Escritos de Mulher

Sobre a criminalização da democracia

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

3 de março de 2021, 18h18

No final de fevereiro, foi noticiado o recebimento de denúncia contra Guilherme Boulos e mais dois membros de movimentos populares. O crime imputado é o previsto no artigo 346 do Código Penal, conhecido como "supressão ou dano de coisa própria em poder de terceiro", e que tem a seguinte dicção: "Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção"

Spacca
Refere-se ao fato ocorrido em 16/4/2018, quando vários manifestantes estiveram no chamado tríplex do Guarujá. Parte ingressou e permaneceu no imóvel por cerca de três horas e teria causado danos na porta de entrada e amassado a porta de um banheiro, valorado em cerca de T$ 1 mil, enquanto outra parte realizou manifestação do lado de fora do edifício.

Dois jornalistas da Folha de São Paulo que estiveram no imóvel com intenção de cobrir o fato também foram foco da investigação, mas o Ministério Público acabou por requerer o arquivamento em relação a ambos, o que foi acolhido.

A denúncia foi ofertada, do mesmo modo, contra Luiz Inácio Lula da Silva, pois ele disse em ato público, realizado em São Paulo, com cerca de 50 mil pessoas, "se é meu, ocupem". A denúncia contra Lula foi arquivada em janeiro de 2020 pela mesma juíza, que fundamentou a decisão na impossibilidade de vincular tal frase ao ato realizado meses depois no tríplex. Aliás, nem seria preciso qualquer esforço para a compreensão de uma simples figura e retórica de linguagem.

O crime imputado é classificado como sendo crime próprio, ou seja, o tipo penal exige que o autor tenha determinada característica ou condição. No caso, a lei exige que o autor do crime seja o proprietário da coisa, mas tal não significa que não possa haver coautoria ou participação.

Sem adentrar ao tema da propriedade do imóvel, da autoria, das teses defensivas ou provas, o fato é que a juíza rejeitou a denúncia em relação a Lula, ou seja, desapareceu da narrativa dos fatos a condição indispensável para a caracterização do delito. Não é possível falar em coautoria ou participação se nenhum dos agentes cumpre o requisito estabelecido na lei para caracterizar o crime. Se não há proprietário, não há de se falar em participação ou coautoria em quaisquer de suas modalidades.

Porém, o que mais chama a atenção nesses fatos é a criminalização dos movimentos sociais e das liberdades, seja pelo viés dos jornalistas, seja em relação aos eventuais participantes do ato.

Em relação aos jornalistas, ainda que o procedimento tenha sido arquivado, fica evidente que a investigação criminal é uma forma de pressão indevida, que abala os pilares da democracia, mecanismo usado cada vez mais. Eles estiveram no lugar das manifestações, atuando profissionalmente e ficaram com a espada na cabeça até o arquivamento.

A nossa democracia tem conteúdo estabelecido, com grande relevo, no artigo 5º da Constituição Federal, no qual encontramos a normativa central das liberdades.

No nosso tema, a carta estabeleceu proteção da manifestação, do pensamento, da criação, a expressão e a informação e, ainda, determinou que nenhuma lei poderá ter dispositivo que possa embaraçar a plena liberdade de informação jornalística, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (artigo 220).

Cabe ao Judiciário tornar estas liberdades uma realidade. O STF tem decisões paradigmáticas no tocante à atividade jornalística, como a que protege o sigilo da fonte, não permite que seja cerceada a liberdade de imprensa etc.

Em relação aos manifestantes, ainda, ressalto que para a prática do crime seria necessária a presença do elemento subjetivo, que na espécie é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de produzir dano em imóvel próprio.

Se os manifestantes tivessem intenção real de danificar, isso seria realizável, com cerca de 40 pessoas, que ao que parece estiverem no tríplex por três horas. Mas os vestígios são exclusivamente de danos na porta, próprios para o ingresso no local, para realização da manifestação. Forçoso reconhecer que o ato de protesto foi eficaz, pois muitos, como eu, devem ter na lembrança o grito dos manifestantes: "Aqui está o povo sem medo, sem medo de lutar! E a verdade é dura, o tríplex não é do Lula", junto com as imagens do tal apartamento, objeto central  de uma das ações da "lava jato", que a cada dia traz mais perplexidades.

É claro que o grupo de pessoas que esteve no tríplex não tinha intenção alguma de danificar o imóvel, queria denunciar o que entendiam ser uma farsa judicial, através de suas falas, bandeiras e imagens do tríplex.

Temos decisões referenciais na órbita da Justiça que sinalizam para a necessidade de distinção de uma forma de manifestação, protesto e pressão democrática com uma figura delituosa.

A "criminalização" dos movimentos sociais, aqui entendida em seu sentido amplo, indica um mecanismo indevido do controle do Estado, que foge dos parâmetros constitucionais, ainda que use instrumentos previstos em lei. Ela se dá de forma muito particular no cerceamento das manifestações e dos protestos, que são a exteriorização da liberdade de expressão, pedra fundamental da democracia.

Temas dos mais sensíveis, a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), indicou no documento "Marco Jurídico sobre o Direito à Liberdade de Expressão" as suas três funções primordiais: a) traz em si a virtude que acompanha e caracteriza os seres humanos: a virtude única de pensar o mundo, de comunicar-se com outros para construir um modelo de sociedade; b) tem uma relação estrutural com a democracia. Estreita, indissolúvel, essencial, fundamental para fortalecer o funcionamento do sistema democrático pluralista, mediante a proteção e o fomento da livre circulação de informações, ideias e expressões de toda índole; c) é uma ferramenta-chave para o exercício dos demais direitos fundamentais.

Infelizmente, a criminalização encontra no Judiciário a sua maior ferramenta e por tal o Brasil teve sua primeira condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em caso emblemático de processo de criminalização dos movimentos sociais, que se intensifica a cada dia no Brasil.

Tratou-se do caso dos grampos telefônicos de membros do MST, com autorização judicial, e sua divulgação indevida. Deu-se em razão das violações praticadas pelas mãos do Judiciário. A corte considerou que houve violação do direito à vida privada, à honra, à reputação, à liberdade de associação, às garantias e à proteção judicial.

Todas as formas de criminalização têm um sentido real e simbólico e objetivam paralisar a atuação cidadã e bloquear as lutas sociais por direitos.

Nas mãos do Poder Judiciário está a manutenção da higidez constitucional e a afirmação do Estado democrático de Direito.

Finalizando, veio à mente o desenho "Sol de Justiça", de Goya, que está no Museu do Prado. Lafuente Ferri comenta o quadro e diz que a luz não é somente da liberdade e da lei. Com elas devem advir a Justiça simbolizada pela balança cercada de um esplendor luminoso, que dissipa a obscuridade. Do lado esquerdo do desenho vemos que a população recebe a claridade com êxtase, enquanto que aqueles que se encontram do lado direito e representam os partidários de um velho regime recebem contritos.

Esperemos que o "Sol da Justiça" permita que se faça justiça, para que nossos tempos não sejam de obscurantismo, mas de democracia!

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