Opinião

O sentimento anticonstitucional no Brasil

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6 de maio de 2021, 12h23

É o percurso natural das ideias, que vão da formulação original à vulgarização em um grande telefone sem fio. O abuso da argumentação principiológica foi denunciado por alguns dos mais eminentes constitucionalistas do nosso tempo. O recurso a princípios de sentido primário pouco determinado teria aberto espaço para o arbítrio judicial, a camuflagem de interesses extrajurídicos, a supressão da esfera política. Marcelo Neves nos mostrou que o argumento retórico-principiológico ad hoc pode servir à "acomodação de interesses que circulam à margem do Estado de direito e da democracia" [1]. Sob outros pressupostos, Lenio Streck descreveu como a prática jurisdicional passou a forjar princípios de procedência duvidosa para dar solução a casos difíceis [2]. Carlos Ari Sundfeld deu-nos um descontraído ensaio sobre a caricaturização dos princípios no Direito brasileiro, essa arma  diz ele — de espertos e preguiçosos [3].

Com efeito, a principiologia constitucional mal aplicada produziu uma prática jurisdicional incoerente e confusa, dando origem a casos os mais pitorescos — lembremo-nos de quando o Supremo protegeu a dignidade humana dos galos [4]. Fomos nos acostumando, assim, à justa crítica diária sobre a atuação dos tribunais e, em especial, do STF feita nesses termos.

Essa crítica foi entrando no sendo comum. Não apenas no senso comum dos juristas — esse conceito de Warat [5] —, no qual ingressou desfigurada e simplificada, mas também no senso comum geral. Nos últimos anos, a expressão "ativismo judicial" apareceu com força no debate público. Sua utilização se tornou uma das principais ferramentas da crítica popular e jornalística às decisões judiciais. Não é difícil ver sua hipertrofia. Um passeio pelos comentários aos portais de notícias de interesse geral — os dos leitores e os dos jornalistas — permite ver que não apenas as decisões judiciais erradas (toda decisão errada é ativista?), mas também as rigorosas e ortodoxas têm sido chamadas de ativistas. Nesse sentido, Oscar Vilhena já apontou que muitas críticas a um suposto ativismo dos tribunais representam menos uma análise sobre o Judiciário ter avançado os limites da sua esfera do que um descontentamento com o resultado das suas decisões [6].

O problema enfrentado pelos críticos da prática principiológica sempre foi de qualidade. Isto é, a reprovação foi dirigida à incorreção e à falta de rigor das argumentações; a normatividade da Constituição, inclusive de seus princípios, nunca foi posta em cheque. Seria mesmo difícil chegar a outra conclusão, com uma Constituição vigente que estabelece a aplicabilidade imediata das normas que definem direitos fundamentais (artigo 5º, §1º) e a inafastabilidade do controle pelo Poder Judiciário das alegações de ameaça ou violação a direitos (artigo 5º, XXXV).

É também Oscar Vilhena quem diz, nesse sentido, que o constituinte impôs ao Poder Judiciário uma postura responsiva na proteção dos direitos fundamentais; a responsividade, claro, não pode se degenerar em usurpação da esfera dos outros poderes — assim como uma postura de deferência, ao contrário, não poderia se tornar de omissão; ao menos não no Estado constitucional [7].

Em alguns setores do senso comum dos juristas, no entanto — e certamente em relação de retroalimentação com o senso comum "geral" —, toda e qualquer solução baseada em princípios que definem direitos fundamentais tem sido rechaçada. É como se ganhasse espaço o seguinte raciocínio: se juristas têm produzido soluções ruins por meio de princípios constitucionais, então jurista bom e rigoroso é aquele que não usa princípio nenhum.

É assim que alunos têm sido criticados em bancas apenas por mencionarem esse ou aquele princípio, boas construções jurídicas têm sido acusadas de arbitrárias, estudantes e advogados têm dito que princípios não servem para nada, e professores gabaritados têm escrito artigos de opinião para dizer que está fracassada a constitucionalização do Direito Civil, a do Direito Administrativo ou a do Direito Ambiental. Experimentem falar para esse pessoal em dignidade humana. É como se diz: pegaram ranço. A esse fenômeno, subvertendo a expressão de Pablo Lucas Verdú, dou o nome de sentimento anticonstitucional.

Aliás, talvez por isso seja às vezes tão tormentoso o controle difuso de constitucionalidade no Brasil. A prática mostra que, fora do Supremo, a Justiça muitas vezes se recusa a discutir as questões sob o prisma constitucional.

O sentimento anticonstitucional poderá opor entraves ao enfrentamento de desafios verdadeiramente civilizacionais que se avizinham. Como será possível debater o que o Direito deve fazer com as big techs sem uma profunda e analítica imersão na constitucionalização do Direito Privado? Como, sem buscar a máxima efetividade dos direitos fundamentais, será possível fazer frente a ameaças sem precedentes à privacidade dos seres humanos?

É preciso construir uma dogmática racional dos princípios constitucionais e uma efetivação consistente dos direitos fundamentais. Do fato de que há abusos argumentativos não pode decorrer, por óbvio, o abandono da normatividade constitucional — nem o sentimento de aversão à Constituição.

 


[1] A expressão citada está em NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. ed. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, p. 196. Para a crítica completa, ver p. 171 e seguintes, especialmente 189-196.

[2] STRECK, Lenio. Verdade e consenso. ed. 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 517 e seguintes. Uma interessante lista de pseudoprincípios entres as páginas 519 e 534. Na página 538, a importante afirmação de que a o abuso de princípios reduz a autonomia do direito e a força normativa da Constituição

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. ed. 2. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 205 e seguintes. A afirmação de que o princípio é arma de espertos e preguiçosos está na página 215. Nas páginas 197 e seguintes (do capítulo anterior, portanto), Sundfeld menciona a importante questão da dificuldade de muitos princípios em passar no teste da pertinência ao ordenamento positivo.

[4] ADI 1.856/RJ. Ver o excelente comentário de Marcelo Neves, na ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso-principios-supremo-tribunal

[5] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. I. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 13 e ss.

[6] VILHENA, Oscar. Ativismo judicial? Folha de São Paulo, 18 de março de 2017, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2017/03/1867655-ativismo-judicial.shtml

[7] VILHENA, Oscar. A batalha dos poderes. Versão ebook. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 233 e seguintes.

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