Opinião

Por que extinguir a comissão de reforma da Lei de Lavagem?

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

17 de maio de 2021, 16h12

Recentemente o presidente da Câmara dos Deputados extinguiu a comissão de juristas que apresentaria o projeto de reforma da Lei 9.613/98, mais conhecida como a Lei de Lavagem de Dinheiro.

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Infelizmente a decisão do presidente não veio em bom momento, pois a Lei de Lavagem, desde a sua edição, sofreu somente uma atualização, em 2012, quando o legislador suprimiu o rol dos crimes antecedentes e o Brasil ingressou na denominada terceira geração das leis que regem os crimes de branqueamento de capitais. É fato que ingressamos tardiamente na criminalização das condutas de lavagem de dinheiro, tendo em vista que outros países já criminalizavam esse delito, que procurava coibir a aparência de licitude de valores provenientes de atividade criminosa.

Em muitas legislações chamadas de primeira geração a lavagem de capitais atingia tão somente os valores oriundos do tráfico de drogas, deixando de lado outros delitos antecedentes que podiam dar origem ao posterior branqueamento. Em seguida, tivemos a segunda geração, que trazia um rol taxativo dos crimes antecedentes, excluindo outros delitos que também eram aptos à lavagem. Somente em 2012, como referido, o legislador pátrio ingressa na terceira geração e permite que qualquer infração penal que gere bens, direitos ou valores possam ser considerados antecedentes ao delito de lavagem de capitais.

Feitas essas considerações iniciais, a comissão instituída pelo anterior presidente da Câmara dos Deputados procurava atualizar a legislação em muitos pontos conflitivos que geravam e geram problemas de aplicação nos casos concretos. Em muitos deles sequer há acordo na jurisprudência, o que não permite uma uniformização no momento das decisões judiciais.

Apenas para referir um exemplo, nos delitos de corrupção passiva o mero recebimento e guarda dos valores já tipifica o delito de lavagem de capitais ou é exaurimento da própria corrupção? É necessário um ato posterior de dissimulação — movimentação de valores — para tipificar a posterior lavagem? Há decisões contraditórias sobre o tema, o que merece também uma análise sobre quando a comissão trataria dos delitos assemelhados aos de branqueamento de capitais.

Mas há inúmeros outros problemas que merecem atualização na Lei de Lavagem de Dinheiro, como as causas de aumento de pena. Partimos na legislação pátria de um patamar já elevado enquanto em outros países há um critério de aumentar a pena em decorrência do crime antecedente que é cometido (critério do bem jurídico tutelado). Isso impede até mesmo a banalização do delito de lavagem de dinheiro porque, com o rol aberto dos crimes antecedentes, tudo pode ser lavagem de dinheiro em concurso material com o delito prévio.

Os casos de autoria e participação têm uma dimensão ampla na legislação atual, permitindo a punição de quem participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal se destina ao branqueamento de dinheiro. O tipo penal é tão amplo que leva em conta tão somente o conhecimento sem qualquer critério de limitação da responsabilidade penal, ou seja, e exemplificando novamente: até um mero funcionário do escritório que sabe o que ocorre pode responder pelo delito. As regras normativas e doutrinárias do artigo 29, CP (concurso de agentes), delimitam com precisão os casos de intervenção delitiva, embora a doutrina estrangeira hoje já se decante para os critérios da imputação objetiva (realização de um risco não permitido e verificação desse risco no resultado). Isso de forma simplificada, sem adentrar nas outras formas de limitação de imputação penal (princípio da confiança e proibição de regresso).

Os verbos nucleares do tipo penal também apresentam dificuldades de compreensão quando dizem que comete o delito quem oculta ou dissimula os bens, direitos ou valores provenientes de atividade ilícita. A ocultação ou dissimulação se confundem muitas vezes e há autores que sustentam que a dissimulação, num esforço de a diferenciar, seria a ocultação qualificada. Por isso, merece atenção uma revisão no que diz respeito aos verbos nucleares que incriminam a conduta tipificada.

Em relação à autonomia do julgamento do crime de lavagem de dinheiro, não há que se confundir com a autonomia do próprio delito de branqueamento. São coisas distintas. É possível julgar o crime de lavagem, como diz a própria lei, independente do julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticadas em outro país. Mas isso é em relação ao processo. Quanto ao tipo penal de lavagem de dinheiro, ele não é autônomo e não existe se não houver a infração penal prévia, que funciona como uma elementar do tipo penal de lavagem. O próprio tipo parece exigir isso quando refere que a ocultação ou a dissimulação devem ser provenientes, direta ou indiretamente, de uma infração penal antecedente. Embora tenhamos vozes e decisões contrárias, isso não é possível. Seria dotar um tipo penal de conteúdo que ele não tem sem a elementar que o completa (infração penal antecedente). Alguns autores o denominam de um crime parasitário, isto é, que necessita da infração penal prévia.

Os problemas processuais tampouco são de fácil resolução. Nos casos de sequestro de bens há a inversão do ônus da prova, devendo o suposto lavador provar a origem lícita dos bens, o que retira da acusação o dever de provar a origem espúria dos bens. Além disso, permite que a cautelar seja imposta com prova indiciária e até mesmo de ofício pelo magistrado, isto é, o mesmo que julgará o processo posteriormente. Há evidente risco de contaminação do juiz que produz a prova do processo que irá julgar. A solução seria resolvida com a implementação do juiz de garantias, suspenso até o momento por decisão do STF. Outro problema é que o sequestro de bens, direitos ou valores é permitido com prova indiciária da infração penal, ou seja, não há necessidade de uma prova robusta para o bloqueio de bens em desfavor do investigado e/ou denunciado.

Não enfrentamos, de forma clara, o problema da mescla dos bens e a sua contaminação, isto é, quando na conta do suposto lavador misturam-se bens de origem delitiva com outros de origem lícita. Essa mescla contaminaria todo o patrimônio do branqueador de capitais? Aqui é necessário um estudo sobre a contaminação parcial ou total dos bens no sentido de não incriminar condutas anteriores ao delito de lavagem que contaminariam todos os bens e seriam quase uma responsabilidade objetiva do lavador no que tange à totalidade de seu patrimônio.

De outro lado, uma revisão em relação aos sujeitos obrigados também merece uma reflexão mais cuidadosa. Frequentemente são apresentados projetos que buscam criminalizar a atividade dos advogados, entre outras profissões que recebem valores dos clientes. O advogado é essencial à administração da Justiça e não pode e não deve ter a sua atividade criminalizada quando exerce regularmente a sua profissão na defesa de seu cliente. Não é dever do advogado ser garante do Estado. Evidentemente que quando o advogado se torna fiador de um delito de branqueamento, seja construindo estruturas para lavagem ou fornecendo faturas falsas de serviços não prestados, a situação muda de figura. Porém, o advogado litigante que exerce a defesa do cliente não tem por que controlar a origem dos valores que recebe como honorários advocatícios e há bons artigos na doutrina estrangeira que respaldam essa posição (ver Javier Sánchez-Vera Gómez-Trelles), apenas para citar um deles. Como também há decisões nas cortes estrangeiras sobre a limitação de responsabilidade penal do advogado.

Procurei levantar alguns pontos fundamentais que geram discussão na doutrina e na jurisprudência, deixando outros de lado, como se se trata de delito permanente ou instantâneo de efeitos permanentes, qual o bem jurídico que se tutela, os problemas de habitualidade ou continuidade delitiva. Tudo isso demonstra que foi equivocada a extinção da comissão de juristas que buscava, de forma paritária em sua composição, atualizar a legislação nos mecanismos de controle ao delito de branqueamento de capitais. Oxalá o presidente da Câmara dos Deputados reflita sobre o tema e volte a instituir tão importante comissão.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor titular de Direito Penal no IDP/Brasília, sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal e autor do livro "Colaboração Premiada", pela Marcial Pons.

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