Opinião

O julgamento dos embargos declaratórios no RE nº 574.706

Autor

  • Kiyoshi Harada

    é jurista presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

20 de maio de 2021, 10h33

1) Introdução
O tema que envolve uma disputa bilionária é bastante controvertido. Os empresários contam com o assessoramento de um verdadeiro batalhão de profissionais da mais alta competência, bastantes conhecidos no mundo do Direito Tributário.

Por vários anos defendemos a tese da inclusão de valores de tributos indiretos na base de cálculo de outros tributos como custo de mercadorias e de serviços, como acontece com os valores da matéria-prima, das despesas com a folha e a margem de lucro do comerciante que servem de parâmetros para a fixação de preços.

Contudo, com a decisão da Corte Suprema, por maioria de votos, em sede de repercussão geral em sentido contrário curvamo-nos ao decidido pelo STF, passando a sustentar que, por coerência, deveria excluir também os valores das contribuições sociais da sua própria base de cálculo, pois essas contribuições igualmente não são mercadorias passíveis de faturamento, como se disse em relação ao ICMS incluído na base de cálculo dessas contribuições sociais.

Porém, fiel à doutrina externada em livros de nossa autoria, jamais patrocinamos causas da espécie, apesar de tentadores os honorários oferecidos.

Na verdade, o regime de tributação por dentro, que vigora entre nós desde o Brasil Império, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, no Japão e em outros países adiantados, não é compatível com a tese da exclusão do valor do tributo da sua base de cálculo ou da base de cálculo de outros tributos.

Após a decisão do STF em sede de repercussão geral, a nossa discordância limita-se ao critério de exclusão do ICMS contido na base de cálculo do PIS-Cofins.

2) Exame de dispositivos pertinentes e jurisprudência a respeito
Dispõe o artigo 13 da Lei Complementar nº 87/1996 que rege nacionalmente o ICMS:

"Artigo 13  A base de cálculo do imposto é:
(…)
§ 1º. Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:
I – o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle".

A constitucionalidade desse regime de tributação foi confirmada pelo STF:

"Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS: inclusão no valor da operação ou da prestação de serviço somado ao próprio tributo. Constitucionalidade. Recurso desprovido" (RE no 212.209, relator ministro Marco Aurélio, relator p/ acórdão: ministro Nelson Jobim, DJ de 14-2-2003).

Posteriormente, a EC nº 33/2001 acrescentou a letra "i" ao inciso XII do §2º do artigo 155 da CF para consignar que cabe à Lei Complementar:

"i) Fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço".

Na vigência dessa EC no 33/01 o STF decidiu pela constitucionalidade da incidência do ICMS sobre si próprio, nos autos do recurso extraordinário julgado sob o rito de repercussão geral, conforme ementa abaixo:

"1. Recurso extraordinário. Repercussão Geral.
2. Taxa Selic. Incidência para …
3. ICMS. Inclusão do montante do tributo em sua própria base de cálculo. Constitucionalidade. Precedentes. A base de cálculo do ICMS, definida como o valor da operação da circulação de mercadorias (artigo 155, II, da CF/1988, c/c arts. 2o, I, e 8o, I, da LC 87/1996), inclui o próprio montante do ICMS incidente, pois ele faz parte da importância paga pelo comprador e recebida pelo vendedor na operação.
(…)
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento" (RE no 582.461-RG/SP, relator ministro Gilmar Mendes, DJe de 18/8/2011).

3) Pacificação da tese da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins
Contudo, o STF, intérprete máximo da Constituição, decidiu em sede de repercussão geral que o ICMS deve ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins, conforme ementa abaixo, pelo que não cabe mais discussão a respeito:

"Ementa: recurso extraordinário com repercussão geral. Exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins. Definição de faturamento. Apuração escritural do ICMS e regime de não cumulatividade. Recurso provido.
1) Inviável a apuração do ICMS tomando-se cada mercadoria ou serviço e a correspondente cadeia, adota-se o sistema de apuração contábil. O montante de ICMS a recolher é apurado mês a mês, considerando-se o total de créditos decorrentes de aquisições e o total de débitos gerados nas saídas de mercadorias ou serviços: análise contábil ou escritural do ICMS.
2) A análise jurídica do princípio da não cumulatividade aplicado ao ICMS há de atentar ao disposto no artigo 155, § 2º, inc. I, da Constituição da República, cumprindo-se o princípio da não cumulatividade a cada operação.
3) O regime da não cumulatividade impõe concluir, conquanto se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, não se incluir todo ele na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal. O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da Cofins.
4) Se o artigo 3º, § 2º, inc. I, in fine, da Lei nº 9.718/1998 excluiu da base de cálculo daquelas contribuições sociais o ICMS transferido integralmente para os Estados, deve ser enfatizado que não há como se excluir a transferência parcial decorrente do regime de não cumulatividade em determinado momento da dinâmica das operações.
5) Recurso provido para excluir o ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins. (RE nº 574.706/PR, relator ministro Cármen Lúcia, J. em 15-03-2017)".

4) Interposição de embargos declaratórios pela Fazenda pleiteando efeitos prospectivos
Foram interpostos embargos declaratórios para pleitear modulação de efeitos.

No julgamento do último dia 13, o Plenário da Corte Suprema, por oito votos contra três, conheceu dos embargos declaratórios e adotou uma solução intermediária. Em relação aos contribuintes que ingressaram com a ação ou reclamação administrativa contra a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS-Cofins até 15/3/2017, reconheceu-se o direito a restituição do PIS-Cofins paga a mais nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação ou reclamação administrativa. Em relação aos contribuintes que não ingressaram com a ação somente a partir da data do julgamento do RE nº 574.706, em 15/3/2017, poderão fazer jus à restituição da diferença resultante da exclusão do ICMS.

Outrossim, filiando-se à corrente majoritária da doutrina especializada o STF fixou o critério de exclusão baseado no valor do ICMS destacado, objeto de análise no tópico seguinte.

5) Posicionamento da doutrina majoritária no sentido da exclusão do valor destacado do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins
Juristas de renome sempre sustentaram que o acórdão embargado não padecia dos vícios de omissão, contradição ou obscuridade, pelo que não caberiam embargos declaratórios que não são meio hábil para buscar eventual modulação de efeitos. Sustentavam que o acórdão foi claro em determinar a exclusão do ICMS destacado em cada nota fiscal, conforme esclarecido no julgado do STF que alude à exclusão do ICMS transferido integralmente para os estados. Não é o que resulta do item 5 da ementa desse acórdão.

E passavam a demonstrar como é feito o pagamento do ICMS não cumulativo, sustentando que todo o montante do imposto destacado na nota fiscal deve ser recolhido quer em moeda corrente (quando não há crédito a ser apropriado), quer em créditos, ou ainda parte em dinheiro e parte em crédito. E finalizavam o raciocínio no sentido de que em todas essas hipóteses o débito do ICMS a recolher é sempre o valor destacado em nota fiscal.

6) O equívoco da doutrina majoritária
Em termos de apuração do ICMS a pagar é absolutamente correta a argumentação exposta no item antecedente.

Efetivamente, é exatamente assim que todos os contribuintes do ICMS procedem para calcular o imposto a pagar, ou o crédito a ser transferido para o período subsequente. Somam-se os créditos gerados pelas entradas de mercadorias em determinado período, e subtraem-se os débitos resultantes de mercadorias saídas do mesmo estabelecimento durante o mesmo período. A diferença a maior representa o débito do imposto a ser recolhido no aludido período, e a diferença a menor representa o crédito do imposto a ser transferido para o período subsequente.

Agora, pergunto, o que tudo isso tem a ver com a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS-Cofins? Não se trata de repetir o ICMS pago a mais, porém, repetir o que foi pago a mais a título de PIS/Cofins em razão da indevida inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins. O ICMS destacado é aquele que resulta da aplicação da alíquota de 18% sobre o valor da receita bruta, isto é, sem exclusão do ICMS contido na base de cálculo das contribuições sociais que o STF mandou excluir.

Ora, o STF, ainda que tenha pensado de forma diferente, na hora de redigir o acórdão deixou consignado no seu item 5 o seguinte: "Recurso provido para excluir o ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins".

Não se determinou a exclusão do ICMS destacado, pago ou a pagar, que é uma questão que interessa apenas e tão somente à esfera tributária dos Estados.

Depreende-se do acórdão do STF que o ICMS contido na base de cálculo do PIS/Cofins deve ser excluído, antes de aplicar sobre ela a alíquota de 3% ou de 7,6% conforme a hipótese.

É uma operação que precede o destaque do ICMS na nota fiscal que é feito apenas e tão somente para efeitos contábeis-fiscais, a fim de propiciar ao adquirente da mercadoria (contribuinte do imposto) a apropriação do crédito da operação. Esse destaque, coincidentemente, se faz a razão de 18%, mas se for à base de 30%, 50% ou 100% o resultado será absolutamente idêntico. Tanto faz creditar R$ 100 e debitar R$ 100, como creditar R$ 18 e debitar R$ 18.

A decisão de excluir o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins é matéria jurídica, e essa questão foi superiormente decidida pelo STF, pelo que não cabe qualquer discussão a respeito.

Contudo, como fazer essa exclusão é matéria que foge da alçada dos operadores do direito, porque envolve conhecimentos contábeis e matemáticos.

Deve-se fazer o cálculo do ICMS por dentro para saber o exato montante desse imposto que está contido na base de cálculo das contribuições sociais. Não é tarefa para juristas, ministros ou advogados, mas missão do contabilista afeito a esse tipo de cálculos. Apreendi a fazer esses cálculos na Divisão de Contabilidade do Departamento de Desapropriações da Prefeitura de São Paulo, que dirigi em duas oportunidades. Aquele departamento era o encarregado de calcular o valor atualizado de centenas de precatórios judiciais expressos em diferentes moedas: cruzeiro, cruzado e cruzados novos. Envolvia exatos 32 cálculos aritméticos em época em que não havia facilidade hoje propiciada pela moderna informática. Aprendi também calcular a fixação de preços de mercadorias e serviços, bem como o valor de tributo indireto embutido nesses preços chegando a um resultado assustador, que o consumidor não sabe, nem consegue descobrir. O aprendizado evitou que eu ordenasse o pagamento de precatórios por valores superiores aos efetivamente devidos.

Com base nos conhecimentos extrajurídicos que adquiri faremos uma demonstração do cálculo do ICMS por dentro, para descobrir o exato valor do ICMS contido na base de cálculo do PIS/Cofins. Tomemos, por exemplo, uma mercadoria faturada por R$ 100. No cálculo por fora a operação é simples, bastando aplicar 18% sobre o valor de R$100 resultando em R$ 18.

Todos afirmam que o cálculo do ICMS por dentro conduz a uma alíquota de 21,95%, mas poucos sabem fazer os cálculos para se chegar a esse percentual.

Passemos, pois, a fazer o cálculo por dentro do ICMS partindo da mercadoria no valor de R$ 100.

1) R$ 100/0,82 (100%-18%) = R$ 82 (preço da mercadoria sem imposto);

2) R$ 100 – R$ 82 = R$ 18 (valor do ICMS embutido no preço);

3) R$ 100/0,82 = R$ 121,95 (valor total da nota fiscal);

4) R$ 121,95 x 18% = R$ 21,95 (ICMS destacado na nota fiscal)

5) R$ 21,95/R$ 100 x 100% = 21,95% (alíquota real do ICMS);

6) 21,95% – 18% = 3,95% (diferença entre alíquota nominal e alíquota real).

Essa operação deve ser repetida em relação a cada nota fiscal, para no final do período apurado encontrar a diferença a ser restituída mediante o confronto do "novo valor" das contribuições sociais, resultante da exclusão do ICMS, com o valor total pago dentro do mesmo período.

No caso de energia elétrica tributada com alíquota de 25% o seu cálculo por dentro conduz aos exatos 33,333% de alíquota real.

No critério de exclusão do imposto com fundamento no valor do ICMS destacado na nota fiscal há um desconto de 3,95% a mais do que aquele ICMS contido na base de cálculo. O valor destacado, como antes demonstrado, não está contido na base de cálculo.

Verifica-se, portanto, que apesar de difícil operacionalização para quem não está habituado a fazer cálculos matemáticos, esse cálculo se impõe para fazer a exclusão de forma justa para o fisco e para o contribuinte. Nenhum centavo a mais, nenhum centavo a menos do que o realmente devido segundo as regras da ciência contábil ou matemática.

É claro que a exclusão do ICMS destacado na nota fiscal, que não está incluído no preço da mercadoria, vale dizer, na base de cálculo do PIS-Cofins, é prático e de fácil execução. No entanto, a exclusão por essa forma contraria a dicção constitucional da letra "i", do inciso XII, do § 2º, do artigo 155 da CF de início transcrita. Não se pode excluir aquilo que está fora do campo de exclusão. Nunca é demais repetir: o destaque incide sobre a receita bruta, sem a prévia exclusão do ICMS nela contido que o STF mandou excluir. E esse destaque é para mero efeito contábil-fiscal para possibilitar a apropriação do credito pelo adquirente da mercadoria e assegurar o princípio constitucional da não cumulatividade do imposto.

Certo ou errado, foi o que ficou decidido soberanamente pelo Plenário do STF e a decisão deverá ser cumprida, a menos que a Fazenda Nacional consiga a revisão do critério de exclusão do ICMS contido na base de cálculo, como consignado no item 5 da ementa do acórdão proferido no RE nº 574.706. Ao não estender o efeito ex tunc a todos os contribuintes em geral o impacto nas finanças da União será menor do que o antes estimado. Se a corte tivesse adotado outro critério de exclusão teria que modular os efeitos para colocar a salvo aqueles que fizeram a exclusão pelo valor destacado em cada nota fiscal.

Como de hábito, respeitamos as opiniões em contrário, mas os meus 56 anos de exercício ininterrupto da advocacia, sendo 20 anos na advocacia pública, e minhas 35 obras jurídicas publicadas me credenciam a manifestar a minha respeitosa discordância face a doutrina majoritária. E essa discordância é manifestada única e exclusivamente por amor ao Direito que vimos cultuando ao longo de nossa existência.

Autores

  • é presidente do Ibedaft, especialista em Direito Tributário pela USP e ex-procurador chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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