planejamento e Orçamento; Analista de Comércio Exterior; Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental; Analista Técnico e Agente Executivo da Susep; Analista da CVM e Agente Executivo da CVM; Inspetor da CVM; Técnico de Planejamento e Pesquisa, da Carreira de Planejamento e Pesquisa; Auditor Fiscal Federal Agropecuário; Especialistas e Técnicos em Regulação das Agências Reguladoras, Analista Administrativo e Técnico Administrativo das Agências Reguladoras.

[2] Lei n° 11.440, de 29 de dezembro de 2006, art. 51.

[3] Ver PRAZERES, L. AGU suspende promoção de procuradores federais, após repercussão negativa. O Globo, 24.09.2020. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/agu-suspende-promocao-de-procuradores-federais-apos-repercussao-negativa-24658647.

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