Embargos culturais

'De quando éramos iguais', de Eduardo Sens

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 de maio de 2021, 8h01

Um promotor acusa um amigo de infância no Tribunal do Júri. Lembranças da infância lhe assombram. Ao lado de um primo, e de dois coleguinhas, ajudou a colocar uma bomba caseira no banheiro da escola. Brincavam, pensavam em assustar a todos com o barulho da explosão. O estouro matou Zeca, o querido zelador da escola. Os amigos foram expulsos. Um deles seguiu penando a vida toda com a consciência não resolvida. Acabou em hospital de alienados, de onde saiu com traços de esquizofrenia. Roçava a mão pelo peito e sentia o gosto dos dedos na boca. A culpa se materializou em forma de irreversível doença mental, como irreversível foi a morte do inocente zelador.

Spacca
O narrador, que mais tarde seria promotor, foi suspenso, tão somente, ainda que tenha amargurado a censura de todos, professores e colegas, com olhares e perguntas maliciosas. Fora excluído por alguns, não podia escolher o time nas aulas de educação física, foi matizado como um menino explosivo, literalmente falando. Seguiu o conselho da mãe, que o recomendou que fosse lacônico. Essas memórias o atormentam ao momento em que acusa Tainho (Carlos Otávio da Silva) pelo assassinado de João Marquetti. Essa, em linhas gerais, é a síntese narrativa de "De Quando Éramos Iguais", romance de Eduardo Sens, que é promotor de Justiça em Santa Catarina.

Editado pela Penalux, de Guaratinguetá, o romance sugere três abordagens. Há uma perspectiva psicológica, que gira em torno do interminável tema da culpa. O contraste entre o réu no júri e a memória do menino tornado promotor é recorrente no texto. Há uma perspectiva pedagógica, que transita no campo Direito e literatura, enquanto possibilidade de expressão descritiva da atividade forense. Aprende-se muito sobre o ambiente do júri. Há também uma perspectiva existencialista, no contexto da qual o autor questiona o sentido de acusar e o (dis)sabor de condenar. Naturalmente, se autobiográfica a narrativa, ainda que parcialmente, como a leitura sugere.

Nesse sentido, guardadas as devidas proporções relativas a tragédias outras, o livro de Eduardo Sens nos evoca as narrativas autobiográficas de Bernard Schlink ("O Leitor"). Sens e o autor alemão se identificam em um ponto: discorrem sobre a culpa, ainda que a culpa que Schlink evoca seja uma culpa coletiva, assunto que atormentou Karl Jaspers, filósofo alemão. Bernhard Schlink, professor que foi juiz de uma corte constitucional alemã, constitucionalista, historiador do Direito, também autor de notável obra de ficção, discutiu o tema da culpa vivida pelos alemães no contexto da ambiguidade entre jusnaturalismo e juspositivismo, especialmente no que se refere ao papel do Direito na superação desse sentimento.

O acerto de contas com o passado é uma obsessão em Bernhard Schlink, que nasceu em 1942, isto é, três anos antes do fim da guerra. Bernhard Schlink tratou a angústia faústica do domínio do passado como uma impossibilidade humana. Para Schlink, o passado não pode ser dominado; pode ser lembrado, esquecido, reprimido; pode ser vingado, punido, modulado; pode ser motivo e fundamento de arrependimento; pode ser repetido, consciente ou inconscientemente; suas consequências podem ser gerenciadas; pode ser encorajado ou desencorajado; pode ser monitorado no que se refere a seu impacto, no presente ou no futuro; o que está feito, porém, não pode ser alterado: o passado é inacessível e irrevogável.

Eduardo Sens explora o problema da culpa de um modo mais intimista, e de certa forma de um modo muito mais amargo. Enquanto a culpa de Schlink era compartilhada com toda uma geração, a culpa sentida pelo narrador de "De Quando Éramos Iguais" é direta, pessoal, intransferível, e quem sabe por isso mesmo difícil de ser expiada. Os fatos estavam esquecidos, porém eram latentes, explodindo no momento em que o promotor reconhece o réu na sala do júri. Tainho, o suposto homicida, fora um menino pobre, um favelado, com quem o narrador conviveu, em um tempo em que crianças de classe média brincavam na rua. Dividiam brinquedos e folguedos com crianças muito pobres. Eu vivi isso. O narrador teria nascido em 1979, isto é, se algum vínculo autobiográfico ou geracional possa ser intuído do texto.

O que menos conta, nesse caso, é a verossimilhança da narrativa. O autor pode ter colhido o enredo de colega de promotoria. A teia narrativa pode ser ficcional. No entanto, é o relato de quem conhece o ofício, dada a descrição do procedimento, da topografia forense, da reação dos jurados, do magistrado, do estilo do advogado de defesa, do ambiente psicológico, da força vingadora da condenação.

A troca de olhares entre acusador e réu sugere também um sútil questionamento de trajetórias que são construídas como resultantes do meio. O menino bem nascido era sociológica e economicamente vocacionado para ser promotor. O narrador relata que assumira a promotoria "aos vinte e três anos, com todos os códigos decorados e completamente cru da vida". Passou no concurso e tinha uma promotoria só dele. Pode ser essa a senha de tantos meninos e meninas bem nascidos, que ocupam no ofício público o segundo emprego, porque o primeiro fora a mesada do pai. Muitos deles são os que acusam e que julgam. Juventude não é pecado, é virtude. Porém, inexperiência, quanto tratamos de vidas humanas, pode ser fatal, ou não, e aí entra um pouco de sorte.

O réu, que teve o azar de nascer em lugar, hora e ambiente desarticulados e empobrecidos e de tudo carente, seguiu a sina do criminoso premeditado pela vida. O menino mal nascido era sociológica e economicamente vocacionado para delinquir. Ainda que a afirmação possa evocar uma criminologia fora de moda para alguns, Tainho, o réu, era um homem marcado para matar.

No thriller de Eduardo Sens, o bem-nascido e o mal nascido se enfrentaram no momento que o destino já havia fixado. O desate, que não revelo ao leitor, marca, ao mesmo tempo, a decadência e a inexpressividade do acusador. O acusador se humaniza, recuperando e revelando um traço humano sufocado por tantos sucessos na vida, que eram superficiais e efêmeros. Nem sempre o triunfo no embate do júri pode significar uma autêntica compreensão da vida e de suas surpresas, boas ou más.

"De Quando Éramos Iguais", de Eduardo Sens, é um romance comovedor, perturbador e intenso. É um traço psicanalítico que une acusação e culpa como instâncias opostas e ao mesmo tempo idênticas que radicam na indivisibilidade e na individualidade da experiência humana. Eduardo Sens, com uma narrativa cativante, comprova a inacessibilidade e irrevogabilidade do passado como condição para que aceitemos a fragilidade de nossa condição: é nesse momento que nos sentimos maiores do que somos.

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