Opinião

Projeto de revogação da Lei de Segurança Nacional é um museu de velhas novidades

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13 de maio de 2021, 6h33

No último dia 4 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 6.764/2002, que revoga a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83 ou LSN), substituindo-a por novas tipificações no Código Penal em defesa do Estado democrático de Direito.

O movimento pela revogação da LSN foi resultado de legítima inquietação pelo recente uso abusivo desse instrumento para contenção de manifestações políticas contrárias aos ocupantes dos cargos de poder. Trata-se de lei elaborada no final do regime militar, norteada ainda pela doutrina de segurança nacional, com previsão de tipos penais excessivamente abertos, capazes de promover intencionais limitações aos direitos de livre manifestação e associação.

A permanência da LSN em contexto pós-ditatorial já era apontada há décadas como mecanismo que poderia ser utilizado para restringir direitos constitucionais e políticos. E isso realmente vem acontecendo: segundo dados da Polícia Federal, nos últimos 20 anos foram instaurados 198 inquéritos com base na LSN, 77 deles iniciados em 2019 e 2020, dados que confirmam os temores quanto à sua utilização para criminalização de movimentos políticos contrários ao establishment.

Apesar da louvável iniciativa do Legislativo pela revogação da LSN, alguns equívocos da ideologia autoritária permanecem no projeto aprovado. Nele, encontramos as mesmas opções por penas de reclusão altíssimas e tipos penais abertos, permanecendo as inquietações acerca de possível perseguição de opositores.

Sendo o fundamento discursivo da alteração legislativa a proteção do Estado democrático de Direito, constata-se um paradoxo: é exatamente a existência de criminalizações tão abertas que configura uma ameaça ao próprio exercício dos direitos constitucionais dos cidadãos, entre eles os direitos políticos.

Veja a proposta de criação do tipo de abolição violenta do Estado democrático de Direito (artigo 359-L): "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". A expressão "Estado democrático de Direito", das democracias atuais, é tão ampla quanto as nefastas concepções de "segurança nacional", do regime militar, de "liberdades democráticas" do macartismo, ou de "sã consciência do povo alemão", do nazismo, muito embora, sem dúvida alguma, represente um notável avanço em relação a esses abomináveis conceitos abandonados. Sua definição, a depender do intérprete, é bastante maleável, não servindo para integrar um tipo penal. Nesse ponto, não é demais lembrar o secular alerta de Madame Roland: "Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome!".

Ficam as dúvidas: quão grave precisa ser a conduta para considerá-la uma tentativa de abolição do Estado democrático de Direito? A supressão de um único direito essencial a uma democracia bastaria? Ou é preciso tentar mudar toda a estrutura do Estado? No que consistiria, exatamente, o ato de restrição ao exercício dos poderes constitucionais? Se uma categoria profissional, por exemplo, vislumbrando a possibilidade de redução de um direito seu na votação de um projeto de lei criar embaraço para o ingresso dos parlamentares na casa legislativa estarão configurados o delito e os manifestantes sujeitos a uma pena de quatro a oito anos de reclusão? Ou estará esse ato incluído na causa de exclusão de ilicitude prevista na proposta de redação do artigo 359-T, que protege a manifestação crítica aos poderes constitucionais e a reivindicação de direitos e garantias por meio de passeatas, reuniões, greves e aglomerações?

Ainda no rol de tipos penais excessivamente abrangentes, destaca-se o crime de violência política no âmbito do processo eleitoral (artigo 359-P)  "Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, orientação sexual, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Seria importante e juridicamente mais adequado descrever os direitos políticos a que efetivamente se pretende proteger com essa norma, bem como especificar quais atos configurariam "restringir, impedir ou dificultar".

Outra problemática diz respeito à desproporcionalidade das penas. Veja a disparidade entre a pena do crime de atentado à soberania (artigo 359-I), que varia de três a oito anos com previsão de aumento até o dobro, enquanto a de espionagem (artigo 359-K) é de três a 12 anos com escala entre seis e 15 anos, caso seja praticado com violação do dever de sigilo (conduta que aparenta constituir o núcleo do tipo penal). Por outro lado, ainda agravando essa desproporcionalidade, surge o crime de atentado à integridade nacional (artigo 359-J), com pena consideravelmente menor, de dois a seis anos, a despeito de envolver violência ou grave ameaça.

O crime de golpe de Estado (artigo 359-M), cuja previsão comporta "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído", possui previsão muito semelhante ao artigo 17 da LSN, estabelecendo uma pena mínima de quatro anos no lugar da anterior, de três anos. Quais seriam os critérios para aferição da legitimidade do governo para configuração do tipo penal? A resposta parece remeter às urnas eleitorais, mas não se pode ignorar a situação venezuelana, na qual a comunidade internacional se dividiu ao reconhecer simultaneamente dois presidentes legítimos.

Nem mesmo a ressalva contida no artigo 359-T da proposta (excluindo da tipificação "a manifestação crítica aos poderes constitucionais, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais") parece ser suficiente para conter a tendência expansiva dos processos de criminalização, derivada da abertura dos tipos penais. Basta lembrar da disposição contida no artigo 2º, §2º, da Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260/16), com caráter semelhante, que não foi capaz de impedir a criminalização de movimentos reivindicatórios.

Embora seja latente a necessidade de romper com as previsões autoritárias da LSN, a nova proposta parece apresentar mais continuidades do que rupturas. Diante da dificuldade de se estabelecer limites entre possíveis atentados ao Estado democrático de Direito e à liberdade de expressão, a pretensão de construção de uma sociedade democrática deve advir de esforços para reformas de caráter estrutural, no lugar de propostas que, na prática, consistam em trocar a roupagem ideológica do termo "segurança nacional" por "Estado democrático de Direito". Enfim, em muitos aspectos, o projeto aprovado na Câmara dos Deputados parece um museu de "velhas novidades".

Autores

  • é sócio fundador do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados, 3º vice-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), presidente do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e conselheiro efetivo da Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ).

  • é sócia do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados e pós-graduanda em Advocacia Criminal pelo CEPED-UERJ.

  • é sócio do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados e mestrando em Teoria e Filosofia do Direito pelo PPGD-UERJ.

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