Opinião

O false claims act e as qui tam actions: uma possível inspiração para o Brasil (2)

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

6 de maio de 2021, 7h12

Continuação da Parte 1 (leia aqui)

O false claims act (FCA) e as qui tam actions cumprem importante função na proteção do erário nos Estados Unidos, o que pode inspirar avanços no Brasil. Cabe investigar como se processa uma qui tam.

A ação é proposta na corte federal do local do ilícito, do domicílio do réu ou onde este tenha negócios estabelecidos [1]. A legitimidade do particular, pessoa física ou jurídica, se forma na inércia do advogado-geral em não propor a causa. O relator ou private attorney general propõe a ação em seu nome e em nome do governo dos Estados Unidos. Nesse caso, embora o autor seja um particular, o "litígio baseado no false claims act corre à sombra das prerrogativas do governo" [2].

São proibidos de intentar a qui tam membros das Forças Armadas e pessoas condenadas criminalmente pela mesma fraude. A ação também é inviável se uma idêntica já foi proposta [3], se uma investigação administrativa está em curso ou se a demanda se basear em informação já pública, especialmente as constantes de procedimentos criminais, cíveis ou administrativos [4].

Quando uma qui tam é proposta, o relator deve remeter a documentação que baseia a causa ao governo (disclosure statament [5]), que terá 60 dias, para decidir por sua intervenção na causa [6], tempo em que vigora o sigilo [7], o que levanta questionamentos de violação ao right to access doctrine, estabelecido na 1ª Emenda da Constituição; violação que têm sido refutada [8] sob a compreensão de que a restrição à publicidade, nesse caso específico, foi estritamente talhada (narrowly tailored) para servir a um imperativo interesse governamental [9].

Para amparar a avaliação do governo de se juntar à ação, são conferidos poderes civis de investigação, que podem forçar pessoas a produzir material de prova, inclusive depoimentos [10]. O governo pode intervir na causa desde o início, assumindo protagonismo da ação e deixando o relator em posição acessória [11]. É possível também que o Estado prefira se inserir na demanda em face mais adiantada, com aparecimento de causa legítima. Ainda, se entender que o caso carece de mérito (lack of merit), o governo está dispensado de atuar, ficando o relator com a responsabilidade total pela qui tam [12].

Somente após tal avaliação inicial do governo, em que decide pela intervenção ou não na causa, é que o réu é citado para responder a ação, em 20 dias [13].

Quanto à prerrogativa do Estado de refutar preliminarmente a ação (dismiss), o FCA não tem diretrizes precisas para orientar a decisão. Para conceder maior uniformidade, e, especialmente, visando a economizar recursos e evitar precedentes indesejados, o diretor da Seção de Fraude Civil do Setor de Litígios Comerciais do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), Michael Granston, editou um memorando interno direcionado aos advogados do órgão. No documento, conhecido como "The Grandston Memo", são destacados sete pontos que devem nortear a decisão dos advogados do governo para dispensar uma qui tam: conter ações sem mérito, prevenir ações parasitas ou oportunistas, prevenir a intervenção em políticas ou programas de governo, controlar a litigiosidade, controlar informações classificadas e preservar a segurança nacional, economizar recursos governamentais e enfrentar graves erros de procedimento [14].

As cortes de Justiça também têm estabelecido alguns critérios. Em United States ex rel Sequoia Orange Co v Baird-Neece Packing Corp, o 9° Circuito aplicou o teste da relação racional (rational relation test), pelo qual o governo pode refutar a ação quando demonstrar que isto atende "interesse governamental legítimo" [15]. Já em Swift v United States, o Circuito DC entendeu que o poder governamental de dispensar a ação é ilimitado (unfettered), significando que o relator não tem nenhum recurso ou prerrogativa quando o governo se manifesta contra a ação [16]. Essas duas posições dividem as cortes americanas, representando um verdadeiro "duelo" quanto aos critérios norteadores do poder de dismiss governamental na qui tam [17], ambas sujeitas à críticas.

A compreensão em Sequoia é tida por violadora do poder persecutório discricionário do Executivo, pois força-o a explicar suas decisões de não envolvimento. Já a posição de Swift é considerada aviltante do devido processo, que garante ao relator uma oitiva justa antes da dispensa da ação.

Mais recentemente, a doutrina tem defendido que deve ser garantido ao relator a possibilidade de demonstrar que o governo falhou em seu dever legal de conduzir uma investigação idônea e livre de falhas procedimentais. Neste caso, a corte deve garantir a posição do relator, e autorizar o seguimento da causa (The Executive Judgement Rule) [18].

O governo (AG e DOJ) mantém grandes poderes sobre o rumo da qui tam, com substancial autoridade para supervisionar e controlar a causa, inclusive com a possibilidade de assumir o papel primordial na condução da causa. Ainda é possível que a participação do relator seja limitada para evitar atrasos ou risco ao procedimento [19]. Afinal, o interesse deduzido na qui tam é essencialmente do Estado.

Esse domínio estatal se explica também pela necessidade de evitar ações oportunistas e "parasitárias", baseadas em evidências fracas, para o que o Congresso estabeleceu um dual-plaintiff mechanism, que permite ao governo monitorar e controlar a ação do agente privado, a fim de que este exerça um trabalho de qualidade e que a ação não se distancie do interesse público [20].

Ao Estado é dado celebrar acordo com a outra parte, independentemente de concordância do relator, desde que ouvido antes e que solução consensual seja forma adequada de atender ao interesse público. Por outro lado, acordo ou desistência de iniciativa do relator deve ser submetido à aprovação do DOJ [21].

Há, contudo, controvérsia na jurisprudência quanto aos efeitos operados pela oposição estatal ao acordo entabulado entre relator e réu: um poder absoluto de veto 5° Circuito, Searcy v. Philips Electronics North America Corp.); ou condicionado à legitimidade das razões invocadas (9º Circuito, United States ex rel. Killingsworth v. Northrop Corp.), posição que é defendida pela doutrina, por ser a que melhor balanceia os interesses em jogo [22].


 

Qualquer pessoa que incida nas vedações do §3729 pode ser ré, seja agente público ou privado, física ou jurídica. Governos municipais podem ser processados, mas Estados e tribos indígenas são excepcionados [23]. Outras barreiras (bars) também são estabelecidas no §3730, (e). Não podem ser réus membros do Congresso, do Judiciário federal, altos membros do Executivo e servidores das Forças Armadas [24].

 

Já a public disclusure bar veda ação baseada em informação pública ou já de posse do governo, a menos que o relator seja sua fonte original [25], por ter fornecido informação até então desconhecida [26].

Tem-se sustentado que a aplicação da public disclosure bar não deve restrita a ponto de representar um confisco de informações, com locupletamento indevido do Estado, pois a ideia do Congresso, ao estabelecer a barreira, foi premiar quem descobriu e revelou a fraude [27].

Questiona-se a possibilidade de empregados do governo servirem como fonte original para a qui tam. Cinco estados admitem expressamente, desde que os empregados tenham reportado o caso ao governo antes [28]. Quanto aos servidores federais, a jurisprudência não tem o tema bem definido. O 11º Circuito já garantiu ao agente federal mesmo tratamento devido a qualquer outro relator. Já os 1º e 9º Circuitos foram em sentido oposto, sob entendimento de que o funcionário público não teria como ter "conhecimento independente" da informação, só obtida em função do cargo desempenhado. Nessa perspectiva, autorizar que esse servidor apresentasse uma qui tam baseada em informações adquiridas em tais circunstâncias seria admitir que o contribuinte pagasse duas vezes pelo mesmo serviço [29]. Um empregado federal, portanto, terá dificuldade de se qualificar como uma "fonte original" da informação [30].

Outra barreira legalmente estabelecida é a prévia condenação criminal do relator pelo mesmo fato apresentado na qui tam [31]. Nesse caso, o condenado não é tido por digno de apresentar a ação cível. Além disso, caso a responsabilidade do réu já tenha sido estabelecida em processo penal, fica-lhe vedado rediscutir os mesmos fatos, caracterizando-se como uma estoppel clause.

Deve-se agora analisar tema essencial: a recompensa devida ao relator, o que será objeto da terceira parte deste estudo.

Continua na Parte 3

 

[1] U.S.C. 31§§3730(b)(2), 3732(a)

[2] Doyle, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 325.

[3] Trata-se da first-to-file bar, que impede a propositura de uma segunda qui tam, baseada nos mesmos fatos, enquanto pendente a causa original. Contudo, se a ação original foi rejeitada, a first-to-file bar deixa de ser aplicável, justamente por não haver mais uma ação pendente sobre idênticos fatos, o que autoriza uma segunda ação sobre os mesmos fatos. THERIAULT, Emily; TURETZKY, Matthew; GALLACHER, David. No Unlimited Suspension of the Statute of Limitations Under the False Claims Act; "First-to-File" Doctrine Does Not Bar Related Suits in Perpetuity. Disponível em: https://www.governmentcontractslawblog.com/2015/05/articles/false-claims/scotus-no-unlimited-suspension-of-the-statute-of-limitations-under-the-false-claims-act-first-to-file-doctrine-does-not-bar-related-suits-in-perpetuity/. Acesso em: 10/12/2020.

[4] RABIAT, Ozigis. ADAPTING NIGERIA'S WHISTLEBLOWER POLICY TO PROCUREMENT FRAUDS: A CUE FROM THE False Claims Act'S QUI TAM PROVISION. Public Contract Law Journal, Vol. 48, Issue 2, p. 337-353, Winter 2019, p. 345.

[5] KELLY, Todd. SHARING IS CARING: PROTECTING THE ABILITY OF QUI TAM RELATORS AND THE GOVERNMENT TO SHARE INFORMATION UNDER THE FALSE CLAIMS

ACT. George Mason Law Review, Vol. 23:5, 2016, p. 1328-1329.

[6] 31 U.S.C. §3730(b)(2), (3), (4).

[7] Embora o sigilo seja a regra na fase inicial da ação, enquanto o governo avalia sua intervenção na causa; e possa ser prorrogado quando esta decisão requeira avaliação mais criteriosa, a prorrogação não pode ser indefinida, sob pena de comprometer valores de transparência e accountability. USA. The United States District Court of the Eastern District of Pennsylvania. United States ex. Rel. Brasher v. Pentec Health, Inc. No. 13-05745, 2018 WL 5003474 (E.D.P.A. Oct. 16, 2018).

[8] MAHONEY, Joshua Patrick. Qui Tam Relators, the First Amendment, and the False Claims Act. University of Chicago Legal Forum: Vol. 2012: Iss. 1, Article 13, p. 300. Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol2012/iss1/13. Acesso em 11/12/2020.

[9] Em Globe Newspaper Co v. Superior Court for County of Norfolk (457 US 596, 1982)., a Suprema Corte estabeleceu que os procedimentos judiciais e julgamentos devem ser públicos, como regra, só excepcionável quando a restrição à publicidade for estritamente talhada para atender a um interesse governamental imperativo.

[10] 31 U.S.C. 3733.

[11] 31 U.S.C. 3730(c)(3).

[12] ROCHA, Márcio Antônio. A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblower. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.65, abr. 2015. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao065/Marcio_Rocha.html. Acesso em: 15 dez. 2020.



 

[13] 31 U.S.C. 3730(b)(3).

[14] THOMAS, Roderick L. Granston Memo: DOJ's New Internal Policy on Dismissing FCA Cases. Disponível em: https://www.wiley.law/newsletter-Granston-Memo-DOJs-New-Internal-Policy-on-Dismissing-FCA-Cases. Acesso em: 14/12/2020.

[15] TSCHEPIK, Nathan T. The Executive Judgment Rule: A New Standard of Dismissal for Qui Tam Suits Under the False Claims Act. The University of Chicago Law Review, nº. 87, Iss. 4, Article 3, 2020, p. 1056.

[16] Esta visão se baseia na independência do Poder Executivo, de quem seria a histórica prerrogativa de escolher que casos processar em nome do governo; e por razões de política pública, consistentes na necessidade de conter a sanha de litigantes profissionais. HARCHUT, Jennifer. DOJ BLOWS THE WHISTLE ON PROFESSIONAL WHISTLEBLOWERS: BUT THE CIRCUITS ARE SPLIT ON WHETHER DISMISSALS WILL BE SWIFT. Villanova Law Review, Vol. 65, 2020, p. 421.

[17] TSCHEPIK, Nathan T. The Executive Judgment Rule: A New Standard of Dismissal for Qui Tam Suits Under the False Claims Act. The University of Chicago Law Review, nº. 87, Iss. 4, Article 3, 2020, p. 1056.

[18] TSCHEPIK, Nathan T. The Executive Judgment Rule: A New Standard of Dismissal for Qui Tam Suits Under the False Claims Act. The University of Chicago Law Review, nº. 87, Iss. 4, Article 3, 2020, p. 1095.

[19] 31 U.S.C. 3730(c)(2)(C).

[20] KIM, Sang Beck. Dangling the Carrot, Sharpening the Stick: How an Amnesty Program and Qui Tam Actions Could Strengthen Korea's Anti-Corruption Efforts. Northwestern Journal of International Law & Business Vol. 36, No. 1, p. 235-265, 2016, p. 262.

[21] ENGSTROM, David Freeman. Private Enforcement's Pathways: Lessons from Qui Tam litigation. Columbia Law Review, vol. 114, n. 8, Dez/2014, p. 1946.

[22] FORNEY, Gretchen L. Qui Tam Suits: Defining the Rights and Roles of the Government and the Relator under the False Claims Act. University of Minnesota Law School. Minnesota Law Review. N. 1400, 1998. Disponível em: https://scholarship.law.umn.edu/mlr/1400. Acesso em: 11/12/2020.

[23] A Suprema Corte estabeleceu em Vermont Agency of Natural Resources v. United States ex rel. Stevens que person não abrange os Estados membros.

[24] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 324-325.

[25] 31 U.S.C. §3730(e)(4).

[26] SALCIDO, Robert. The Public Disclosure Bar of the False Claims Act. Andrews Publications, 2002, p. 7.

[27] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 32.

[28] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 870.

[29] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 887-888.

[30] Doyle, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 338.

[31] U.S.C 31 §3730(d)(3).

Autores

  • é juiz federal do TRF-4, mestre e doutorando Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, diretor e professor de Direito Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!