Opinião

Julgamento com perspectiva de gênero no contexto da Lei Maria da Penha

Autor

  • Alice Bianchini

    é advogada vice-presidente da ABMCJ/Nacional conselheira de notório saber do CNDM doutora em Direito pela PUC-SP e autora do livro Lei Maria da Penha 2021 ed. Tirant do Brasil.

18 de maio de 2021, 13h36

A importância da perspectiva de gênero na análise jurídica da Lei Maria da Penha, tal qual se deu no momento da sua elaboração, é imprescindível para que os objetivos nela traçados sejam alcançados. Isso porque a busca da solução mais acertada ao caso concreto aplicada a processos judiciais que envolvam a condição da mulher exige de todos os atores jurídicos e não jurídicos um conhecimento profundo das questões de gênero. Ademais disso, é necessário dominar o manejo dos instrumentos destinados a anular, ou pelo menos amenizar, injustiças, discriminações, preconceitos e estereótipos que vicejam na sociedade em relação às mulheres. Para tanto, torna-se imperioso, entre outras coisas, julgar com perspectiva de gênero, que, como bem elucida a Suprema Corte de Justicia de La Nación do México:

"Implica fazer real o direito à igualdade. Responde a uma obrigação constitucional e convencional de combater a discriminação por meio da atividade jurisdicional para garantir o acesso à justiça e remediar, em caso concreto, situações assimétricas de poder. Assim, o Direito e suas instituições constituem ferramentas emancipadoras que tornam possível que as pessoas desenhem e executem um projeto de vida digna em condições de autonomia e igualdade" (Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2013) [1].

Com vistas a tal preocupação, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), por meio da Comissão Ajufe Mulheres (instituída pela Portaria 05/17), elaborou no ano de 2020 o documento "Julgamento com Perspectiva de Gênero: um guia para o direito previdenciário". De acordo com o guia mencionado, "julgar com perspectiva de gênero significa adotar uma postura ativa de reconhecimento das desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais a que as mulheres estão e estiveram sujeitas desde a estruturação do Estado, e, a partir disso, perfilhar um caminho que combata as discriminações e as violências por elas sofridas, contribuindo para dar fim ao ciclo de reprodução dos estereótipos de gênero e da dominação das mulheres" [2].

Também atento a tais questões, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no mesmo ano de 2020, confeccionou a Recomendação 79, dirigida aos Tribunais de Justiça dos estados, no sentido de que realizem "capacitação em direitos fundamentais, desde uma perspectiva de gênero, de todos os juízes e juízas atualmente em exercício em Juizados ou Varas que detenham competência para aplicar a Lei nº 11.340/2006, bem como a inclusão da referida capacitação nos cursos de formação inicial da magistratura".

Não obstante todas as importantes preocupações e ações trazidas pelo Poder Judiciário, a pesquisa "O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres", elaborada pelo IPEA/CNJ, no ano de 2019, aponta que em relação ao papel mais efetivo dos/as participantes do Poder Judiciário no que tange, inclusive, à promoção de políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, subsiste uma inequívoca resistência de parte dos/as magistrados/as [3].

Tal constatação torna ainda mais imperioso que no momento de aplicação da Lei Maria da Penha há de se levar em conta a perspectiva de gênero, bem distante, portanto, de uma atuação neutra quanto ao tema.

Aliás, tal previsão de não neutralidade encontra-se, inclusive, em documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário. É o que ocorre em relação à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher (Cedaw), citada no preâmbulo e no artigo 1º da Lei Maria da Penha. Seu artigo 4º estabelece que:

1) Medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerarão discriminação;

2) De nenhuma maneira a utilização de tais medidas especiais implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais;

3) Essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançados.

Na atualidade, nem toda discriminação é proibida ou desvaliosa para o ordenamento jurídico. Um exemplo de descriminação positiva é a Lei Maria da Penha. Ela constitui-se em um critério de equiparação desigual igualitário e representa uma das medidas apresentadas pelo Estado para permitir que ocorra o aceleramento da igualdade de fato entre o homem e a mulher, circunscrita aos casos de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto, já que o alcance da lei é limitado.

A máxima tratar os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual representa um reconhecimento de que os indivíduos que se estabeleceram no mundo em condições desiguais não podem, por mera declaração de vontade, obter condição de vida igual equivalente aos que gozam de vantagem, sejam elas quais forem. Daí a necessidade de discriminações positivas ou ações positivas, consubstanciadas em políticas públicas que objetivem concretizar materialmente o discurso relevante, porém vazio, de igualdade, com o objetivo de mitigar os efeitos das discriminações que heranças de costumes passados insistem em manter no presente, sem nenhum argumento ético que as justifiquem.

As peculiaridades da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como os números absurdamente elevados, clamam pela utilização de instrumentos eficazes e enérgicos, mesmo que, para tanto, tenham-se que se sacrificar, em condições específicas, direitos, garantias e liberdades.

Tratando diretamente do Poder Judiciário, a já mencionada Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher (Cedaw) estabelece expressamente as seguintes obrigações:

"Todos os órgãos judiciais devem abster-se de praticar qualquer ação ou prática de discriminação ou violência de gênero contra as mulheres; e aplicar rigorosamente todas as disposições de Direito Penal que punam essa violência, garantindo que todos os procedimentos legais em casos envolvendo alegações de violência de gênero contra as mulheres sejam imparciais e justos e não sejam afetados por estereótipos de gênero ou interpretações discriminatórias de disposições legais, inclusive de direito internacional. A aplicação de noções preconcebidas e estereotipadas sobre o que constitui violência de gênero contra as mulheres, quais deveriam ser as respostas das mulheres a essa violência e o padrão de prova exigido para sustentar sua ocorrência pode afetar o direito das mulheres ao gozo da igualdade perante a lei, ao julgamento justo e ao direito a uma reparação efetiva".

E ainda recomenda que o Estado-parte implemente várias medidas preventivas em relação à violência contra as mulheres, incluindo a de "fornecer capacitação, educação e treinamento obrigatórios, recorrentes e efetivos para membros do Judiciário (…) para capacitá-los a adequadamente prevenir e enfrentar a violência de gênero contra as mulheres" [4].

Todas as preocupações acima mencionadas mostram que, ao se verificar a inexistência real da igualdade a nível internacional e em muitos países democráticos são estabelecidas medidas de ação positiva para corrigir as situações desequilibradas como consequência de práticas ou sistemas sociais discriminatórios [5], da qual a Lei Maria da Penha é um ilustre exemplo, e por meio da qual o Poder Judiciário (como também todo o Sistema de Justiça) é chamado para uma atuação específica, efetiva e abrangente.

Explica Tania Teixeira Laky de Sousa que o feminicídio "apresenta-se como o culminar de um processo continuado de práticas de dominação e submissão sobre as mulheres, onde, a cada violação de direitos e de ofensa à dignidade, se sucedem outras violações. A este processo corresponde a perda de referenciais na relação entre sujeitos, onde a desigualdade de poder entre eles resulta na submissão reiterada e sistemática e na perda de direitos dos dominados ao ponto da depreciação de seu direito à vida" [6]. As circunstâncias, portanto, que necessitam ser percebidas e valoradas negativamente e nessa condição explicitadas são: dominação, discriminação, menosprezo, ódio, despeito, represália, opressão, subjugação, sexismo, misoginia, violência reiterada, desumanização, hierarquização, ofensa à dignidade da pessoa humana, restrição de direitos, possessividade, controle etc.

As circunstâncias acima mencionadas podem ser verificadas nas estatísticas encontradas no Brasil. Em São Paulo, um levantamento feito pela Folha de S.Paulo, com base nos dados disponibilizados pela Delegacia de Defesa da Mulher (BOs registrados de abril a novembro de 2020), mostra que "sete em cada dez episódios (69,9%) de agressão à mulher no estado ocorreram com vítimas que se separaram ou tentaram se separar de seus agressores".

Tais números demonstram uma triste e brutal realidade da condição da mulher na nossa sociedade, evidenciando que ainda é longo o caminho para que as mulheres brasileiras possam alcançar o seu constitucional direito a uma vida sem violência.

A postura do/a magistrado/a de julgar com perspectiva de gênero não significa que o/a juiz/a não tenha a capacidade de chegar a uma decisão materialmente justa; apenas significa que se exige, quando do julgamento: 1) mais atenção às minudências e circunstâncias do fato criminoso; 2) uma escuta mais qualificada em relação aos sujeitos do processo; 3) um conhecimento amplo e profundo das características especiais que envolvem a violência doméstica e familiar contra a mulher; 4) a percepção dos efeitos desse tipo de violência em relação aos demais membros da família, principalmente aos filhos; 5) a compreensão de que o agressor também precisa de um encaminhamento especial para sair da condição em que se encontra e não perpetuar a violência em relação à mesma vítima ou outra companheira; 6) não se permitir ser ator e reprodutor (seja magistrado ou magistrada) de uma cultura que permanece enredando a mulher em papéis que as diminui, discrimina e violenta.

Não é tarefa fácil, mas é mister que deve ser desempenhado com consciência, sensibilidade e com muita vigilância (no que tange aos seus próprios valores e aos valores trazidos por aqueles que participam do processo).

Tal não significa, por outro lado, que o/a juiz/a será tendencioso/a, pois ademais de a Lei Maria da Penha ter trazido um comprometimento do/a magistrado/a com a causa da violência doméstica e familiar contra a mulher, seu primeiro compromisso é com os fatos, analisando minuciosa e atentamente as provas colhidas, com vistas a encontrar a verdade material.

O caminho para promover uma cultura não sexista, antidiscriminatória e de promoção da igualdade ainda é bastante longo e somente se chegará ao seu destino com esforços conjuntos do sistema de Justiça, dos poderes instituídos e de toda a sociedade. E julgar com perspectiva de gênero representa um desses importantes e necessários esforços.

 

Referências bibliográficas
ÁVILA, Thiago Pierobom de, MEDEIROS, Marcela Novais Medeiros, CHAGAS, Cátia Betânia, VIEIRA, Elaine Novaes, MAGALHÃES, Thais Quezado Soa¬res e PASSETO, Andrea Simoni de Zappa. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades, IN: Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, ago 2020, p. 376.

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. São Paulo: Tirant do Brasil, 2020.

BIANCHINI Alice, BAZZO Mariana, CHAKIAN Silvia. Crimes contra as mulheres. Salvador: JusPodivm, 2020.

DIRETRIZES NACIONAIS FEMINICÍDIO: Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília, abril de 2016. Realização: ONU — Mulheres. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio_FINAL.pdf. p. 103

ESCOBAR CIRUJANO, Ana; QUINTEROS, Andrés, SÁNCHEZ GAMONAL, Sara Belén; TANDÓN RECIO, Bárbara. In: PEREZ VIEJO, Jesús M., HERNÁNDEZ, Ana Montalvo (Cood.). Violencia de género, prevención, detección y atención. Madrid: Grupo 5, 2011, p. 31.

Feminicídio: um estudo sobre os processos julgados pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Nupregre. Emerj. Rio de Janeiro, 2020, p. 92. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/publicacoes/relatorios_de_pesquisa_nupegre/edicoes/numero5/relatorios-de-pesquisa-nupegre_numero5.pdf.

FÉRIA, Maria Teresa, Julgar com uma perspectiva de género? Disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/11/20171109-ARTIGO-JULGAR-Julgar-com-uma-perspetiva-de-g%C3%A9nero-Teresa-F%C3%A9ria.pdf

MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

SOUSA, Tania Teixeira Laky de. Feminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista. Ex aequo [online]. 2016, n.34, pp.13-29. ISSN 0874-5560. Disponível em: http://dx.doi.org/https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.02.

 


[1] DIRETRIZES NACIONAIS FEMINICÍDIO: Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília, abril de 2016. Realização: ONU — Mulheres. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio_FINAL.pdf. p. 103

[5] ESCOBAR CIRUJANO, Ana; QUINTEROS, Andrés, SÁNCHEZ GAMONAL, Sara Belén; TANDÓN RECIO, Bárbara. In: PEREZ VIEJO, Jesús M., HERNÁNDEZ, Ana Montalvo (Cood.)Violencia de género, prevención, detección y atención. Madrid: Grupo 5, 2011, p. 31.

[6] SOUSA, Tania Teixeira Laky de. Feminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista. Ex aequo [online]. 2016, n.34, pp.13-29. ISSN 0874-5560. Disponível em:  http://dx.doi.org/https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.02.

Autores

  • é Doutora em Direito penal pela PUC/SP, Mestre em Direito pela UFSC, especialista em Teoria e Análise Econômica pela Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul-SC e em Direito Penal Econômico Europeu, pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Leciona em diversos cursos de especialização. É conselheira federal da OAB, vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada e da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ. Coordenadora da Pós-Graduação Direito das Mulheres: teoria, prática e ação transformadora. Autora de vários livros e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, dentre eles, "Lei Maria da Penha" (São Paulo: Tirant, 2020) e autora do curso virtual "Lei Maria da Penha na Prática".

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