Opinião

O retrocesso no combate à corrupção no Brasil: a quem devemos culpar?

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3 de maio de 2021, 12h03

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é um organismo internacional formado por 37 países e parceiros estratégicos dedicados a discutir e moldar políticas públicas e econômicas que promovam prosperidade, igualdade, oportunidade e bem-estar para todos.

Desde a sua criação, em 1961, a OCDE atua juntamente com governos, formuladores de políticas e cidadãos, visando ao estabelecimento de padrões internacionais amparados em evidências e na busca por soluções para uma série de desafios sociais, econômicos e ambientais.

A OCDE destaca-se como uma entidade relevante na luta contra a corrupção global, apoiando instituições confiáveis e incentivando mercados abertos, eficientes e inclusivos. A fim de contribuir para a implementação de mecanismos anticorrupção internacionais, o organismo fornece dados e análises, bem como trabalha diretamente com a comunidade internacional para compartilhar práticas e experiências instrutivas em questões críticas como o suborno, compras, gestão de finanças públicas, integridade nos setores público e privado e assistência ao desenvolvimento.

Para ingressar na OCDE, além de contar com o apoio dos membros, são avaliados os marcos regulatórios, as reformas econômicas, a transparência das empresas e do governo, o controle da inflação e outros cerca de 250 tópicos. O país candidato tem de cumprir uma série de requisitos da organização e se adequar a alguns padrões internacionais, entre eles os de governança, onde o tema "corrupção" ganha extrema relevância.

Como se sabe, nos últimos anos o Brasil vem galgando posições importantes para o ingresso como membro efetivo da organização, o que facilitaria a atração de investimentos estrangeiros para o país e beneficiaria o comércio exterior [1]. No entanto, o atingimento desse objetivo pode estar seriamente ameaçado, pelo menos no curto e médio prazos.

De acordo com os relatórios de monitoramento da OCDE, o Brasil aprimorou suas legislações e criou iniciativas de combate à corrupção. O último relatório publicado é de 2017 e, embora apontasse pendências, reconhecia os avanços do país com, por exemplo, a regulamentação e implementação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13) e a aplicação de sanções [2].

Contudo, em 2019, a OCDE identificou um declínio relevante na elaboração de medidas anticorrupção e emitiu uma declaração pública demonstrando apreensão com a possível aprovação da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19) [3].

Diante da preocupação global em relação a eficácia dos mecanismos de combate à corrupção, lavagem de dinheiro e suborno — em níveis nacional e internacional — adotados pelo Brasil, a OCDE designou, no final de 2019, um grupo de trabalho composto por dez representantes do seu alto escalão para participar de uma missão no país.

Em solo brasileiro, o grupo se reuniu com autoridades de todos os poderes, a fim de identificar e mitigar possíveis entraves ao combate à corrupção. Nesse momento, publicou uma nova declaração tecendo severas críticas à Lei de Abuso de Autoridade [4], classificando-a como vaga e ampla, e às decisões do STF que interromperam investigações feitas com base em informações sigilosas compartilhadas, sem autorização judicial prévia, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e pela Receita Federal.

Finda a visita ao Brasil, em dezembro de 2019, o grupo de trabalho salientou que, se não houvesse mudanças significativas nas questões levantadas, outras medidas rigorosas poderiam ser tomadas [5].

Na mesma esteira, no final de 2020, a ONG Transparência Internacional enviou dois documentos à Divisão Anticorrupção e ao Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE com o propósito de apontar retrocessos no combate à corrupção no Brasil. O primeiro deles, intitulado "Brazil: Setbacks in the Legal and Institutional Anti-Corruption Frameworks", publicado originalmente em 2019 e atualizado no final de 2020, elencou diversos obstáculos ao combate à corrupção verificados no país, tais como a grave perda de independência dos órgãos de controle e determinadas ações dos Poderes Judiciário e Legislativo. Além disso, o relatório destacou os retrocessos na política ambiental, ataques à sociedade civil e à imprensa, como elementos a serem considerados [6].

Ainda segundo Transparência Internacional, a percepção da corrupção tem aumentado no Brasil nos últimos anos, de acordo com o Índice de Percepção da Corrupção (Corruption Perceptions Index). Em 2019, o país contabilizava uma média de 40 pontos no índice, nota esta que, no ano passado, foi reduzida para 38 pontos (o Brasil ocupa a 94ª posição do ranking). Atualmente, o país encontra-se atrás de nações como China, Turquia e Colômbia e com pontuação idêntica a Cazaquistão, Etiópia, Peru, Sérvia, Suriname e Tanzânia [7].

A título de exemplo, a média dos países que compõem os BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) é de 39 pontos, ao passo que a dos países da América Latina é de 41 pontos. A pontuação dos países membros da OCDE, por sua vez, é 64, ou seja, o Brasil possui praticamente a metade dos pontos das nações que integram o grupo.

Ademais, a nota alcançada pelo Brasil, em 2020, foi a mesma registrada em 2015, e representa o terceiro pior resultado da série histórica. Com exceção dos anos de 2012 e 2014, o país sempre esteve abaixo da média global do índice, que se mantém em 43 desde 2012.

Como consequência, em março deste ano, a OCDE, após constatar que os problemas persistiam e que novos continuavam a surgir, ameaçando a capacidade do Brasil de combater práticas corruptas, adotou uma medida inédita na organização: criou um subgrupo permanente de monitoramento sobre o assunto no país.

A ação, sem precedentes, foi concebida uma vez que o grupo de trabalho da OCDE sobre suborno identificou que seria mais eficaz fazer uso de um pequeno grupo de países para analisar todas as informações disponíveis sobre as atividades antissuborno estrangeiras no Brasil. Somente depois os dados seriam apresentados ao grupo de trabalho sobre suborno como um todo, juntamente com as propostas sobre o curso de ações futuras. Visto que esse subgrupo é considerado como uma mera "ferramenta" do grupo de trabalho, ele não divulgará publicamente nenhum documento, mas preparará propostas para suas decisões.

O fato de que o combate à corrupção no Brasil retrocedeu é indubitável. Mas quais seriam as verdadeiras razões desse retrocesso?

Propostas de mudanças em legislações relevantes no que tange a temática, tais como a Lei de Lavagem de Dinheiro [8], a Lei de Improbidade Administrativa e a chamada PEC da Impunidade (PEC nº 3/21, também conhecida como PEC da Imunidade Parlamentar), podem ser consideradas potencialmente violadoras das disposições da convenção da OCDE. No entanto, as causas desse declínio podem não ser apenas aquelas apontadas pela organização e, sim, estarem justamente ligadas ao modelo de combate à corrupção importado da OCDE.

O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), aprovado pelo Congresso norte-americano em 1977, determinou que as empresas do país ficaram proibidas de praticar atos de suborno de funcionários públicos estrangeiros. O referido marco legal foi o primeiro passo importante no enfrentamento da corrupção comercial transnacional e desencadeou, posteriormente, a aprovação de outras medidas legais de combate à corrupção de natureza global. O FCPA trouxe duas grandes inovações: a preocupação em sancionar o corruptor (as empresas) e sua aplicação extraterritorial. Ademais, como a lei americana é destinada a todas as empresas, americanas ou estrangeiras, que são listadas na bolsa de valores ou de negócios feitos no mercado de balcão nos Estados Unidos, sua aplicabilidade, na prática, é internacional.

Dessa forma, a adoção do FCPA fez com que muitos países assumissem um modelo de combate à corrupção, impondo drásticas punições aos seus agentes econômicos que se envolvessem em tais atos ilícitos, sem o qual seria impossível que essas nações se relacionassem economicamente com os EUA.

Se pensarmos que a convenção da OCDE adotou a mesma lógica do FCPA, ao eleger o combate à corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e organizações internacionais como pedra angular do seu modelo de exportação de integridade, podemos supor que o efeito da sua aplicação será análogo em todas as nações? Ou seria plausível pensarmos que a importação "nua e crua" de um modelo estrangeiro de combate à corrupção é também um dos fatores responsáveis pela destruição de boa parte da economia nacional, pela demonização da política, pela politização e espetacularização do combate à corrupção e, por que não?, dos retrocessos que verificamos no Brasil de hoje?

Afinal, nosso país, ansioso em preencher os critérios de qualificação para uma vaga nesse seleto grupo, buscou adotar as disposições convencionadas pela OCDE, sem se atentar para suas próprias peculiaridades internas.

Ora, importamos um modelo feito sob medida para quem o construiu, e não para quem gostaria de adotá-lo!

Medidas com um potencial devastador, se implantadas em uma nação em que toda e qualquer relação público-privado é vista como ilícita, podem deturpar o combate à corrupção e ocasionar a impunidade.

Um exemplo emblemático é a decisão recente do STF sobre a declaração de incompetência da Justiça federal do Paraná para julgar as ações do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito da intenção dos julgadores, não há como negar que os fatos em questão pouco ou nada tinham a ver com os casos de corrupção da Petrobras. Uma verdadeira gambiarra jurídica, oriunda de um modelo desenfreado de combate à corrupção e de vaidades pessoais que buscou vingança ao invés de justiça, e que, ao fim e ao cabo, deixou no ar um sentimento amargo de impunidade para grande parte da população.

Para além da adoção de um modelo equivocado, há também outra razão fulcral para tais retrocessos: a inexistência de uma regulamentação nacional sobre lobby  e doações de campanha frouxamente disciplinadas [9], propiciam uma confusão ao se determinar quais ações qualificam o ilícito, isto é, ao se delimitar o que é ou não é corrupção. É possível supor, inclusive, que se o Brasil adotasse uma legislação acerca desses temas, similar à norte-americana, muitos dos considerados "crimes" no curso da operação "lava jato" seriam apenas consequências naturais das relações entre Estado e empresa [10].

A regulamentação do lobby, sob a égide de severas regras de compliance e transparência, teria o condão de separar "joio do trigo", isto é, diferenciaria verdadeiros atos de corrupção do legítimo exercício da democracia. Para tanto, faz-se necessário disciplinar tanto o lobby pré-eleitoral (financiamento empresarial de campanha eleitoral devidamente regulado), quanto o lobby pós-eleitoral (atuação de grupos com interesses legítimos em aperfeiçoar o ordenamento jurídico do país). Sem isso, a prática de financiamento via "caixa dois" continuará a ocorrer, a contragostos de todas as medidas adotadas, por debaixo de nossos narizes.

Uma disciplina clara acerca do financiamento de campanha e do lobby promove transparência e auxilia na descriminalização da política, aproximando a sociedade civil do Estado.

A definição de um marco jurídico que diferencie, em uma democracia, a corrupção do financiamento da política é um elemento fundamental e deve ser anterior a adoção de medidas drásticas de controle e punição. Desse modo, a omissão legislativa nacional, que não regula as práticas de lobby e a adoção desenfreada do modelo norte-americano anticorrupção, devem ser fatores avaliados como possíveis causas do retrocesso brasileiro no combate à corrupção.

 


[1] O Brasil não é um país membro da OCDE, mas sim um dos seus parceiros-chave. Tal posto, ocupado desde a década de 1990, garante ao país acesso aos órgãos da Organização, bem como aos seus instrumentos.

[6] Informação disponível em: < https://transparenciainternacional.org.br/retrocessos/ >. Acesso em: 11/04/2021.

[8] Especialmente a proposta que pretende definir os limites do crime de lavagem de dinheiro, evitando condenações em casos que extrapolam a previsão legislativa.

[9] Saïd Abrahim Farhat, em sua obra "Lobby, o que é, como se faz: ética e transparência na representação junto a governos", define lobby como sendo toda a atividade organizada, exercida dentro da lei e da ética, por um grupo de interesses definidos e legítimos, com o objetivo de ser ouvido pelo Poder Público para informá-lo e dele obter determinadas medidas, decisões e atitudes.

[10] Walfrido Warde, ao tecer considerações sobre os efeitos da ausência de regulamentação do lobby na legislação nacional em sua obra "O Espetáculo da Corrupção", explica: "Tivéssemos no Brasil um modelo de disciplina jurídica da política parecido com o imperfeito modelo americano, boa parte do que se considerou crime no curso da Operação Lava Jato seria decorrência natural dos meandros da democracia numa nação de dimensões continentais".

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