Opinião

O reequilíbrio econômico-financeiro na nova Lei de Licitações

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

11 de maio de 2021, 15h07

São os detalhes que cativam e conferem toda uma complexidade à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativo (Lei nº 14.133/2021). No tema dos contratos, certamente um dos institutos mais sofisticados e que geram o maior foco de controvérsias é o (re)equilíbrio econômico-financeiro. Teorias, jurisprudência e toda sorte de opiniões não faltam, ou seja, temos no Brasil maturidade dogmática no tema.

A tal legislação recém-aprovada tratou do reequilíbrio desenhando o assunto a partir da rubrica: "Da alteração dos contratos e dos preços" (artigos 124 a 136). Dessa lista de regras, poderíamos retirar várias abordagens. Um alerta pessoal ao leitor antes de continuarmos: chama-me a atenção que a lei geral de licitações em quase todo o seu texto deve ser objeto de uma interpretação sistemática com correlações não expressas. É dizer: trata de mesmos institutos em regras diferentes, sem nos dar um aviso disso. Do tipo: "Quem perceber, percebeu!".

Retomando o tema, conforme o texto da Lei nº 14.133/2021, a repactuação do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato pode ser feita [1]:

1) Unilateralmente pela Administração (artigo 124, inciso I) por meio de:

1.1) Modificação qualitativa: quando houver alteração do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica a seus objetivos;

1.2) Modificação quantitativa: quando houve acréscimo ou diminuição da quantidade do objeto contratado;

2) Consensualmente (de modo bilateral) em caso de ou da:

2.1) artigo 124, inciso II, alínea "d":

2.1.1) Força maior ou caso fortuito;

2.1.2) Fato do príncipe; ou

2.1.3) Presença dos requisitos da teoria da imprevisão ("em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado");

2.2) Artigo 124, §2º:

2.2.1) Fato da Administração: diante de contratações de obras e serviços de engenharia, quando a execução for obstada pelo atraso na conclusão de procedimentos a seguir listados, desde que por circunstâncias alheias ao contratado:

2.2.2) Desapropriação;

2.2.3) Desocupação;

2.2.4) Servidão administrativa;

2.2.5) Licenciamento ambiental,

Então, esse manancial de variadas formas de reequilíbrio pode ser dividido em dois grandes grupos:

1) Aquelas causadas por ato interno à relação contratual e causadas pela Administração Pública, impactando no objeto originalmente contratado. Nesse caso, as alterações são limitadas pelos percentuais do artigo 125 — é acontecimento interno à relação contratual;

2) Aquelas causadas por ato externo à relação contratual, e que geram impactos no sinalagma do negócio. Nesse caso, a alteração do preço pode ser feita para além dos limites percentuais do artigo 125 da Lei nº 14.133/2021.

Nesse último caso (grupo 2 de casos), a parte final da alínea "d" do inciso II do artigo 124 dialoga com o artigo 6º, inciso XXVII, artigo 22; artigo 92, inciso IX; e artigo 103, que tratam da matriz ou alocação de riscos. Antes de se pensar em procurar a solução nas regras da Lei nº 14.133/2021, as partes deverão mirar o conteúdo do contrato, a fim de saber se existe cláusula dizendo quem deve eventualmente suportar uma onerosidade futura, de modo que deve ser respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.

A partir desse panorama, muitas questões podem ser formuladas. Por exemplo: vimos que há a possibilidade de alteração bilateral de um contrato (artigo 124, inciso II) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial em uma série de situações listadas na própria alínea "d" do mesmo dispositivo. Nessas hipóteses, o artigo 130 da Lei nº 14.133/2021 prevê que, quando se aumentar ou diminuir os encargos do contratado, a Administração Pública deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.

Mas, afinal, qual é a questão jurídica tormentosa? O artigo 125 afirma que nas "alterações unilaterais" (não nas bilaterais, como aquela a ser aqui abordada), possuem limites: "O contratado será obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões de até 25% do valor inicial atualizado do contrato que se fizerem nas obras, nos serviços ou nas compras, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento, o limite para os acréscimos será de 50%".

Então, nas modificações bilaterais não há esses limitadores? Resposta: não há.

Na prática, o particular contratado e o Estado contratante poderão pactuar a alteração do ajuste sem respeitar os limites percentuais mencionados, podendo aumentar o valor inicial em 200%, 300% ou 1.000%. É claro que em casos "substituição da garantia de execução", esse aumento poderia não se verificar. Mas quando "necessária a modificação do regime de execução da obra ou do serviço" não se poderia ter um aumento indevido ou uma violação às regras do edital e da competição? Na prática, certo edital e o contrato dele derivado previam a execução da obra por empreitada integral, e se modifica o ajuste para empreitada global. Os demais licitantes não vencedores não poderiam ser prejudicados, tendo em vista que formularam suas propostas e competiram sob uma perspectiva que, posteriormente, foi modificada? Pensamos que sim.

Outra questão maior está contida na alínea "d" do inciso II do artigo 124: nos casos de ocorrência de fato do príncipe; teoria da imprevisão ou força maior [2], pode-se aumentar o valor do contrato sem respeito aos limites percentuais do artigo 125 — vimos isto. Contudo, como não existem parâmetros, este aumento ou diminuição pode ocorrer a depender de quem é o contratado, e isso pode não ser republicano. Vamos à "vida como ela é": chuvas torrenciais destroem parte da obra já iniciada, o que demandaria, quiçá, o reequilíbrio do contrato por força maior/caso fortuito. Mas certo administrador não republicano, a depender de quem é o contratado, poderá optar por reequilibrar ou extinguir o ajuste (artigo 137, inciso V) — a lei lhe dá esta opção claramente. Ou diante de outra situação, o mesmo gestor poderia extinguir ou alterar o contrato, mas, neste último caso, aumentando ou diminuindo em 1.000%. Não há limites à alteração bilateral.

Contudo, mesmo diante desse risco, por incrível que possa parecer, a opção do legislador mostra-se razoável, porque permite a manutenção do direito das partes de recompor a base econômica do negócio, impactada e desfigurada por fatos posteriores ao momento da assinatura do ajuste e alheios aos contratantes. E isso pode ser feito para além dos limites de mais ou menos 25%, e mais de 50% em caso de reforma. Se assim não fosse, impedir-se-iam reequilíbrios fora desses limites legais, devendo o contrato ser extinto, e feita nova licitação, o que seria ainda pior — ao menos na minha ótica.

Duas palavras finais: insisto, ainda que tivéssemos a melhor lei de licitações do mundo, ela não funcionaria diante de autoridades e/ou licitantes ruins (claro, o melhor seria deter uma lei boa a moldar um bom ambiente e boas pessoas). E, como visto, o artigo 124, inciso II, alínea "d", poderá ser um grande "teste de eficiência e republicanismo".

De outro lado, todos essas correlações e peculiaridades apontam para uma lei com múltiplos aspectos. É como diz a música do rei Roberto: "Detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes para esquecer". E nada ali será só mais um detalhe.

 


[1] Deixamos mais evidente este fluxograma na nossa obra "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos — Lei nº 14.133/2021" (Ed. Juspodivm).

[2] Tratamos disso com minúcia na nossa obra "Curso de Direito Administrativo" (2ª ed.) — Ed. Juspodivm — p. 1.186 a 1.197.

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