STF forma maioria para extinguir limite territorial em ação civil pública
4 de março de 2021, 19h03
Os efeitos de decisão em ação civil pública não devem ter limites territoriais. Caso contrário, haverá restrição ao acesso à justiça e violação do princípio da igualdade. Com esse entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta quinta-feira (4/3), para declarar a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985). O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.
O dispositivo, alterado pela Lei 9.494/1997, tem a seguinte redação: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".
O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, afirmou que, a partir da Lei da Ação Popular Lei 4.717/1965), começou um processo de construção legislativa e jurisprudencial, intensificado pela Constituição de 1988, para garantir maior efetividade ao sistema protetivo de direitos difusos e coletivos.
Segundo o ministro, a alteração de 1997 na redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública ocorreu na contramão dos avanços na proteção de direitos metaindividuais. A alteração "teve grave defeito de técnica legislativa", avaliou Alexandre. Isso porque confundiu os efeitos da abrangência e territorialidade da decisão com a imutabilidade e indiscutibilidade da coisa julgada.
"O juiz é ou não é competente para decidir uma questão? Se sim, a partir da decisão e da coisa julgada, os efeitos e a eficácia da decisão não se confundem com a limitação territorial. Os efeitos têm a ver com os limites da lide. Não se pode confundir limitação territorial de competência com os efeitos", apontou.
Uma vez fixada a competência de um caso, a decisão do juiz não pode ter seus efeitos limitados territorialmente, avaliou o relator. O artigo 16, sustentou, exige a propositura de ações em todos os territórios de pessoas lesadas, o que contraria o sistema brasileiro. Com isso, contraria os princípios da igualdade e da eficiência da prestação jurisdicional, opinou o magistrado. Nesse cenário, declarou, as pessoas que moram em lugares com acesso mais restrito à justiça ficam privadas de ter seus direitos assegurados.
Dessa maneira, Alexandre de Moraes votou por declarar a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com redação dada pela Lei 9.494/1997, e o consequente restabelecimento do texto original do dispositivo, que é o seguinte: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".
Esse é o primeiro item da tese proposta pelo ministro. O segundo estabelece que, "em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor". O dispositivo determina que, em casos de ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local na capital do estado ou do Distrito Federal, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
Por fim, o terceiro tópico da tese apresentada diz que, "ajuizadas múltiplas ações, firma-se a prevenção de juízo competente que primeiro conhecer de uma delas para o julgamento de todas as ações conexas".
O entendimento do relator foi seguido pelos ministros Cármen Lúcia, Nunes Marques, Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski.
Cármen Lúcia afirmou que o artigo 16 também viola o princípio da segurança jurídica, que exige que a decisão tomada em uma certa ação tenha efetividade e garantia.
Nunes Marques, por sua vez, analisou que os limites territoriais dos efeitos da decisão também prejudicam os réus, que ficam sujeitos a ser alvo de diversas ações semelhantes.
Conforme Edson Fachin, a limitação territorial dos efeitos da decisão contraria os princípios do devido processo legal coletivo, da igualdade e do acesso à justiça, e não é compatível com a natureza dos direitos coletivos em sentido amplo, seja na perspectiva pública ou privada.
Já Rosa Weber avaliou que restringir o alcance de uma decisão em ação civil pública aos habitantes de determinado território não é compatível com a Constituição.
Ricardo Lewandowski destacou que a reforma de 1997 na Lei da Ação Civil Pública restringiu indevidamente o alcance do processo coletivo, contrariando o princípio do acesso à justiça. O artigo 5º, XXXV, da Constituição estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Na visão de Lewandowski, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 16 evita a multiplicação desnecessária de demandas e aumenta a uniformização de entendimentos do Judiciário.
Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso declararam-se impedidos para participar do julgamento. Com o pedido de vista, ainda faltam os votos de Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Luiz Fux, o presidente da corte.
O processo
Com isso, os sete ministros votaram para negar o recurso extraordinário. Na origem, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) ajuizou ação coletiva contra os principais bancos do país para pedir a revisão de contratos de financiamento habitacional firmados por seus associados.
O juízo de primeiro grau determinou a suspensão da eficácia das cláusulas contratuais que autorizavam os bancos a executar extrajudicial as garantias hipotecárias dos contratos.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região acolheu recurso dos bancos e afastou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. O colegiado afastou a aplicação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, por entender que o direito reconhecido na causa não pode ficar restrito ao âmbito regional, pela amplitude dos interesses.
A decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendeu ser indevido limitar a eficácia de decisões em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante.
No STF, os bancos querem reverter o entendimento. Eles alegam que o STJ violou a cláusula de reserva de Plenário ao afastar a incidência da norma e não seguir o rito previsto para a declaração incidental de inconstitucionalidade, que exige o julgamento pelo Órgão Especial.
Entidade comemora
Diversas entidades de todo o país têm se mobilizado para defender a tese de que os efeitos das ações coletivas de consumo devem beneficiar a todos sem qualquer limite temporal ou territorial. Várias destes associações e juristas assinaram uma carta entregue no final do ano passado aos ministros do STF sobre a importância do julgamento.
De acordo com a advogada Lillian Salgado, presidente do Instituto Defesa Coletiva (que promove ações coletivas que envolvem Direito do Consumidor) a maioria dos ministros confirmou o entendimento de que a limitação territorial dos efeitos da decisão contraria a Constituição.
"A extensão de uma decisão nas demandas coletivas é instrumento fundamental para promover o acesso à justiça e a igualdade a todos aqueles afetados por um único ato ou evento, de forma que restrições de natureza territorial violam garantias fundamentais constitucionais como a isonomia e a segurança jurídica."
Para o professor Camilo Zufelato, os ministros do Supremo avaliaram que a restrição territorial "implicaria um sério retrocesso na efetividade da tutela coletiva e estimularia a desigualdade".
Já a Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), em nota, "avalia que a constitucionalidade do artigo sendo julgado pelo garante racionalidade jurídica e estabilidade ao ambiente de negócios, sem comprometer investimentos necessários no setor".
"Planos de saúde funcionam baseados em compartilhamento de riscos. Logo, qualquer medida que impacte e aumente incertezas, como neste caso, afeta a precificação e, consequentemente, o valor cobrado dos beneficiários."
"As decisões de instâncias inferiores da Justiça devem ter repercussão apenas em sua área de abrangência territorial, respeitando as características regionais das relações entre as operadoras, seus clientes e fornecedores. Apenas as decisões de tribunais superiores devem ter repercussão geral, como já consagrado na prática judiciária."
Já Isabela Pompilio, sócia da área de contencioso de TozziniFreire Advogados, "tal entendimento poderá ensejar uma espécie de competição entre os sujeitos legitimados à propositura das ações civis públicas, na busca pelo ajuizamento da primeira demanda, que poderá se dar até por motivos políticos e, sendo feitas a toque de caixa, mal instruídas, sem as devidas investigações preliminares sobre os fatos envoltos nas causas". "Novamente observam-se prejuízos aos próprios beneficiários das ações."
RE 1.101.937
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